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Mensagens

Esfregar a barriga sem tirar as mãos dos bolsos

- Tu dizes que a arte não deve excitar o desejo - repôs Lynch - Já te contei que um dia escrevi o meu nome, a lápis, no traseiro da Vénus de Praxíteles, no Museu. Não seria isso desejo? - Estou a falar de naturezas normais - explicou Stephen. - Também me contaste que quando eras criança, na tua inefável escola carmelita, comias pedaços secos de bosta de vaca. Lynch não pôde conter-se e soltou de novo as suas risadas vagas, esfregando outra vez a barriga, mas sem tirar as mãos dos bolsos. - Mas comi! Mas comi! - exclamava ele. (...) - E não te esqueças, peço-te, que, muito embora tenha comido outrora um bolo de bosta de vaca, admiro unicamente a beleza. James Joyce, Retrato do artista quando jovem . Tradução de Alfredo Margarido.

Tú leíste Palomita Blanca? Cuéntamela

Es fascinante lo que hizo Raúl Ruiz cuando adaptó Palomita blanca. Era una novela que estaba muy de moda en Chile; la había escrito Lafourcade, por quien Raúl no tenía ningún tipo de respeto. Entonces aceptó el desafío pero dijo que no iba a leer la novela. Cómo hacer la adaptación de una novela que no vas a leer. Hizo algo fascinante: convocó desde las revistas para adolescentes al cásting para buscar a Palomita Blanca, se armó una fila larguísima y él las filmó a todas. Entonces les preguntaba “¿Tú leíste Palomita Blanca? Cuéntamela”. Las que la habían leído le contaban lo que se acordaban, y las que no la habían leído inventaban. Con la mezcla de lo que se acordaban más lo que inventaban él hizo la película. En el fondo es una manera fantástica de quedarte con el espíritu de la novela. Gonzalo Maza.

Plano para acabar com o mundo

Wilbert Frederick tinha um plano para acabar com o mundo. Um plano diabólico e terrivelmente eficaz. Dizer que ele fervia de entusiasmo com a ideia, como se estivesse possuído por mil demónios enegrecidos, é pouco. Pela primeira vez na vida, sentia-se feliz. Uma felicidade que se adivinhava pelas gargalhadinhas maldosas e frases ameaçadoras, debitadas de enfiada sem pontos nem vírgulas. Ora, antes de pôr a coisa em marcha, e como é usual em tais ocasiões, Wilbert Frederick guardou o plano num cofre. Um cofre secreto e inviolável, cuidadosamente fechado com uma chave também ela inviolável e secreta. Depois, esfregando as mãos como um actor de teatro, saiu de casa para beber uma cerveja. Pois bem, por alguma manobra do destino difícil de explicar, perdeu a chave no caminho. E apesar de todos os esforços para a recuperar, esta nunca mais apareceu e o cofre não mais foi aberto. Wilbert mergulhou então no mais horrível desespero, enredando-se num discurso alucinado, em que infância e erva
Van Gogh, 1886.

Títulos

Um drama, mesmo quando nos pinta paixões ou vícios que têm nome, incorpora-os de tal maneira na personagem que os seus nomes são esquecidos, os seus caracteres gerais se apagam, enquanto nós deixamos por completo de pensar neles para pensarmos na pessoa que os absorve; é por isso que o título de um drama dificilmente deixará de ser um nome próprio. Em contrapartida, numerosas comédias têm um nome comum: O Avarento , O Jogador , etc. Se nos pedirem uma peça que possa chamar-se, por exemplo, O Ciumento , ocorrer-nos-á ao espírito Sganarelle ou George Dandin , mas não Otelo ; um título como O Ciumento só pode ser um título de comédia. Henri Bergson, O Riso . Tradução de Miguel Serras Pereira.

Solavancos

Se quereis escrever sobre um calmo e doce amor, tomai o autocarro n.º 7, da Praça Lubianski à Praça Noguine. Os terríveis solavancos farão sobressair admiravelmente o encanto de uma vida diferente. Os solavancos são indispensáveis para a comparação. Vladimir Maiakovski, Como fazer versos . Tradução de Maria Manuela Ferreira.

O máximo de sabor possível

Ao falar sobre a nova etapa de sua trajetória, a “idade de outra experiência, a de desaprender”, [Roland] Barthes escreveu: “Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia : nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”. Texto completo aqui.

Trinta chaves para escrever contos e romances

Como atrair a atenção do leitor? Com números de contorcionismo, acrobacias em cavalos ou bicicletas, pirâmides humanas, voos no trapézio, demonstrações de pirofagia, palhaçadas, lançamento de facas e travessias na corda bamba. Quando há uma história? Quando há uma história. O que nos faz continuar a ler? Livro, sol, uma mesa de esplanada, café, óculos. Que tipo de leitor procuramos? Um leitor. Como construir uma personagem? Construindo uma personagem. Como conceber e planificar uma narrativa? Com papel e esferográfica. Ou lápis. Descrever de mais ou de menos? Descrever mais ou menos. Para que servem os diálogos? Para matar o tempo. Como trabalhar com o quotidiano? Levantar de manhã, tomar o pequeno-almoço, apanhar o autocarro para o trabalho, trabalhar, almoçar, trabalhar, apanhar o autocarro para casa, fazer o jantar, jantar, deitar, dormir. Como evitar os clichés? Saber quem são, onde costumam estar e não frequentar os mesmos locais.

A bookstore in the desert

When I opened up, the police parked across the street on a dirt road. I was wondering what they were doing, and they were wondering what I was doing. They came every day for about two weeks. We found out they thought it was a front, because nobody would open a bookstore in the desert. Daniel Cronkhite.

Uma coleira, um pouco de bofe, alguma fortuna

Não podes manter-te neutro diante de um cão, como não podes manter-te neutro diante de um homem. Mas nunca dialogarás com uma árvore. Não podes viver diante de um cão porque o cão, a cada instante, pedir-te-á para o fazeres viver, o alimentares, o elogiares, seres homem para ele, seres o seu dono, seres o deus que troveja esse nome de cão que o fará deitar-se logo no chão. Mas a árvore nada te pede. Podes ser Deus dos cães, Deus dos gatos, Deus dos pobres, basta que tenhas uma coleira, um pouco de bofe, alguma fortuna, mas nunca serás dono de uma árvore. Nunca poderás fazer mais do que desejar transformar-te em árvore. Georges Perec, Um homem que dorme . Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.

Melhor do que nada

Andava eu de um lado para o outro, para trás e para diante, sem ideias, para trás e para diante, vazio como um pêndulo. Já não escrevia há largos, longos, longos dias. A minha situação era mais do que desesperada. De repente, tudo se incendiou e uma ideia brilhante atingiu-me em cheio, como um relâmpago estupendo. Que ideia era essa? Era uma ideia brilhante, uma ideia singular, tão brilhante e tão singular que receio não ser capaz de a reproduzir aqui devidamente. Talvez, talvez seja mais prudente classificar a ideia como bastante interessante. Ou, pelo menos, aceitável. Admito até que uma ou outra ovelha ranhosa a considere simplesmente pateta. A ideia consistia mais ou menos no seguinte: escondido atrás de uma paragem de autocarro, estava um enorme peixe a pescar homens. É ou não uma ideia engraçada? De olhos esbugalhados, medonhos, extáticos, esforçando-se por não fazer barulho, não se atrevendo a um único movimento, o peixe esperava há horas para pescar qualquer coisa, mas já q

Lenda brasileira

A moita buliu. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que saiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no chão. Quis puxar o gatilho e não pôde. - Deus me perdoe! Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do caçador e começou a comer devagarinho o cano da espingarda. Manuel Bandeira, Libertinagem . Próximo sábado, 28 de Março, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Próximo sábado, 28 de Março, pelas 17h00, no Gato Vadio

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Explorados, alienados, exaustos, miseráveis

Há qualquer coisa de faustiano neste drama [ O fim das possibilidades , de Jean-Pierre Sarrazac] em vários níveis, qualquer coisa que nos faz pensar não tanto no Fausto de Goethe como no do compositor Hanns Eisler, também ele autor de um Johann Faustus (1952), no qual Mefisto relata a Deus um marasmo de tal ordem que os homens, explorados, alienados, exaustos, miseráveis, não dispõem já de meios para cometer os pecados capitais. David Lescot.

1956-2015

E como fala e prega em nome de um modernismo feito moda, com palavrões rebuscados de significado fugitivo, o bom burguês - especialmente endinheirado, o parvenu - no seu pavor de parecer estúpido e na sua vergonha de confessar que não gosta e não entende, submete-se, aplaude e compra, detestando no fundo o que diz extasiá-lo. E pior: atribui-lhe um valor comercial. Henrique Galvão, Manuel Bandeira e o modernismo , 1956

Furtar livros

A maldição sobre Genet começou aos sete meses, idade com que sua mãe o abandonou em um orfanato público. (Ou talvez um pouco antes, quando Camille Genet o registrou como filho de pai desconhecido). E continuou ao longo da adolescência e da juventude, em razão da série de roubos que ele cometeu, responsável por levá-lo constantemente à prisão. Além dos lenços e tapetes pilhados das lojas de departamento que visitava, Genet acabou por se especializar em furtar livros. E um deles – uma edição de luxo da poesia de Paul Verlaine – quase o levou, em 1943, à prisão perpétua, maldição de que foi salvo pelo poeta Jean Cocteau. Texto completo aqui.