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Uma pessoa esquisita

Falando fria e cruamente, Nikolai Jurowski tornou-se uma pessoa esquisita. Muito esquisita. Uma pessoa muito, muito esquisita. Um dia começou a ler e nunca mais parou. Volume após volume, um livro a seguir ao outro, milhares e milhares de páginas. Não porque gostasse excessivamente de ler, mas porque acreditava que se levantasse a cabeça e desviasse os olhos das palavras morreria de imediato.
Assim, pregado aos livros, manhãs, tardes, noites, imóvel, rosto sem brilho como uma parede branca, sempre em suores e com os cabelos em pé, Nikolai lia, lia, lia tudo sofregamente para escapar ao triste fim que ele imaginava estar-lhe destinado. Era penoso ver um homem com quase dois metros e um nariz enorme devorando página atrás de página para salvar a vida.
Ele que impressionara os seus rivais com cintilantes demonstrações de ciência. Ele que enfrentara a úlcera de estômago chupando simples pastilhas digestivas. Ele que vira as mais belas noites de Outono, com as suas nuvens fugidias. O mais luminoso crepúsculo depois do mais tempestuoso dos dias. Ele que atravessara as pontes suspensas sobre os grandes rios, aéreas e leves, baloiçando ao sol. Ele que tinha vivido os momentos mais solenes e misteriosos da vida com especial ênfase e emoção.
Dado o seu estado de extrema aflição, seria um desperdício de tempo explicar-lhe que um livro não passa de uma reunião de cadernos, manuscritos ou impressos, cosidos ordenadamente, formando um volume encadernado ou brochado*, e portanto incapaz de decidir sobre a vida ou a morte de alguém. Enfim, ao que as coisas podem chegar em virtude de um ou outro parafuso mal apertado.
Como é que a história de Nikolai Jurowski termina? Não vou dizer porque na verdade não sei. Mas se ainda não morreu, ainda hoje é vivo.

* Cf. AREZIO, 1936, p. 57.

Publicado no Porto 24, página dos Cronistas do Bairro.

Comentários

ZMB disse…
Não te sabia admirador da tia lili...