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Tempo e granito

A “vila” que serve de cenário a Húmus, de Raul Brandão, pode ser qualquer vila ou cidade. É uma pura abstracção: “A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro”. Mas desde a primeira linha que não consigo deixar de pensar no Porto, cidade onde o escritor nasceu e que ele conhecia bem. (Esta mania de os leitores precisarem de pontos de referência para não perderem o pé. Um leitor de Guimarães dirá que se trata de Guimarães e ninguém poderá negá-lo.)
A vila de Húmus é feita de granito, um “granito salitroso”, erguendo-se sobranceira ao mar (o mar é uma ficção minha). Granito que impõe ao texto um tom duro, cinzento e escuro. “Estátuas de granito a que o tempo corroera as feições.” A pedra do Porto que é feita de quartzo, feldspato, mica e tempo. Camadas de tempo que se acumulam umas sobre as outras, num longo e lento trabalho que se repete infindavelmente: “Passou um minuto ou um século?” E a humidade que se apodera de todas as coisas, vivas e mortas: “A humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível (…).”
Como não pensar no Porto? Não o Porto retocado dos modernos guias turísticos, mas aquele que sabemos existir por trás dos muros e paredes pintadas de fresco, nas ilhas, nas ruas esconsas, sombrias e apertadas, e sobretudo debaixo da nossa pele.

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