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Mensagens

Próximo sábado, 5 de Março, 17h00, no Gato Vadio.

Imagem de Luís Nobre, dos Lina&Nando .

Plano

Começa sempre pelo princípio. Pega numa caneta e numa folha de papel. O que tens vestido? Muito bem, escreve. Acrescenta mais uma camisola, um par de meias, luvas. O que tens calçado? Botas, sapatos, chinelas de quarto? Escreve. Onde estavas há uma hora? No autocarro, na rua, em casa, na cama? Escreve. De que precisas agora? Tabaco, vinho, café? Escreve. Um saca-rolhas? Escreve. O rádio ligado? Escreve. Escreve tudo até ao fim. Não deixes nada por dizer, escreve até esgotares as coisas que te rodeiam, os fantasmas, a imaginação. De seguida, lê com cuidado o que escreveste para teres a certeza de que não falta nada. Depois volta a verificar e corta tudo o que pode ser dispensável. Depois, risca tudo. Depois, queima o papel. É este o plano que deves seguir sempre.
Dedicatória de Três ingleses no estrangeiro , de Jerome K. Jerome.

Indicações de cena

O Conde de Eu e Visconde de Qualquer Coisa entra pelo fundo (as pernas um pouco arqueadas), fecha o guarda-chuva e coloca-o a um canto. Depois, senta-se, tira os sapatos de borracha, atira-os para debaixo do sofá, desenrola o cache-nez e desdobra a bainha da calça. Arrota e esfrega o nariz. Arrota outra vez e adormece. Talvez para sempre.

Paciência, Sísifo!

Sísifo empurrava um enorme porco ladeira acima. O porco grunhia e tentava por todos os meios escapar a Sísifo. Este segurava e empurrava o animal, empenhando nisso todas as suas forças. Assim que chegava ao topo, uma mão invisível libertava o porco, que corria, grunhindo de alívio, ladeira abaixo. Sísifo descia, capturava o animal e recomeçava o trabalho, uma e outra vez, por toda a eternidade. Paciência, Sísifo!

Nem o autor saberia dizer muito bem qual a sua “intenção”

Antigamente, traduzir era, cientificamente, “impossível” (apesar de haver tradução desde sempre…), já que não temos acesso à “intenção do autor” e que existem termos “intraduzíveis” de umas culturas ou outras; o tradutor era um “traidor”, por mais que tentasse ser “fiel” à obra, e esta era sempre “perfeita”, enquanto que a tradução, “diferente”, sempre “inferior”, sempre fadada ao fracasso, sempre destinada a “perder” coisas aqui e ali. Hoje em dia, em grande parte graças aos desconstrutivistas, sabemos (ou ao menos, rosianamente, desconfiamos) que, de qualquer forma, nem o autor saberia dizer muito bem qual a sua “intenção” (lembro de uma anedota do escritor que foi resolver questões de vestibular sobre seu próprio livro e foi reprovado…), que existem termos “intraduzíveis” que são perfeitamente explicáveis, que as obras não são algo fixo, rijo e uno, e que, portanto, tendo em vista a pluralidade de pontos de vista possíveis e a historicidade de que estão impregnados tanto os autores
Leonid Pasternak (1862-1945)

Variações sobre o mesmo tema

Dois homens entram num bar. Grillparzer e Hebbel entram num bar. Um ser de ferro e uma serpente entram num bar. La Fontaine e uma doninha entram, de rompante, num bar. Um pavão e as ruínas do Castelo de Heidelberg entram num bar. Um autor famoso e um autor de que ninguém fala entram num bar. Um romance de Dostoiévski e uma tragédia grega entram num bar. Uma nuvem e um cavaleiro montado no seu garboso cavalo entram num bar. O orgulho sereno de Gluck e a bondade de coração de Haydn entram num bar. A rigidez e a insociabilidade nórdico-protestantes entram, de braço dado, num bar. Uma obra de arte e o sentido profundo da língua entram, completamente ébrios, num bar.

Uma volta à cadeira

Na região de Chao-chou, uma velha mulher enviou ao mestre um donativo pedindo-lhe que recitasse toda a colecção de sutras budistas. Ao ouvir o pedido, o mestre levantou-se e deu uma volta à cadeira. Depois disse: “Acabo de recitar toda a colecção de sutras”. Quando o mensageiro regressou e transmitiu à mulher a resposta de Chao-chou, ela perguntou: Pedi a Chao-chou que recitasse toda a colecção de sutras. Por que motivo ele não recitou senão metade? Koan incluído no ensaio Koans in the Dogen tradition: How and why Dogen does what he does with Koans , de Steve Heine. Tradução de Rosa Maria Martelo.
El sueño del caballero , ou Desengaño del Mundo , de Antonio de Pereda, circa 1650.

Uma bela manhã

O traseiro de Bastian era o sítio para onde convergiam todos os pés. Homens, mulheres, velhos, novos, padres, políticos, altos ou coxos, ninguém se poupava a um belo pontapé no traseiro de Bastian. Era um hábito que fazia parte da vida da cidade. Os pontapés sucediam-se nas ruas, nos transportes públicos, nos cafés e no escritório, com a precisão de um relógio solar. Durante a noite ainda ia tudo bem. Mas de manhã o martírio do pobre homem começava. Havia sempre alguém com vontade de desferir um panásio certeiro. E ao fim do dia, esgotado, abatido, amarrotado, com o traseiro moído de pancadas, arrastava-se até casa. Apesar disso, Bastian conservava a impassibilidade de um santo de altar. Era um homem pacífico, incapaz de fazer mal a uma mosca. Tossia, arqueava as sobrancelhas, acendia um cigarro, e lá ia andando e apanhando pontapé atrás de pontapé. Mas por que razão não punha ele termo àquilo? Por que não fazia qualquer coisa, por que não tomava uma atitude? Os anos foram passando,

Próximo sábado, 6 de Fevereiro, no Gato Vadio, Porto

A imagem é do Luís Nobre, dos Lina&Nando . A entrada é livre.

I knew Bartok

I used to be a professional musician, playing in a string quartet in the 1960s’, says Richard Sennett smiling. ‘And there was this one woman in particular who came to see us perform all six of the Bartok Quartets in Chicago over the course of a single weekend. Playing all six is very hard to do, and, at the end, I was longing for a drink and a cigarette. And the woman came up to me and said, “How beautiful that was. You know, I knew Bartok.” And I thought, goodness, this can’t be true. And then she said, “Yes, my name’s Hannah Arendt”, and, after sort of fainting on the floor, we took her out for a drink. Richard Sennett.

Tisana 212

Era uma vez um país de coveiros. Apertados uns contra os outros abriam as respectivas covas dos inimigos, correspondendo fielmente à sua mútua inimizade. As pás subiam e desciam brilhantes, aéreas, rítmicas, e a terra era atirada de uma cova para outra, numa chuvada feericamente pesada. Nesse país todos estavam enlouquecidos pelo desejo de retribuir a retribuição. Tinham muito sangue português. Ana Hatherly, 463 Tisanas. Próximo sábado, 6 de Fevereiro, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Digo-não-digo

Digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, digo-não-digo, não-digo.

Tisana 83

Era uma vez um mono-asa. Como era mono-asa só podia voar numa direcção. Mas a generosa natureza tinha tomado as suas providências e assim ao mono-asa não importava nada saber para onde ia ou donde vinha. Por isso a sua asa tinha o aspecto de uma barbatana e a maior parte das vezes servia-lhe de leque. Ana Hatherly, 463 Tisanas.

Tisana 10

Nesse dia eu lera um artigo em que se falava da evolução das artes e se concluía que nada nos restava já fazer uma vez que tudo estava feito já e nada lhe poderíamos acrescentar. Fiquei a pensar seriamente no assunto durante um certo tempo. Até que finalmente compreendi. Dirigi-me para o meu escritório sentei-me à secretária tirei da gaveta uma folha de papel e comecei a escrever um longo telefonema. Praticando mais uma vez aquilo a que chamo a prova de resistência dos materiais poéticos chamei o meu porco Rosalina e pedi-lhe que o lesse e depois mo enviasse pelo correio. Ana Hatherly, 463 Tisanas .

He's the only human being

Daqui.