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As boas práticas da arte

LEAL:
Ah, caro Truão, o bom gosto está em vias de se extinguir...

TRUÃO:
Por favor, deixe o bom gosto em casa, que quase o pôs a mendigar; é uma utopia que enche a cabeça, mas não a bolsa. (...)

LEAL (suspirando)
Infelizmente, já tive essa experiência.

TRUÃO
Já que não a quer repetir, faça como os outros. Exiba uma tabuleta vistosa, com tortas e pastéis pintados, e acrescente-lhes toucinho e choucroute.

LEAL
A isso chama-se defraudar o público!

TRUÃO
Mundus vult decipi, ergo decipiatur.

LEAL
Tudo bem. Mas mesmo que se faça como aprouver ao público, com os actores pia mais fino. Os artistas de categoria...

TRUÃO (interrompendo)
Tem de fazer valer tudo como se fosse excelente, falando de cátedra. Se houver um actor que seja incompreensível e repita sempre as mesmas lamúrias, diga com um ar de sabedoria: é maior pensador do que falador, há muito por trás que merece análise. De um cantor que desafine, diga: representa melhor do que canta; de um dançarino que faça as piruetas do costume, diga: esta é a genuína dança da Antiguidade que os nosso artifícios modernos corromperam. Antes de o povinho dar pela palermice, vai acabar por acreditar em si próprio.

LEAL
Fácil de dizer, mas difícil de fazer...

TRUÃO
Pelo contrário, bastante fácil. Ai, ai, Senhor Leal, tanto tempo no teatro e ainda não sabe que o grosso dos espectadores não opina, mas só sabe rezar ao seu próprio umbigo. Assim que chegarmos a Salzburgo, ofereça borlas a quatro ou cinco escribas e, todos os dias, uma boa refeição na companhia da actriz principal; assim transformar-se-á o mais mísero dos aprendizes de alfaite num Roscius; o mais desmiolado dos labregos num Garrick e o servente de cozinha num Clairon. A súcia repete maquinalmente os ditos dos críticos e a partida está ganha!

LEAL
Caro Senhor Truão, veja o que me está a aconselhar! Chama-se suborno!

TRUÃO:
Quem tem unhas toca guitarra... deste modo, já muito charlatão se tornou capitalista, e o Senhor Director segue as boas práticas da arte.

LEAL
Chegámos a bom porto. Assim seja, vou meter no armário o bom gosto, o tal a que chamas quimera...

TRUÃO
E as boas práticas...

Gottlieb Stephanie der Jüngere, O Empresário. Versão de Virgílio Melo.
O Empresário é o terceiro volume da Colecção Avesso e já está disponível nas livrarias ou em exclamacao.pt.

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