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Ficções de Wong Kar-Wai

Em 1944, Jorge Luís Borges publicou aquele que é talvez o mais popular e influente dos seus livros: Ficções. Um dos contos desse livro intitula-se A Biblioteca de Babel. De acordo com a imaginação de Borges, a Biblioteca de Babel é um “universo” composto por um número indefinido de galerias, com vastos poços de ventilação, intermináveis pisos e uma escada em espiral, que se afunda e se eleva a perder de vista. A biblioteca alberga um número infindável de livros, sobre todos os assuntos e em todas as línguas, vivas, mortas e desconhecidas, e é habitada por numerosos bibliotecários que por ali vagueiam na tentativa de encontrar O livro.
Em 1994, exactamente 40 anos após Ficções, Wong Kar-Wai apresentou Chungking Express. Para um realizador que, como Borges, parece obcecado com o tempo e a relação entre os números, a coincidência das datas é mais do que uma simples curiosidade. O cenário do filme é um imenso complexo imobiliário, localizado no coração de Hong Kong, chamado Chungking Mansions. Uma espécie de interminável labirinto de 17 andares, com apartamentos minúsculos, longas galerias, lojas, bares, restaurantes, e povoado por gente das mais variadas proveniências e línguas. Nesta imensa Babel, os velhos bibliotecários de Borges transformam-se nos modernos habitantes de Chungking Mansions. E o livro que os bibliotecários procuram converte-se, no filme de Wang Kar-Wai, noutra coisa: o amor. Ora, tal como o livro é o amor não correspondido dos bibliotecários, o amor é o livro nunca encontrado dos personagens do filme.
No mandarim original, o título da obra de Wong Kar-Wai é A Selva de Chungking e está dividida em duas partes, sugerindo a ideia de um díptico ou espelho, objecto igualmente caro a Borges. O conto de Ficções, por sua vez, faz parte de um conjunto intitulado O jardim dos caminhos que se bifurcam. O que percebemos em Borges e Wong Kar-Wai é que a nossa condição é a de um permanente estado de busca pela grande revelação, que pode estar num livro ou no amor. Os caminhos que tomamos, no entanto, bifurcam continuamente e colocam-nos perante escolhas impossíveis.
Chungking Express pode ser visto como uma leitura moderna e pop de A Biblioteca de Babel. A mesma história, a mesma solidão, a mesma esperança, a mesma busca por um Graal inalcançável. Por outras palavras, a mesma e única utopia.

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