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Mensagens

Uma coleira, um pouco de bofe, alguma fortuna

Não podes manter-te neutro diante de um cão, como não podes manter-te neutro diante de um homem. Mas nunca dialogarás com uma árvore. Não podes viver diante de um cão porque o cão, a cada instante, pedir-te-á para o fazeres viver, o alimentares, o elogiares, seres homem para ele, seres o seu dono, seres o deus que troveja esse nome de cão que o fará deitar-se logo no chão. Mas a árvore nada te pede. Podes ser Deus dos cães, Deus dos gatos, Deus dos pobres, basta que tenhas uma coleira, um pouco de bofe, alguma fortuna, mas nunca serás dono de uma árvore. Nunca poderás fazer mais do que desejar transformar-te em árvore. Georges Perec, Um homem que dorme . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

Melhor do que nada

Andava eu de um lado para o outro, para trás e para diante, sem ideias, para trás e para diante, vazio como um pêndulo. Já não escrevia há largos, longos, longos dias. A minha situação era mais do que desesperada. De repente, tudo se incendiou e uma ideia brilhante atingiu-me em cheio, como um relâmpago estupendo. Que ideia era essa? Era uma ideia brilhante, uma ideia singular, tão brilhante e tão singular que receio não ser capaz de a reproduzir aqui devidamente. Talvez, talvez seja mais prudente classificar a ideia como bastante interessante. Ou, pelo menos, aceitável. Admito até que uma ou outra ovelha ranhosa a considere simplesmente pateta. A ideia consistia mais ou menos no seguinte: escondido atrás de uma paragem de autocarro, estava um enorme peixe a pescar homens. É ou não uma ideia engraçada? De olhos esbugalhados, medonhos, extáticos, esforçando-se por não fazer barulho, não se atrevendo a um único movimento, o peixe esperava há horas para pescar qualquer coisa, mas já q

Lenda brasileira

A moita buliu. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que saiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no chão. Quis puxar o gatilho e não pôde. - Deus me perdoe! Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do caçador e começou a comer devagarinho o cano da espingarda. Manuel Bandeira, Libertinagem . Próximo sábado, 28 de Março, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Próximo sábado, 28 de Março, pelas 17h00, no Gato Vadio

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Explorados, alienados, exaustos, miseráveis

Há qualquer coisa de faustiano neste drama [ O fim das possibilidades , de Jean-Pierre Sarrazac] em vários níveis, qualquer coisa que nos faz pensar não tanto no Fausto de Goethe como no do compositor Hanns Eisler, também ele autor de um Johann Faustus (1952), no qual Mefisto relata a Deus um marasmo de tal ordem que os homens, explorados, alienados, exaustos, miseráveis, não dispõem já de meios para cometer os pecados capitais. David Lescot.

1956-2015

E como fala e prega em nome de um modernismo feito moda, com palavrões rebuscados de significado fugitivo, o bom burguês - especialmente endinheirado, o parvenu - no seu pavor de parecer estúpido e na sua vergonha de confessar que não gosta e não entende, submete-se, aplaude e compra, detestando no fundo o que diz extasiá-lo. E pior: atribui-lhe um valor comercial. Henrique Galvão, Manuel Bandeira e o modernismo , 1956

Furtar livros

A maldição sobre Genet começou aos sete meses, idade com que sua mãe o abandonou em um orfanato público. (Ou talvez um pouco antes, quando Camille Genet o registrou como filho de pai desconhecido). E continuou ao longo da adolescência e da juventude, em razão da série de roubos que ele cometeu, responsável por levá-lo constantemente à prisão. Além dos lenços e tapetes pilhados das lojas de departamento que visitava, Genet acabou por se especializar em furtar livros. E um deles – uma edição de luxo da poesia de Paul Verlaine – quase o levou, em 1943, à prisão perpétua, maldição de que foi salvo pelo poeta Jean Cocteau. Texto completo aqui.

Conselhos práticos para todas as circunstâncias, incluindo a confecção de uma sopa de tomate

Que cada qual se aconselhe consigo próprio e ai daquele que não o possa fazer. Se se sair bem, alegre-se com a sua sabedoria e a sua felicidade; se se sair mal aqui estou para lhe dar uma mão. Quem deseje ver-se livre dum mal, sabe sempre o que quer; quem deseje coisa melhor do que tem é rematadamente cego... Sim, sim! riam-se vocês... mas isso é tal e qual o jogo da cabra-cega, que quer agarrar o que deseja; mas quê? Vocês façam o que quiserem; que será sempre o mesmo. Andem com os amigos ou afastem-nos para o lado; é tudo a mesma coisa. Já vi malograr-se o mais judicioso e triunfar o mais absurdo. Não quebrem a cabeça e se deste ou daquele modo a coisa lhes sair mal não desanimem também. Goethe, As afinidades electivas . Tradução de Beatriz de Mascarenhas

Basta o primeiro parágrafo

Nos meados do século dezasseis, vivia nas margens do Havel um negociante de cavalos chamado Michael Kohlhaas, filho de um mestre-escola, um dos homens mais correctos e ao mesmo tempo mais terríveis do seu tempo. Este homem pouco vulgar teria podido ser considerado, até aos trinta anos, um modelo de bom cidadão. Possuía uma quinta numa aldeia que ainda hoje usa o seu nome e ali vivia tranquilamente ganhando a vida com a sua profissão; crescera no temor de Deus e educava os filhos que a mulher lhe dava no respeito pela lealdade e pelo trabalho; nenhum dos seus vizinhos tinha que dizer da sua generosidade e honestidade. Resumindo: o mundo decerto viria a abençoar-lhe a memória se não tivesse acontecido ele exagerar numa das suas virtudes: o sentimento inato da justiça transformou-o num salteador e assassino. Heinrich von Kleist, Michael Kohlhaas, o rebelde . Tradução de Egito Gonçalves.

Como é que acontece?

Ora, numa noite de Fevereiro de 1974, tive de sair de casa para comprar um remédio para o meu filho, que estava doente. Enquanto conduzia em direcção à farmácia, surgiram-me de repente, e sem que eu estivesse a pensar sequer nesse ou em qualquer outro dos sonetos [de Shakespeare], o primeiro verso de uma versão em português, e em alexandrino, do soneto 130 ("My mistress' eyes are nothing like the sun"). O resto foi bem rápido. Tão rápido que, nesse mesmo mês de Fevereiro de 1974, acabei por traduzir 35 sonetos... Normalmente pegava na colectânea e ia lendo e relendo, até que se me desencadeava em português a forma incial dos textos de que depois, com alguma minúcia e bastante liberdade, procurei encontrar o equivalente na nossa língua: ou que, para usar uma bela expressão de Carlos de Oliveira, procurei reescrever em português . Bom, e a partir daí... Vasco Graça Moura.

Consumir-se uma pessoa a vida inteira

O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me, a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para que! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? Graciliano Ramos, S. Bernardo .

O homem mais feliz do mundo

Imagine-se isto: um homem chamado Joseph Haacke perde a visão de um dia para o outro. O caso apanha-o de surpresa porque nunca sofreu de problemas oftalmológicos. Os médicos informam-no que a cegueira é irreversível e que se há coisas sem explicação esta é uma delas. Calcule-se a sua angústia. Em pouco tempo, mergulha na mais profunda tristeza e solidão. Para minorar a dor, ordena ao filho mais novo que lhe leia um livro todos os dias. Não é coisa que satisfaça o rapaz, pois detesta ler. No entanto, para não contrariar o pai, sujeita-se ao seu capricho. Pelo menos ao pobre homem assim parece. Na verdade, o rapaz não lê coisa nenhuma, mas inventa histórias, pronunciando cuidadosamente cada palavra, sugerindo a posição de cada ponto final e de cada vírgula, como se estivesse a recitar livro atrás de livro. Ao princípio, arrisca a composição de pequenos contos. Depois, lança-se em extensos romances, cada vez mais complexos. O rapaz desempenha a sua missão com todo o tacto, inventando ta

Namorada

Depois que vê a garota ele corre se olhar no espelho: não pode negar, meio feio? quase feio? Numa palavra, feio. Dia seguinte desiste do bigode ralo. Quem sabe costeleta ou cavanhaque? A menina o enfeitiça. Possuído, sim. Febrícula, sonho delirante, falta de ar, sede mas não de água.  Ela surge enrolada no garfo do suculento espaguete à bolonhesa. De sainha xadrez na primeira tarde, ó deliciosa bolacha Maria com geleia de uva. Formigas de fogo mordem sob a camisa quando ela vem na rua, brincando com o arco-íris na ponta dos dedos.  Consegue afinal apertar-lhe a mãozinha na luva de crochê, ri (descuidoso de ser feio) dentro de seus olhos glaucos. Discutem o narizinho, quem sabe arrebitado, segundo ela. E para ele, nada mais bonito que tal narizinho.  Meio do sono acorda, olho arregalado no escuro. A sua imagem o percorre, impetuoso vento por uma casa de portas abertas. Ninguém por perto, fala sozinho. A mãe o acha mais magro. Quem dera ser o terceiro motociclista do Globo da Mort

Do you want my biography? Here it is.

I was born in Taganrog in 1860. I finished the course at Taganrog high school in 1879. In 1884 I took my degree in medicine at the University of Moscow. In 1888 I gained the Pushkin prize. In 1890 I made a journey to Sahalin across Siberia and back by sea. In 1891 I made a tour in Europe, where I drank excellent wine and ate oysters. In 1892 I took part in an orgy in the company of V. A. Tihonov at a name-day party. I began writing in 1879. The published collections of my works are: “Motley Tales,” “In the Twilight,” “Stories,” “Surly People,” and a novel, “The Duel.” I have sinned in the dramatic line too, though with moderation. I have been translated into all the languages with the exception of the foreign ones, though I have indeed long ago been translated by the Germans. The Czechs and the Serbs approve of me also, and the French are not indifferent. The mysteries of love I fathomed at the age of thirteen. With my colleagues, doctors, and literary men alike, I am on the best of te

Próximo sábado, 28 de Fevereiro, pelas 17h00, no Gato Vadio

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Novo volume da Colecção Avesso, em breve

Está a chegar um novo volume da Colecção Avesso, "Quartos Alugados", o mais recente livro de contos de Alexandre Andrade, com prefácio de Cristina Fernandes. É o volume n.º 5 da Colecção. Nas livrarias em breve. Mais informações no blogue da Colecção Avesso, disponível aqui.

Uma história sobre cavalos

Um homem passeia-se de eléctrico por toda a cidade. Há vários dias que não faz outra coisa. Na verdade, é a única coisa que sabe fazer. O autor teve que se ausentar por certas razões, talvez para comprar ervilhas*, e esqueceu-se dele. Talvez se tenha esquecido dele para sempre. No entanto, tranquilo e alegre, o homem continua a desempenhar o seu papel com a mais canina das fidelidades. Sai de um eléctrico e entra no seguinte. Termina uma viagem e começa outra. Avança um pouco pelo corredor, escolhe um lugar à janela e senta-se calmamente a gozar a vista. As ruas a desenrolarem-se enquanto ele segue refastelado no seu confortável banco de eléctrico, com um prazer doce, meigo e lento, recostado e com os braços cruzados sobre o peito, de uma maneira muito edificante. Como um imperador, nobre e magnânimo, sentado no seu trono, sorrindo de modo quase imperceptível, como se uma mosca lhe tivesse feito cócegas. Entretanto, o sol nasce todas as manhãs, percorre o céu e põe-se todas as tardes