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Mensagens

Quinze minutos de palmas

MAQUINISTA: O meu avô palhaço suicidou-se em pleno espectáculo. Enforcou-se no trapézio, toda a gente julgava que era um número cómico! Houve quinze minutos de palmas entes que as pessoas percebessem que ele estava morto! AUTOR: É isso a arte! Copi, A noite da dona Luciana . Tradução de Isabel Alves.

Na cabeça de Samuel Beckett

Tania Bruguera montou Endgame no interior da cabeça de Samuel Beckett. Por dentro, tudo é branco. Paredes brancas, chão branco, “tão branco, tão limpo”, ou melhor, sem cor, um «deserto». No centro, um homem cego, Hamm, preso a uma cadeira de rodas. Através de uma abertura na cabeça, outro homem, Clov, entra e sai, coxo, incapaz de se sentar. Clov é uma espécie de escravo de Hamm. A verdade, porém, é que Hamm depende de Clov, escravo do seu escravo. E ambos são escravos da cabeça de Beckett. Em cima: o interior da cabeça de Samuel Beckett. A cabeça de Beckett está apoiada numa impressionante estrutura espiralada em ferro (trata-se de uma grande cabeça, pesada, cilíndrica, a testa muito alta). O interior é inacessível ao público, excepto através de pequenas aberturas onde só cabe, justamente, a nossa cabeça. Sessenta cabeças dentro da cabeça de Beckett. Sessenta cabeças a observar o que ali se passa, a olhar directamente Hamm e Clov, olhos nos olhos, ou dito de outro modo, a

Remover tudo o que pudermos

Eu diria que Rei Lear é provavelmente a maior peça de Shakespeare e por isso mesmo a mais difícil. A todo instante constatamos uma terrível verdade: é mais difícil montar obras-primas do que qualquer outra coisa. Estávamos nos queixando disso outro dia, no ensaio, e James Booth, que havia levado uma corda de pular, sugeriu: “Não seria gozado se fizéssemos a cena toda pulando corda?” E eu respondi: “A tragédia de estar montando uma peça tão maravilhosa é que não se pode fazer esse tipo de coisa. Somente quando se tem absoluta convicção de que certos momentos foram mal escritos ou são maçantes pode-se tomar a liberdade de inventar cordas, pular e coisas assim. (...) O objetivo do cenário é atingir um grau de simplificação que faça com que as coisas importantes apareçam mais, pois a peça já é bastante difícil sem o acréscimo do eterno problema causado por qualquer forma de decoração romântica. Para quê a decoração numa peça ruim? Para isso mesmo - para decorá-la. Em Lear , ao contrário,

Notas ingénuas sobre teatro

“O teatro está em crise.” Aparentemente, foi o cinema que desferiu o primeiro golpe. Depois apareceu o cinema sonoro, em 1929. Um pouco mais tarde, a televisão. Durante o século XX, a grande questão estava em saber de que forma o teatro se poderia diferenciar do cinema e da televisão. Que elementos faziam do teatro uma expressão de arte única, impossível de imitar pelos outros meios? Procurei encontrar, através da prática da encenação, uma resposta para as questões com que me tenho debatido desde o início: Que é o teatro e qual a sua essência? Quais os seus elementos que não podem ser substituídos nem pelo cinema nem pela televisão? (Jerzy Grotowski, Em busca do teatro pobre , 1971.) Se Grotowski escrevesse hoje, teria que considerar igualmente os novos meios digitais, cujo poder não tem paralelo na história da humanidade. Na verdade, também a televisão e o cinema estão em crise. Não há como negar: a formação e o gosto de uma parte significativa do público é construída online.

Eu? Nada

- Desculpe. Mas que faz você debaixo desta chuva? - Eu? Nada! Sonho com o Verão morto, choro o Verão que não voltará! Espero, além disso, que me aviem a receita na farmácia. Curo-me e aborreço-me. Miroslav Krleza, O grilo sob a cascata . Tradução de Irondino Teixeira de Aguilar.

Sábado, 15 de Abril, 17h00, na Sede

Mais informações aqui .

al mada nada

Em Saltibancos há uma menina chamada Zora, contorcionista num circo miserável, juntamente com a mãe e o pai. Artistas pobres, trágicos, falhados. Alvos da chacota dos espectadores, que lhes atiram pedras. Trovões que atravessam o ar, ferem a carne e fazem explodir as lâmpadas de acetileno, extinguindo a luz do circo. A história começa com soldados num quartel, sob um sol pesado e quente, e termina num festim de violência, em plena escuridão. O caminho que vai do princípio ao fim lembra uma via crucis . A paixão dos personagens, de Zora e dos pais, é uma imagem poderosa da condição do próprio teatro: as luzes acendem; os actores nascem, entregam-se com o corpo todo a uma espécie de imolação diante do público, morrem; as luzes apagam-se; escuridão; fim. Não resta nada.

Outros Saltimbancos

Os Saltimbancos de Manuel Guimarães.

Subir pelas paredes

Eis o menos nobre e mais vulgar dos materiais: o plástico. Barato, banal, está por todo o lado e serve para tudo. É o mais popular dos materiais. E que valor tem quando perde a sua utilidade? O que vale o pedaço de um brinquedo partido? O que resta de um recipiente de cozinha? Uma embalagem atirada para o lixo? O que vale o estilhaço de um electrodoméstico trazido pelo mar? Faça-se o exercício: observe-se com mais atenção esses objectos. A cor, a textura, a forma. Fora do seu contexto funcional, os objectos ganham uma potência, uma energia e uma vida muito particulares. Schwitters e Duchamp viram isso, Rauschenberg e Warhol também. Vários artistas tiveram essa visão com materiais diversos. Ricardo Nicolau de Almeida (RNA) viu isso no plástico. RNA recolhe restos de plásticos, que aparecem aleatoriamente nas ruas e nas praias. Fragmentos diferentes entre si, que o artista reordena, recompõe e recombina segundo uma visão estética radicalmente pessoal. Os materiais ganham uma ordem

Luxo

A ideia de que a morte deve ser o principal tema de reflexão e o objecto principal da atenção dos vivos nasceu com o luxo - com a abundância de reservas. Daí a estranha pergunta: perante coisas inúteis, em que pensar? Paul Valéry, Fragmentos narrativos. Tradução de Leonor Nazaré. Este livro é uma edição Dois Dias, casa editora que será apresentada na Sede, no próximo sábado, 25 de Março, pelas 17h00.

Mas um homem não é um cão.

«Seria possível a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov levar as pessoas a obedecer à doutrina do Cristianismo?», pensou o Cardeal [Pölätüo] para consigo. Colocou uma folha de papel na sua macchina da scrivere e dactilografou com dois dedos: Para evocar reflexos são necessários estímulos. Os estímulos podem ser positivos ou negativos; exemplos: alimentos ou dor. Estes estímulos encontram-se nas mãos do poder secular, Temporal. Pensou mais um instante, após o que escreveu: Mas um homem não é um cão. Para um homem, os estímulos materiais são desnecessários. Para um homem, basta dizer que ficará confortável, ou que irá sofrer. E estes estímulos, positivos e negativos, estão acessíveis às mãos da Igreja. A campainha da máquina de escrever fez-se ouvir no final da linha. Pölätüo rodou o carreto. De repente, os seus dedos começaram a saltar sobre as teclas como se tivessem vontade própria. Mas esses estímulos já se encontram nas mãos da Igreja. São o PARAÍSO e o INFERNO! (...) E

A arte pode ser feita por programas de computador? Ou ela requer alguma dimensão específica e irredutivelmente humana?

Tendemos a pensar que a arte é o reduto último de afirmação da irredutibilidade de nossa espécie; portanto, uma justificação inexpugnável de sua singularidade, senão de sua superioridade.  (...) A filosofia da composição , de Edgar Allan Poe, revelou o quanto de pensamento crítico e consciente está em jogo durante o processo de criação (menos misterioso e inspirado do que se queria, portanto); nos poemas destituídos de eu lírico de Mallarmé, a própria linguagem parece ser o sujeito que escreve; nas Iluminações de Rimbaud já não se descreve nenhuma realidade factual ou externa, mas puras paisagens mentais; os artigos de Proust contra Sainte-Beuve, o crítico biográfico, observam que o eu civil do artista não se confunde com o eu da obra; os formalistas russos, já no início do século XX, inauguraram uma concepção radicalmente material da linguagem; há ainda a boutade precisa de Gide (“Com bons sentimentos se faz má literatura”); daí ao estruturalismo e, logo, à anunciada morte do autor
Raul Brandão.

Tens passado a vida a esperá-la

Que outra coisa fizeste na vida senão esperar a morte? É a tua maior preocupação. Debalde a arredamos: a vida não é senão uma constante absorção na morte. Então para que nasci? Para ver isto e nunca mais ver isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar? Para pressentir o mistério e não desvendar o mistério? Levo dias, levo noites a habituar-me a esta ideia e não posso. Raul Brandão, Húmus . No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

O Lado B de Húmus

Pergunto-me se Húmus pode ser lido como uma espécie de Lado A de Pedro Páramo . E Pedro Páramo o Lado B de Húmus . Onde há humidade no primeiro, há extrema secura no segundo. Onde há frio em Húmus , há calor tórrido em Pedro Páramo . Onde há negrume em Brandão, há uma luz torturante em Rulfo. De resto, a angústia é a mesma. Os fantasmas são os mesmos. O sentimento de perda é semelhante. Tudo está morto, incluindo tudo o que está vivo. (Fotografia de Juan Rulfo) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Na Suécia medieval, não se jogava a bisca

Para enganar a morte e o tempo, as personagens de Húmus (ou será melhor chamar-lhes espectros, sombras?) jogam um eterno jogo de cartas: “Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três - e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma mesa do jogo. O jogo banal é a bisca - o jogo é o da morte...” A diferença entre Brandão e Bergman é o tipo de jogo. No Sétimo Selo , o cavaleiro e a morte jogam xadrez. O resultado, no entanto, é o mesmo: ganha a morte. No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Se eu gritar

No capítulo “Deus” de Húmus , lê-se: “Preciso de um Deus que me atenda, que me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer. (…) Debaldo grito – não há quem me ouça. (…) Deus, tu és monstruoso!” Em 1923, Rainer Maria Rilke publica as Elegias de Duíno . Eis os primeiros versos da primeira elegia: Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o Anjo é terrível. (Tradução de Maria Teresa Dias Furtado.) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Tempo e granito

A “vila” que serve de cenário a Húmus , de Raul Brandão, pode ser qualquer vila ou cidade. É uma pura abstracção: “A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro”. Mas desde a primeira linha que não consigo deixar de pensar no Porto, cidade onde o escritor nasceu e que ele conhecia bem. (Esta mania de os leitores precisarem de pontos de referência para não perderem o pé. Um leitor de Guimarães dirá que se trata de Guimarães e ninguém poderá negá-lo.) A vila de Húmus é feita de granito, um “granito salitroso”, erguendo-se sobranceira ao mar (o mar é uma ficção minha). Granito que impõe ao texto um tom duro, cinzento e escuro. “Estátuas de granito a que o tempo corroera as feições.” A pedra do Porto que é feita de quartzo, feldspato, mica e tempo. Camadas de tempo que se acumulam umas sobre as outras, num longo e lento trabalho que se repete infindavelmente: “Passou um minuto ou um século?” E a humidade que se apodera de todas as coisas, vivas e mortas: “A humidade entranhou-se n