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Mensagens

Horas e horas à frente de papel em branco

Tentei, pela centésima vez na vida, trabalhar, criar algo de belo, de duradouro. Queria perturbar a alma dos humanos, fazê-los sentirem-se melhores ou piores, mas o meu esforço evaporou-se no vazio. Sentei-me horas e horas à frente de papel em branco, imaginei que em virtude de um pacto com um demónio tutelar seria capaz de escrever algo semelhante à Divina Comédia , e quando a minha pequena e dourada alegria atingia o limite onde eu supunha principiar a orla da inspiração, escrevia, redigia duas ou três linhas, e acabava depois por deixar, desalentado, a lapiseira no cinzeiro. Convenci-me de que era impossível trabalhar de dia e obter assim os benefícios da inspiração, e recorri aos favores da noite. Reparei que no meu quarto abundavam livros, formosos quadros, selectas comodidades e, não sei porquê, ocorreu-me que a inspiração precisa, para se manifestar, da monástica solidão de uma cela, do silêncio conventual de uma cartuxa perdida nas montanhas, e então mandei substituir os vid

A Love Supreme

De repente, um piano corre através do palco. A bateria dá uma pirueta e depois outra, e outra ainda. O baixo abre os braços, roda sobre si próprio, agita todos os membros, não pára quieto. O saxofone contorce-se, explode e espalha-se por toda a parte. A seguir é o piano que se dobra e o saxofone que dispara pelo palco. A bateria contrai-se, salta, e o baixo rebola e arrasta-se pelo chão. O piano parece ter quatro, seis, oito braços, e o saxofone mil asas. O baixo e a bateria combinam-se, afundam-se, misturam-se, em longos, ternos e voluptuosos abraços. Os quatro instrumentos juntam-se e afastam-se, e aproximam-se de novo e voltam a separar-se. No palco, não há qualquer piano, nenhum baixo, nenhuma bateria ou saxofone. E, no entanto, nunca houve quatro instrumentos mais vivos sobre um palco. A love supreme , Anne Teresa de Keersmaeker & Salva Sanchis.

Todos cerram a boca

ANTÍGONA  (...) Ouviria toda a gente louvar a minha acção, se o medo lhes não cerrasse a boca. A tirania tem, entre outras vantagens, a de poder dizer e decidir quanto lhe apeteça. CREONTE De entre todos os cadmeus, só tu tens esse modo de ver. ANTÍGONA  Isso é o que te parece, porque todos cerram a boca diante de ti. Sófocles. Antígona . Versão de António Manuel Couto Viana.

Os fantasmas divertem-se

Carpe Diem , de Daniel Blaufuks, 2010. Uma casa vazia nunca está vazia. Uma casa que não é habitada há longos anos é um ninho vivo de memórias, isto é, fantasmas. Cada parede, cada fenda na parede, cada porta, cada janela, cada tábua, cada escada, cada degrau de escada, cada prego, cada grão de poeira, cada sombra, cada raio de luz, é uma voz. Pode-se imaginar quantas vozes há numa casa há muito tempo desabitada. O barulho pode ser ensurdecedor.

Quanto tempo o corpo leva a esquecer?

César deve morrer , de Paolo e Vittorio Taviani, 2012. Não será o actor para sempre um prisioneiro? Preso às tábuas, aos gestos, às palavras, a um pensamento. Preso numa espécie de limbo, nem dentro nem fora do mundo, nem agora nem antes ou depois. Morto e ressuscitado quantas vezes for preciso e à vista de todos. Quando é que um actor é livre? Quando é que o palco e o fora do palco deixam de ser a mesma coisa? Quando é que finalmente o corpo do actor se desprende do personagem? Mesmo depois das tábuas e dos muros, quanto tempo o corpo leva a esquecer? Opening Night , de John Cassavetes, 1977.