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Mensagens

Um plano de Dina e Django

Os amantes abrem os pulsos com a ponta de um punhal e misturam o sangue de ambos. Em fundo, ouve-se a multidão: «O povo unido jamais será vencido.»

E de nós, o que faremos?

É nos transportes públicos que se vê melhor o quanto as mulheres portuguesas mudaram desde o 25 de abril. Vê-se na forma arejada como se vestem e falam umas com as outras ou com os homens; como andam de cabeça erguida; como sabem que ainda estão no princípio.  As mulheres das classes mais ricas ficam de fora do retrato porque não andam em transportes públicos. Como são conservadoras, suspeito que não mudaram assim tanto.

Observações avulsas sobre matosinhos sul #65

Não tenho medo da minha sombra, é até uma das partes do meu corpo (?) que prefiro. Mas há bocado, vinha a caminhar junto à Casa de Arquitectura, de sul para norte, apercebi-me de duas sombras gémeas na parede à minha direita, uma no encalço da outra e estremeci — como quando lia as histórias assustadoras de Allan Poe.

Observações avulsas sobre o bonfim #64

Mais, le lendemain matin.

Refletir (um postal para a Alexandra)

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971).

Observações avulsas sobre o bonfim #63

 

You hit me with a flower

Assim como os viciados em jogo podem solicitar ao Serviço de Regulação e Inspecção de Jogos a proibição de aceso às salas de jogos dos casinos, eu devia pedir — não sei a que serviço estatal —  a interdição às bibliotecas. No sábado fui devolver cinco livros para poder, enfim, ler os meus livros amontoados por todas as divisões da casa, mas não resisti a este e àquele e acabei por trazer mais livros e, sinceramente, já não sei o que fazer à minha vida.

O tédio

O que mais impressiona nestes novos e velhos defensores dos chamados «valores da Identidade e da Família» é a sua entrega passiva ao tédio. Ao tédio mais absoluto. Uma entrega sem luta, sem revolta, voluntária, apática. Na verdade, têm horror à vida.

LP

As 450 páginas de Democracia , de Alexandre Andrade; as 4h12m d' O Amor Louco , de Jacques Rivette — para mim, são a mesma coisa. Parto para os dois com o mesmo entusiasmo pela longa duração.

Uma madeixa cor-de-rosa

Vinha da biblioteca, no 305, a ler a introdução de Catherine Grant ao livro Porque não houve grandes mulheres artistas? , de Linda Nochlin , quando reparei na mulher que se sentou no lugar lateral mesmo à minha frente. Era bonita, devia ter setenta e tal anos, estava de roupa ligeira, sapatilhas e tinha uma madeixa pintada de cor-de-rosa. Entre o livro e ela havia uma ligação, não de causa e efeito como determina a nossa pequena lógica, mas de possibilidade e libertação. É por causa deste livro e de outros semelhantes que esta mulher pode pintar uma madeixa cor-de-rosa. 

O sopro revolucionário

Marguerite Duras: (...) Acredito na utopia política, quer dizer, acredito profundamente no movimento de Allende que é talvez a coisa mais importante que aconteceu desde 17, juntamente com os primeiros momentos, os primeiros anos de Cuba. É a utopia que faz avançar as ideias de esquerda, mesmo que falhe. 68 falhou, e isso foi um avanço fantástico para a ideia de esquerda, aquilo a que durante muito tempo se chamou exigência comunista, mas que na conjuntura actual já não significa rigorosamente nada. Só se pode fazer isso.... Tentar umas coisas, mesmo se são feitas para falhar. Mesmo falhadas, são as únicas que fazem avançar o espírito revolucionário. Como a poesia faz avançar o amor. Está tudo ligado. Não há poesia — verdadeira — que não seja revolucionária. Quando Baudelaire fala dos amantes, do desejo, está no auge do sopro revolucionário. Quando os membros do Comité Central falam da revolução, é pornografia. O Camião ( entrevista com Michelle Porte) , de  Marguerite Duras.

Larvar, dissolvente

É uma partida do inconsciente, muitas vezes quando parece que estamos a falar dos outros, é precisamente de nós mesmos que falamos. No texto de introdução do livro Identidade e Família , basta substituir uma palavra para este parágrafo se tornar um espelho elucidativo dos seus autores: «Não podemos desvalorizar os adversários da família democracia, umas vezes mais à luz do dia, outras vezes de um modo mais subtil e larvar, mas nem por isso menos dissolvente.»

Apenas um pássaro

Uma rola fez o ninho numa árvore enfezada que cresce junto ao edifício de escritórios onde trabalho. Se abrisse a janela e esticasse o braço, conseguia tocar-lhe. Isto comove-me mais do que sou capaz de dizer. Não me interpretem mal: não há aqui nada de especialmente  poético . É apenas um pássaro a tentar manter-se vivo. Tão empenhado como eu em escapar às mil quedas de cada dia.
Fragmentos de Um Filme Esmola, A Sagrada Família:

Vicente de Deus

Dizia que dava “poderes” ou “milagres”. Na prática, imaginava algo bom para alguém. O rádio entrava nesse jogo. “Interessa-me ouvir as notícias para ajudar.” Um exemplo? “Penso numa mala cheia de dinheiro e ponho essa mala cheia de dinheiro nas tropas. E acaba a guerra.”

Mutualismo

Roman, o meu vizinho russo que fugiu da guerra e vive no 4° andar, ofereceu-nos chocolates na Páscoa. Em troca, ofereci-lhe as Memórias Póstumas de Brás Cubas — para ele treinar o português. 

Juste une image

A meio da tarde, o noticiário da CMTV exibia de um lado o desfile da claque do Benfica e do outro a manifestação da extrema-direita no Porto — ambas acompanhadas por polícias fortemente armados. O ecrã estava dividido em dois, mas não eram duas imagens. No rodapé lia-se: «Perigo total: fruta atirada à PSP». (...) quando criamos a tragédia no fundo acaba por ser só uma comédia e vice-versa.

Psychopathia criminalis

A câmara do Porto tem um plano para controlar a população de gaivotas e eliminar de imediato os indivíduos «psicopatas». Estou a citar o termo usado pelos especialistas e reproduzido nos jornais.  E como se identificam as «gaivotas psicopatas»? Pelo «comportamento agressivo e repetitivo». Em tempos, durante um surto psicótico que afectou muitas aves no Palatinado, e que custou à região terríveis devastações, Oskar Panizza propôs um método mais simples e benigno: «Recolhimento em espaços amenos, tratamento suave, banhos correctamente temperados, sossego e o conselho amigo de um ornitólogo.» Além de um pouco de hiosciamina ou de brometo de potássio .

A senhora Ogin

Vi o filme no sábado à tarde, mas ainda estou impressionada pela potência das imagens. A um primeiro nível, tem a ver com a intensidade dos azuis e dos laranjas e com a largura da tela, mas o que nos marca mais é a força interior de Ogin : na afirmação da sua paixão, na não aceitação de um destino que lhe é imposto, na escolha do suicídio como prova de resistência.

Não era preciso ouvir para saber

Nunca li nem ouvi falar da frase de Marx Diga-me o que comes e eu te direi quem és na minha juventude, mas isso era óbvio para mim, eu via o que os clientes da minha mãe compravam na mercearia de acordo com o bolso deles. Eu sabia muito bem em que dia o auxílio governamental «caía». Dizer que «eu sabia muito bem» não é muito preciso, era esse mundo que me moldava, não era preciso ouvir para saber. As palavras ligadas ao trabalho, à contratação e à demissão, «fazer cortes», etc., entraram no meu vocabulário naturalmente. Eu as escutava no café, ao lado da mercearia. Annie Ernaux, A escrita como faca e outros textos , tradução de Mariana Delfini. Citado por Kelvin Falcão Klein.