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Mensagens

Próximo sábado, 4 de Junho, no Gato Vadio.

Imagem de Luís Nobre, da dupla Lina&Nando .

Trinta

Às dez da manhã, um senhor gordo, com barba, de fato um pouco amarrotado, apercebeu-se de que tinha o dom de fazer milagres. Bastava um gesto muito simples: fazer deslizar o polegar da mão direita pelas pontas do indicador, médio e anelar da mesma mão. Naturalmente, da primeira vez acontecera por acaso, e curara um gato aflito, instantaneamente. Tratava-se de milagres, não de «realizações de desejos». Quando fez aquele gesto e pediu dinheiro - precisou a importância, bastante razoável - não aconteceu nada. Tinha de ajudar alguém. Curou uma criança, acalmou um cavalo, aplacou as fúrias de um louco homicida, manteve em equilíbrio uma parede que ameaçava cair sobre avós e netinhos. Repugnante: não havia outra palavra. Jamais teria acreditado que ser taumaturgo fosse tão - como dizer? - cheap . O ponto a favor do senhor gordo era só um, mas importante: não era um crente. Não era, propriamente, ateu, pois não tinha um espírito filosófico; mas as religiões, todas elas, davam-lhe nojo. E por

A máquina de Shelley

Shelley tinha um sonho: construir a maior e mais bela máquina do mundo. A esse sonho dedicou uma vida inteira de trabalho e todas as suas energias. Pois bem, eis o resultado do seu longo e minucioso esforço: uma colossal máquina luzidia, de esplendorosa beleza e extraordinária complexidade. À primeira vista, parecia uma máquina de cortar árvores. Ou talvez um mecanismo para despedaçar pedras. Com todos os componentes minuciosamente articulados entre si, tambores e tirantes, engrenagens e correias, válvulas e manómetros, rolamentos e cilindros oscilantes. A verdade, porém, é que a máquina não servia para rigorosamente nada. De qualquer maneira, o gigante de ferro causou ampla sensação. E de toda a parte vinham curiosos só para o contemplar. Tiravam o chapéu com gravidade respeitosa e olhavam para o mecanismo de olhos muito fixos e boca aberta. Enquanto Shelley, nitidamente satisfeito com o seu sucesso, saltitava entre uma nuvem e outra, agitando umas gloriosas asas imaginárias, para c

Desassossego

Since classical times, their appeal has been understood, and artists have had to accept that what they leave unfinished may be exposed to the public, and may even be more admired than their finished productions. Some may embrace this enthusiasm for the unfinished and produce works which encapsulate the effect, featuring blank spaces and unstarted areas that were never intended to be any different from their scrappy appearance. Philip Hensher.

Queria acender o cachimbo

Sim, [o pope Ivan] era um bom sacerdote. A sua morte foi, porém atroz. Um dia tinha saído toda a gente, e o pope , que estava embriagado, ficara sozinho em casa, metido na cama. Deu-lhe vontade de fumar. Levantou-se e, cambaleando, aproximou-se da chaminé, onde havia uma boa fogueira. Queria acender o cachimbo, mas, como tinha bebido muita aguardente, não pôde manter o equilíbrio e caiu sobre o lume. Quando voltaram os seus, apenas lhe encontraram as pernas. Causou muita pena o bom sacerdote; mas, como dele só restavam as pernas, nenhum médico do mundo o podia curar.  Vladimir Korolenko, O sonho de Macar . Tradução de Benvinda Caires.

Um deles seria a Noite

Um joven escritor contou-me que viu cinco ou seis garotos brincarem à guerra num jardim público. Divididos em dois grupos, preparavam-se para o ataque. A noite ia descer, diziam eles. Mas no céu era meio-dia. Decidiram, então, que um deles seria a Noite. Transformado em elementar, o mais jovem e mais franzino foi, então, o Senhor dos Combates. "Ele" era a Hora, o Momento, o Inelutável. Ao que parece, chegava de muito longe com a calma de um ciclo, mas entorpecido pela tristeza e pela pompa crepusculares. À medida que se aproximava, os outros, os Homens, ficavam nervosos, inquietos… mas a criança, fazendo como lhe parecia, chegava cedo de mais. Estava adiantada a si própria: por comum acordo, as Tropas e os Chefes decidiram suprimir a Noite, que passou a ser soldado de um dos campos… Só a partir desta fórmula um teatro conseguiria encantar-me. Jean Genet, No sentido da noite . Tradução de Aníbal Fernandes.

Parece que se poderia deslocar a terra

Gáguine abriu em frente de mim todas as suas telas. Nesses estudos havia muita vida e verdade, uma certa liberdade e largueza, mas nenhum estava terminado e, quanto ao desenho, pareceu-me um pouco descuidado e pouco justo. Disse-lhe a minha opinião com toda a franqueza. - Oh! sim - concordou ele com um suspiro -, o senhor tem razão: tudo isto é muito mau e não está amadurecido. Mas que fazer? Não estudei como era preciso, e depois esta nossa maldita inércia dá cabo de tudo. Enquanto se sonha com o trabalho, paira-se como uma águia: parece que se poderia deslocar a terra; mas, logo que se chega à execução, sentimo-nos fracos e fatigados. Ivan Turguenév, Ássia . Tradução de Benvinda Caires.

Tempo e dinheiro

Mais do que os outros, os romancistas ingleses cultivaram o romance da high life , e os franceses que, como Custine, quiseram escrever em especial romances de amor, tiveram primeiro o cuidado, e muito judiciosamente, de dotar os seus personagens de fortunas suficientemente grandes para pagarem sem dificuldade todas as suas fantasias; além disso, dispensaram-nos de qualquer profissão. Estes seres não têm outro estado senão cultivarem a ideia do belo na sua pessoa, satisfazerem as suas paixões, sentirem e pensarem. Possuem assim, ao seu dispor e em larga medida, tempo e dinheiro, sem os quais a fantasia, reduzida ao estado de divagação passageira, não pode de modo algum traduzir-se em acção. Charles Baudelaire, O pintor da vida moderna . Tradução de Adolfo Casais Monteiro.

Oração para não pagar impostos

seiscentas vezes por dia, em jejum Pai moço, que mijais ao Léu, panificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso ranho; seja a eito a vossa pontada, assim na berra como no breu. O cão nosso de cada tia nos dai hoje; perdulai-nos as nossas imensas assim como nós penduramos a quem nos tem estendido; e não vos deixeis latir em cada cão, mas lixai-nos num vale. (…) Júlio Henriques, Modas & Bordados d'Alice Corinde . Próximo sábado, 7 de Maio, pelas 17h00, no Gato Vadio.

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O importante incêndio que desde anteontem alastra na zona centro não foi afinal oficialmente confirmado. Segundo o comandante das corporações de bombeiros que deveria encontrar-se no local, entrevistado em casa pela nossa reportagem, à hora de jantar, o referido fogo, com uma frente de dez a quinze quilómetros e que terá já destruído cento e cinquenta hectares de eucaliptais, não terá afinal ocorrido. Segundo palavras do Sr. Comandante Alves Sousa, «fomos portanto de facto alertados para o sinistro a que se refere, mas não o conseguimos comprovar por falta de meios técnicos, de modo que portanto regressamos à base». Pudemos de resto confirmar, junto do Instituto Nacional de Estatística, que há ainda, em todo o país, vastas zonas arborizadas devidamente aptas a arder nas melhores condições. Júlio Henriques, Deus tem caspa . Próximo sábado, 7 de Maio, pelas 17h00, no Gato Vadio.

Unsophisticated manner

Before going any farther, let me digress momentarily to admit that I am and will be referring to genre in a fairly unsophisticated manner. I believe that it is generally more productive to think of a work as exhibiting certain generic characteristics, rather than belonging to a genre. Christine Dunbar.

Próximo sábado, 7 de Maio

Imagem de Luís Nobre, da dupla Lina&Nando .

Uma bela vida

Antes de tudo tomar o rumo feliz que tomou, as coisas eram muito diferentes. Giovanni Capirola não tinha descanso. Todas as madrugadas, ainda antes de o dia despontar, os pássaros acordavam-no com uma autêntica avalanche de chilreios e assobios. E cumpriam tão fervorosamente as suas obrigações matinais, que Giovanni não se lembrava de ter dormido uma noite inteira em toda a sua vida. E isso custava-lhe muitos desgostos. E foi assim, dia após dia, ano após ano. Desde que nasceu. Ora, ao fim de todo aquele tempo de convívio, Giovanni tornara-se capaz de imitar a linguagem misteriosa e rebuscada dos pássaros, até aos mais ínfimos pormenores. Conseguia enganar qualquer criatura com penas, mesmo as mais desconfiadas. Atraía-as com chamamentos amorosos, por exemplo, e depois caçava-as com as próprias mãos. Um após outro, posso assegurá-lo, todos os pássaros desapareceram. Todos menos um. Giovanni poupou um pintassilgo ( Carduelis carduelis ), a que deu o nome de Sofia Von Fulda e que tomou

Oh, valha-me deus!

Penso que não há dúvida alguma quanto à vocação cristã de Bau­delaire, mas é bom lembrar que há um abismo entre essa vocação e o que se poderia entender como sua atuação cristã. O que mais desconcerta no tocante a essa questão é perceber a fá­ustica oscilação de Baudelaire entre Deus e o Diabo, o que o le­va amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de maniqueísmo, o que se agrava devido ao uso que fazia o poeta de termos litúrgicos inadequados e cujo exato sentido ele decerto não chegou a compreender. Por isso mesmo, sempre que abordam temas religiosos, seus poemas acusam uma dupla impertinência: a da linguagem e a das noções expressas por essa linguagem. Há que se en­tender ainda que Baudelaire não era propriamente uma anima naturaliter chris­tiana, e sim uma anima natu­ra­liter religiosa, capaz, portanto, de criar uma religião particular que nenhuma relação guardasse com a religião tradicional, como acontece no poema “As litanias de Satã”, no qual o poeta estabelece um

O aspirador

Gramática para estrangeiros

Mesóclise Emprega-se a mesóclise quando o verbo estiver no futuro do presente ou no futuro do pretérito do indicativo, desde que não se justifique a próclise. O pronome fica intercalado ao verbo. Observações: a) Havendo um dos casos que justifique a próclise, desfaz-se a mesóclise. b) Com esses tempos verbais (futuro do presente e futuro do pretérito) jamais ocorre a ênclise. c) A mesóclise é colocação exclusiva da língua culta e da modalidade literária.

A mais bela asa do mundo

Boniface desejava ganhar asas e voar. Um desejo que, obviamente, não tem nada de extraordinário. Em toda a parte há gente que gostaria de voar, mas não como ele. Boniface estava possuído por aquela ideia. A obsessão era tão completa que, no seu pensamento, não restava espaço para mais nada. E tanto desejou voar que em Março de mil novecentos e cinquenta e três, pof , transformou-se em nada menos do que uma asa. Vejam como são as coisas. Uma asa imensa. A mais bela asa do mundo. Tão bela quanto superlativa e brilhante. Não havia ave cuja inveja ela não excitasse. Nem nos seus sonhos mais loucos isto lhe passara pela cabeça. Pois muito bem. Agora, uma pergunta: o que podia ele fazer sendo apenas uma asa? Apesar das longas penas douradas com raros toques de púrpura azul ou violeta, lamento dizê-lo, uma asa não chega para voar. Boniface viu subitamente o caso descarrilar. Oh, não, não, não, dez mil vezes não! Cheio de arrependimento – pobrezinho! –, pensava na vida segura e sem imprevistos

Tanta bestagem em letra de fôrma

Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de fôrma que pensei, por que não posso escrever a minha? Hilda Hilst, Contos d'escárnio / Textos grotescos . Próximo sábado, 2 de Abril, 17h00, no Gato Vadio.

Próximo sábado, 2 de Abril, 17h00, no Gato Vadio.

Imagem de Luís Nobre, da dupla Lina&Nando . Entrada livre.