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A arte de sublinhar Macbeth, segundo Marquês de Sade

No Manual de Leitura de Macbeth, editado pelo Teatro Nacional de São João, Rui Carvalho Homem escreve sobre a famosa “intemporalidade” de Shakespeare. Quer dizer, sobre a “capacidade de o texto shakespeariano nos propor um entendimento do mundo e do humano”, que atravessa o tempo e o espaço.

Essa “intemporalidade”, continua Rui Carvalho Homem, é “encarada hoje com reserva (ou cepticismo)” pela crítica académica, em resultado do aparecimento de “novos contextualismos”. No entanto, é inegável que Shakespeare foi e continua a ser “fonte de ampla produção literária e artística”, e a sua influência “não encontra paralelo em qualquer outro corpus literário e dramático”.


Shakespeare criou o mundo em sete dias.

No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma.
No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos
E os restantes sentimentos -
Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra e a Ofélia,
A Otelo e a outros,
Para que fossem seus donos, eles e os seus descendentes,
Pelos séculos dos séculos.
No terceiro dia juntou todos os homens
E ensinou-lhes os sabores:
O sabor da felicidade, do amor, do desespero
O sabor ciúme, da glória e assim por diante,
Até esgotar todos os sabores.
(...)

Marin Sorescu, Shakespeare.


Não é difícil, pois, identificar numerosos pontos de contacto entre as peças de Shakespeare e outras obras de arte produzidas depois dele. Penso em Sade, por exemplo. Uma das ideias essenciais em Sade (que também foi dramaturgo e amante de teatro) é a de que a crueldade é uma fonte de prazer, “uma virtude e não um vício”, e a razão deve submeter-se aos caprichos das paixões individuais, incluindo o crime. O crime gera tensão, a tensão gera movimento, e o movimento é gerador de vida. O vício é natural, necessário e desejável.

O MORIBUNDO: (...) Meu amigo, a minha alma é aquilo que a natureza quis que ela fosse, ou seja, o resultado dos órgãos que ela formou para servir os seus próprios objectivos, as suas próprias necessidades; e, como ela precisa igualmente de vícios e de virtudes, quando desejou entregar-me aos primeiros, fê-lo, quando desejou entregar-me às segundas, dirigiu-me para elas, e a elas também me abandonei. Procura apenas as suas leis como causas da incoerência humana, e como princípios dessas leis busca somente os seus desejos e as necessidades.
O PADRE: Portanto, no mundo só existe necessidade?
O MORIBUNDO: Sem dúvida.

Marquês de Sade, Diálogo entre um Padre e um Moribundo.


Vício e virtude, o mal e o bem, não têm em Sade uma fronteira clara. Onde acaba o vício e começa a virtude? Onde acaba o mal e começa o bem? Onde acaba a dor e começa o prazer? Onde a sombra e a luz? Não há sombra sem luz e luz sem escuridão. A contradição, a “incoerência”, como escreve Sade, é a primeira verdade da condição humana, da sua “natureza”.

AS TRÊS BRUXAS: Belo o feio, feio o belo.

Shakespeare, Macbeth, 1.1


Da mesma maneira que Macbeth é a “peça maldita” de Shakespeare, Sade é um nome maldito, não tendo sido mencionado durante mais de um século a não ser como exemplo de perversidade. Sade é recuperado apenas pelos surrealistas, que o elevam ao estatuto de “divino marquês”, “o espírito mais livre que jamais existiu”, nas palavras de Apollinaire.

O que ambos demonstram, Sade e Macbeth, é que nunca abandonamos a natureza. E a natureza, predatória, implacável, selvagem e feroz, nunca nos abandona. “Não há criaturas mais perigosas do que as humanas”, lembra Nuno Carinhas. “É, justamente, de animalidade que se alimenta esta peça”, sublinha Daniel Jonas, tradutor desta nova versão de Macbeth.

DOLMANCÉ: (...) As acções mais extraordinárias, as mais bizarras, aquelas que parecem chocar mais evidentemente todas as leis, todas as instituições humanas (...), essas mesmas não são de modo algum medonhas e não existe uma só que deixe de se interligar à natureza.

Marquês de Sade, A Filosofia na Alcova ou (Os Preceptores Imorais).


Tal como a natureza, Macbeth é movido por uma estranha e incontrolável força criadora: “Que se dane o universo -/ mais o céu e a terra”, grita ele no terceiro acto, cena 2. Mas para criar é preciso destruir, aniquilar, desfazer. O princípio da destruição corre-lhe nas veias. É o seu nervo, músculo, carne. “O caos criou a sua obra-prima”, proclama Macduff a propósito de Macbeth.


MACDUFF:
Nem nos anjos
Infernais se acharia um diabo
À altura de Macbeth.

MALCOLM:
Sim, ele é lúbrico,
Avaro, falso, ínvio, sanguinário,
E brusco, malfeitor, não há pecado
que não lhe assista. (...)

Shakespeare, Macbeth, 4.3.


Na peça, homens inocentes, mulheres e crianças “são rotineiramente chacinados com brutal volúpia: é assim que as coisas são, e o inquietante é o facto de nós o aceitarmos” (Michael Dobson, no Manual de Leitura). Como evitar que esta atracção “demoníaca” que Macbeth exerce sobre nós não nos remeta, mais uma vez, para o Marquês de Sade?

DOLMANCÉ: (...) Já alguma vez experimentámos um único impulso da natureza que nos aconselhe a preferir os outros a nós (...)? Vós falai-nos com uma voz quimérica desta natureza que nos diz para não fazermos aos outros o que não quereríamos que nos fizessem; mas este conselho absurdo só nos chegou através de homens, e de homens fracos. O homem poderoso nunca falaria com uma tal linguagem.

Marquês de Sade, A Filosofia na Alcova ou (Os Preceptores Imorais).


E o que Simone de Beauvoir escreveu sobre Sade não calça como uma luva a mão assassina de Macbeth?

O valor supremo do seu testemunho reside na capacidade de nos perturbar. Força-nos a reexaminar o problema básico que persegue a nossa época sob formas diferentes: a verdadeira relação entre o homem e o homem.

Simone de Beauvoir, Faut-il bruler Sade?


Existem outras maneiras de sublinhar Macbeth com o lápis de Sade (considerem-se os tópicos do remorso, do medo e do amor, por exemplo), mas o que neste momento me interessa salientar é que o desconforto que ambos nos provocam não tem a ver apenas com o que é dito, mas sobretudo com o que não é dito, mas que adivinhamos. Essa fera sombria que vive no mais fundo de nós e que obviamente faz de nós humanos.

PRIMEIRO ASSASSINO: Somos homens.

Shakespeare, Macbeth, 3.1

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