Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Namorada

Depois que vê a garota ele corre se olhar no espelho: não pode negar, meio feio? quase feio? Numa palavra, feio. Dia seguinte desiste do bigode ralo. Quem sabe costeleta ou cavanhaque? A menina o enfeitiça. Possuído, sim. Febrícula, sonho delirante, falta de ar, sede mas não de água.  Ela surge enrolada no garfo do suculento espaguete à bolonhesa. De sainha xadrez na primeira tarde, ó deliciosa bolacha Maria com geleia de uva. Formigas de fogo mordem sob a camisa quando ela vem na rua, brincando com o arco-íris na ponta dos dedos.  Consegue afinal apertar-lhe a mãozinha na luva de crochê, ri (descuidoso de ser feio) dentro de seus olhos glaucos. Discutem o narizinho, quem sabe arrebitado, segundo ela. E para ele, nada mais bonito que tal narizinho.  Meio do sono acorda, olho arregalado no escuro. A sua imagem o percorre, impetuoso vento por uma casa de portas abertas. Ninguém por perto, fala sozinho. A mãe o acha mais magro. Quem dera ser o terceiro motociclista do Globo da Mort

Do you want my biography? Here it is.

I was born in Taganrog in 1860. I finished the course at Taganrog high school in 1879. In 1884 I took my degree in medicine at the University of Moscow. In 1888 I gained the Pushkin prize. In 1890 I made a journey to Sahalin across Siberia and back by sea. In 1891 I made a tour in Europe, where I drank excellent wine and ate oysters. In 1892 I took part in an orgy in the company of V. A. Tihonov at a name-day party. I began writing in 1879. The published collections of my works are: “Motley Tales,” “In the Twilight,” “Stories,” “Surly People,” and a novel, “The Duel.” I have sinned in the dramatic line too, though with moderation. I have been translated into all the languages with the exception of the foreign ones, though I have indeed long ago been translated by the Germans. The Czechs and the Serbs approve of me also, and the French are not indifferent. The mysteries of love I fathomed at the age of thirteen. With my colleagues, doctors, and literary men alike, I am on the best of te

Próximo sábado, 28 de Fevereiro, pelas 17h00, no Gato Vadio

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Novo volume da Colecção Avesso, em breve

Está a chegar um novo volume da Colecção Avesso, "Quartos Alugados", o mais recente livro de contos de Alexandre Andrade, com prefácio de Cristina Fernandes. É o volume n.º 5 da Colecção. Nas livrarias em breve. Mais informações no blogue da Colecção Avesso, disponível aqui.

Uma história sobre cavalos

Um homem passeia-se de eléctrico por toda a cidade. Há vários dias que não faz outra coisa. Na verdade, é a única coisa que sabe fazer. O autor teve que se ausentar por certas razões, talvez para comprar ervilhas*, e esqueceu-se dele. Talvez se tenha esquecido dele para sempre. No entanto, tranquilo e alegre, o homem continua a desempenhar o seu papel com a mais canina das fidelidades. Sai de um eléctrico e entra no seguinte. Termina uma viagem e começa outra. Avança um pouco pelo corredor, escolhe um lugar à janela e senta-se calmamente a gozar a vista. As ruas a desenrolarem-se enquanto ele segue refastelado no seu confortável banco de eléctrico, com um prazer doce, meigo e lento, recostado e com os braços cruzados sobre o peito, de uma maneira muito edificante. Como um imperador, nobre e magnânimo, sentado no seu trono, sorrindo de modo quase imperceptível, como se uma mosca lhe tivesse feito cócegas. Entretanto, o sol nasce todas as manhãs, percorre o céu e põe-se todas as tardes
A água corre funda o homem não lhe chega Talvez a sensação mais forte e duradoura seja a estranheza: não se entra em "Cavalo Dinheiro" com passos conhecidos, neste filme tudo é tensão e distância, tudo é o contrário da revelação — uma impressão que cresce na sombra, excita e assusta, um arrepio. A água corre funda. Talvez isso venha da natureza dual de "Cavalo Dinheiro", aqui já não há um autor no sentido reverencial do termo. O filme é tanto de Pedro Costa como de Ventura, assistimos ao culminar da aventura arqueológica que começou em "A Casa de Lava": a análise dos vestígios materiais, mas também coisas tão abstractas como as manchas de humidade numa parede. Pedro Costa executa um trabalho intenso e meticuloso (verdadeiro ofício): a colocação exacta e gentil da câmara; o tempo dilatado e justo; as paredes portas e janelas assinalando um espaço real e perturbado (como se o real tivesse pernas e braços); um som que oprime (nos quartos) e liberta (o

Fazer como é possível

Trata-se de um compositor de polcas. Pestana, o mais famoso do momento, reconhecido e louvado por onde vá, procurado pelos editores, abastado materialmente. No entanto, Pestana odeia as suas polcas que toda a gente canta e executa, porque o seu desejo é compor uma peça erudita de alta qualidade, uma sonata, uma missa, como as que admira em Beethoven e Mozart. À noite, postado no piano, leva horas solicitando a inspiração que resiste. Depois de muitos dias, começa a sentir algo que prenuncia a visita da deusa e a sua emoção aumenta, sente quase as notas desejadas brotando dos dedos, atira-se ao teclado e… compõe mais uma polca! Polcas e sempre polcas, cada vez mais brilhantes e populares é o que faz até morrer. A alternativa é negada também a ele; só lhe resta fazer como é possível, não como lhe agradaria. Neste conto terrível [de Machado de Assis] sob a leveza aparente do humor, a impotência espiritual do homem clama como do fundo de um ergástulo. Antonio Candido, O direito à literat
Edição Língua Morta.
Slawomir Mrozek. Sábado, 31 de Janeiro, nas Leituras do Gato Vadio, a partir das 17h00.

Quero ser cavalo

Como eu gostava de ser cavalo... Bastava que, ao olhar para o espelho, pudesse ver, em vez de pés e mãos, cascos e uma cauda no traseiro e uma cabeça de cavalo autêntica, para ir direito ao departamento de habitação... «Quero um andar grande e moderno», diria. «Tem de preencher uma requisição e esperar a sua vez.» «Ah, ah, ah», havia de rir. «O cavalheiro não vê que não sou nenhum vulgar homem da rua? Sou diferente, sou especial.» Logo a seguir, dar-me-iam um grande e espaçoso andar com casa de banho. Faria espectáculos numa revista e ninguém se atreveria a dizer que não tinha talento - mesmo se o texto não prestasse. Pelo contrário, haviam de elogiar-me. «Não é uma maravilha, para um cavalo?», diriam. «Que cabeça!», comentariam outros. Depois viria todo o gozo dos ditados e provérbios: «Senso de cavalo», «A cavalo dado não se olha o dente», «Um reino para um cavalo», «Um cavalo cinzento»... Havia de despertar o interesse das mulheres. «Você é tão diferente», diriam. E, quan

Sábado, 31 de Janeiro, a partir das 17h00, no Gato Vadio

A imagem, magnífica como sempre, é do Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Uma mariposa pousada no tecto

Era o último dia da vida de Emiliano Leprini. Todos o sabiam. Emiliano Leprini sabia-o também. Não devemos ser demasiado sensíveis e escrupulosos nos assuntos relacionados com a morte. A existência é assim mesmo: o fim é certo e há um dia para morrermos. Como disse, o último dia de Emiliano Leprini era exactamente aquele. Descalçou as pantufas, vestiu o seu melhor pijama de lã escocesa e deitou-se tranquilamente à espera. A tarde apagava-se, o sol mergulhava, ainda quente, no mar. A mulher era uma estátua de silêncio à sua cabeceira. Nesse momento, o moribundo observou uma mariposa que estava pousada no tecto. E não só a observou, como a estudou também (voltaremos a este assunto mais tarde, a menos que nunca mais voltemos). Um lenço subiu à fronte da mulher e procurou pudicamente absorver uma ou duas lágrimas tristes. Emiliano tinha sido de muito boa companhia durante toda a vida e um espírito muito pronto, jovial e afável. Dele ninguém podia dizer que fora uma pessoa de trato difíci

Antes das larvas terem morrido de tédio

O tio vivia numa ruela estreita junto a um convento. Ocupava um quarto amplo num rés-do-chão. ("Prefiro o rés-do-chão, meu caro senhor", costumava ele dizer, "a todas essas ideias modernistas de andares elevados e quejandos"). O seu quarto estava completamente cheio de livros velhos, grossos volumes ocupando estantes meio carcomidas pelo caruncho antes das larvas terem morrido de tédio. Slawomir Mrozek, O Elefante . Tradução de Yolanda Artiaga.

As doutrinas de Fourier

E examinaram as doutrinas de Fourier. Todas as desgraças vêm da coacção. Se a Atracção for livre a Harmonia há-de estabelecer-se. A nossa alma contém doze paixões principais, cinco egoístas, quatro anímicas, três distributivas. Tendem elas, as primeiras, para o indivíduo, as seguintes para os grupos, as últimas para os grupos de grupos, ou séries, cujo conjunto é a Falange, sociedade de mil e oitocentas pessoas, que habitam num palácio. Há carros que levam os trabalhadores para o campo todas as manhãs e os trazem à tarde. Usam estandartes, dão festas, comem bolos. Toda a mulher, se assim o quiser, possui três homens, o marido, o amante e o genitor. Para os solteiros, é instituído o Bailadeirismo. - Isto calha-me! - disse Bouvard; e perdeu-se nos sonhos do mundo da harmonia. Graças à restauração das condições climáticas a terra tornar-se-á mais bela, graças ao cruzamento das raças a vida humana será mais longa. Poderão dirigir-se as nuvens como agora se faz com os raios, choverá de