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Mensagens

Livro de horas

O que vemos pode ser um homem. Qualquer homem ou qualquer mulher, em qualquer parte. Ou ainda um espectro. Uma simples voz. Uma memória, uma imagem por dentro do sonho de outro homem ou de outra mulher. Talvez o pensamento vago e passageiro de um qualquer deus desconhecido. Que diferença faz? Uma mulher, um homem, um espectro, um sonho, são feitos da mesma substância e esperam. Eis a mais universal e democrática das leis: todos esperamos. Esperamos a nossa vez, como numa grande sala de espera, de paredes intermináveis. À espera de qualquer coisa extraordinária, incalculável e caprichosa. Ano após ano, desde há séculos, desde o princípio do mundo, ontem, hoje, amanhã, com os mesmos pontos, as mesmas vírgulas, como um livro já lido e do qual se conhecem os mais ínfimos pormenores. Se alguém perguntasse “o que estão a fazer aqui?”, alguém responderia “estamos à espera…” Sozinhos. À espera. Provavelmente de qualquer coisa que não seríamos capazes de reconhecer se nos aparecesse no caminho.

Ideia negra

O que digo é que o «rochedo» que domina toda a parte central do quadro  O Naufrágio,  de Claude-Joseph Vernet, pode ser outra coisa. Uma estranha nuvem, talvez. Talvez um sonho diabólico, a verdadeira forma do medo. O que digo é que aquela terrível mancha negra não é deste mundo. É de uma substância e potência diferentes de tudo o que existe e se conhece. Qualquer coisa que surge vinda de um outro sítio, de um outro lado, e se instala, por momentos, neste mundo. Como uma aparição, uma ideia negra que ganha forma e matéria. O que Vernet não mostra é se essa ideia negra nasce da angústia dos marinheiros ou se a sua origem é de outra natureza: o sonho de destruição de um deus funesto. O trabalho de Michael Biberstein é o de alguém que pensou obsessivamente nisto e sabe a resposta. Ou melhor, é o de alguém que sabe a pergunta certa. De que me serve fugir da morte, dor e perigo, se me levo eu comigo? Luís de Camões

Um grafíti num muro

É um pequeno e discreto grafíti no muro de um miradouro em Lisboa. Quase rente ao chão, o artista pintou oito figuras que avançam em fila. Na frente, um homem caminha com pressa. A silhueta lembra a de Fernando Pessoa. Atrás do homem (estou certo de que se trata de Pessoa), avançam seis cabritinhos. O homem (Fernando Pessoa) e os seis cabritinhos estão pintados a preto. O muro é de um branco sujo, carregado de líquenes e musgo. A encerrar este curioso cortejo, o artista pintou um lobo, a única figura a vermelho. Ou seja, Fernando Pessoa caminha com pressa — ou corre?, ou foge? —, seguido de seis saltitantes — ou assustados? — cabritinhos e atrás deles, talvez perseguindo-os, talvez não, um rubro lobo. O que significa isto? Tenho uma teoria:

Lento rápido

O que vemos em 66 Kinos é uma espécie de road movie através de uma peculiar paisagem de salas de cinema. Philipp Hartmann percorre o espaço e a memória de 66 cinemas, espalhados um pouco por toda a Alemanha. Há histórias simples e outras mais originais, longas e curtas, de resistência e loucura, mas todas têm em comum o amor pelo cinema. Por vezes, a câmara fixa-se no rosto apaixonado dos espectadores antes de uma projecção e é inevitável não vermos ali o nosso rosto. De todas as histórias, a mais curiosa é a de um empresário cinéfilo que sonha construir um cinema sob um viaduto rodoviário. O homem explica que a sala teria cerca de 60 metros de comprimento, uns 20 de largura e um andar subterrâneo. E enquanto fala e mostra o local vazio, automóveis passam a alta velocidade sobre o viaduto. E é inevitável pensarmos no impressionante contraste entre um mundo que avança a um ritmo impossível de acompanhar e os cinemas que amamos, afundando-se lentamente na sua irremediável e escura im

Cansaço

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende IX Haverá instrumento, aparelho, tecnologia, capaz de medir o nosso cansaço? Não se trata só de um cansaço de mundos, como em Álvaro de Campos, mas de todo o cansaço do mundo. «Para que serviram/ Tantos olhos entornados,/ Tanto requebro no corpo, tanta catedral, tanta obra de arte?/ Tanto filósofo enjoado?» Uma  corrida  universal contra o tempo, para chegarmos, na melhor das hipóteses, ao exacto ponto de onde partimos. Porque todos somos Ulisses e Ítaca fica em toda a parte. O mundo é velho, como um barco velho, e as tentativas para o mudar pouco mais engendram do que cansaço. E o que fazer senão voltar a partir e regressar outra vez, e partir de novo e outra vez regressar? Pireu! A cena está posta: os poucos haveres, tenho-os num saco, e o saco no convés, e o corpo vazado num cansaço espesso e vagaroso, E vou, sem amor e sentimento, só ir, por esse roxo mar que Ulisses navegou. A cena está posta e juro que, dentro do peito, que digo eu

Amor

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VIII E se o mundo é isto , «tanta gente a passar aos poucos», o que sobra? O amor? Mas «qual amor»? O amor aos fins-de-semana e feriados? O amor depois do trabalho, dos transportes, das filas no supermercado, do jantar, do telejornal, da louça lavada e posta a secar, da cama gelada e por fazer, da marmita para o dia seguinte? O amor dos «heróis do lar, humilhados e mal queridos»? Este é o amor que nos foi dado viver: o amor que avança «em seu ritmo por inércia». não digas nada nada est -  amos cansados subimos e descemos vivemos melhor e pior bem e mal bem e mal cala-te agora um pouco um pouco dá-me um cigarro e apaga a luz fala mais devagar não há dinheiro não há direito não há ar des abrido s u focado s ó só podemos amar das dez à meia-noite (Qual Amor?)

A fair field full of folk

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VII Um grito indomado cerca a terra toda; é a revolta dos escravos. (Um Dia de Vida.) Quantas vezes na poesia de hoje lemos a palavra «escravos»? Quantas vezes a palavra «oprimidos»? E «povo»? A despeito dos seus possantes pulmões e grossos punhos, o grande espectro já não paira sobre a Europa e o mundo, esfumou-se, e o ar ficou ainda mais irrespirável. Dele restam milhões de sementes de angústia, plantadas no texto, como intermináveis reticências. Sementes significativas, mas é tudo, e esse tudo não é suficiente. Juro que acreditei e acredito Na força imensa das massas populares. Eu sou dessa massa - e que doutra massa seria? Só no mundo, mesmo que esteja só no mundo, Outra coisa não posso dizer, nem outra língua falar. O homem é uma coisa Que há-de ter de ser. (Escrever nas Costas.)