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Mentira

A literatura, isto é, a vida, pode trair tudo, mas há uma coisa a que será sempre fiel: a mentira. A mentira é a única verdade que existe. É o que nos salva da anulação total. A luz solitária na noite escura. Graças à mentira, sabemos coisas secretas, misteriosas, que não parecia possível alguma vez sabermos, como seja as artes sombrias de Tchíchikov. Ou as extraordinárias digressões de Dom Quixote.
Foi por causa da mentira que se inventaram as palavras. As palavras foram criadas para podermos mentir melhor. Que desperdício as palavras usadas para outros fins que não seja mentir. Kafka ponderou a questão e definiu-a genialmente: “O tempo que nos é concedido é tão breve que, se perdermos um segundo sem mentir, já teremos perdido toda a nossa vida.”
A mesma mentira pode ser contada de muitas maneiras diferentes, dependendo do estilo, da imaginação e do talento de cada um. No entanto, nem tudo o que se conta é tocado pelo sopro da verdadeira beleza, nem tudo consegue superar a prova do tempo e transformar-se numa mentira clássica.
O caminho para a mentira é longo, árduo, com muita espera e anos que se perdem na espera. Mas se a esperança for grande, um dia sucede o inaudito: chega-se à grande mentira, à mentira imortal. Alcançar a grande mentira, escrever a mentira íntegra e verdadeira, é a maior sorte da vida, o achado supremo, uma espécie de milagre.
Estranho é ainda encontrar quem afirme que a mentira é pérfida. Nada pode estar mais longe da verdade. A mentira é bela, é a sincera maravilha da alma, é o mais puro exercício de liberdade. Já Sterne o disse sem subterfúgios: “Se não houvesse mentira, eu não escreveria.” E sobre ela concluiu Ramón Gómez de la Serna: “Roguemos ao Senhor que nos ofereça a mentira, assim como se pede o pão nosso de cada dia.”

Texto incluído no alinhamento de Os Anacronistas. Para ver e ouvir, hoje, sábado, 20 de Setembro, pelas 19h00, no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett, no âmbito do programa cultural da Feira do Livro do Porto 2014.

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