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Histórias de abandono e fúrias

Delia, solteira, sem filhos. No dia do seu 45º aniversário, Amalia aparece morta na praia. Delia regressa a Nápoles para o enterro da mãe e para ajustar contas com os fantasmas do passado. Talvez por ser desenhadora, anda de um lado para o outro, a pé, de autocarro, de elevador, como numa tela de Chagall. Ferrante enche as páginas de cores, movimentos acrobáticos, sons, cheiros, lágrimas -- às vezes é difícil aguentar a leitura pois é tudo demasiado sensorial, como se a violência, até aí mantida em segredo, se materializasse em ruídos e borrões.

A história de Olga é a maior e a mais claustrofóbica. Olga tem 38 anos, dois filhos pequenos. Quando o marido a abandona, perde o chão, perde a ligação às pessoas e às coisas, cai numa abstração um bocado idiota. Um dia fica trancada em casa com o filho doente e o cão moribundo; é verão, a cidade e o prédio estão desertos, os telefones não funcionam, as formigas invadem o apartamento, tudo se fecha em seu redor. Consciente da queda e do perigo eminente de dissolução, Olga reage através das palavras; apodera-se de um vocabulário obsceno e constrói um fulgurante exercício de evacuação de catástrofe.

Leda, 48 anos, é professora universitária, estuda literatura inglesa. Separada do marido, tem duas filhas de vinte e tal anos que resolveram ir viver com o pai em Toronto. O segundo abandono desta história (foram abandonadas pela mãe durante três anos quando ainda eram crianças), aparentemente mais distraído e circunstancial. Leda parece uma personagem de Hitchcock (Marnie, por várias razões é em Marnie que penso) em que o dentro e o fora descoincidem: imagino-a séria, elegante, uma mulher facilmente apontada como um exemplo e, no entanto, capaz de gestos muito perversos. Tem uma espantosa capacidade de se distanciar (ou pôr-se à parte) e isso vai-se apoderando da escrita de Ferrante. "A filha obscura" é a história mais ambígua do livro, Leda é a personagem mais reflexiva, a que guarda mais sombra sobre os seus actos e pensamentos.

As personagens dos três primeiros romances de Elena Ferrante têm várias coisas em comuns, as mais marcantes são o abandono e a fúria. Ao princípio estas mulheres reagem de forma excessiva ao desamparo -- como é da nossa natureza, como Dido nos ensinou, como essa poverella napolitana que definha e acaba por se matar. Mas aos poucos, quase não damos por isso, Delia, Olga e Leda ensaiam um caminho diferente. É como se entrassem na palavra "crise" com o corpo inteiro e explorassem os recantos etimológicos e semânticos do vocábulo. Delia, Olga e Leda conseguem definir qualquer coisa para além da cólera, não sabemos bem o que é, talvez uma linguagem nova, talvez um espaço próprio (mais do que um quarto, muito mais do que um quarto).

Cristina Fernandes.

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