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Mensagens

A verdadeira natureza

Bacantes

Bacantes - Prelúdio para uma purga , de Marlene Monteiro Freitas, é uma obra bela e complexa, povoada de pormenores, truques e dispositivos curiosíssimos, que revelam uma inteligência e sensibilidade raras. A escolha da grande peça de Eurípides (representada pela primeira vez por volta de 406 a. C.) não é inocente: As Bacantes retratam as origens do culto de Dióniso, cujo ritual era acompanhado de dança frenética até um estado de exaltação mística - a loucura sagrada - alcançada pelo esgotamento físico. Começar pelo princípio A peça de Eurípides, As Bacantes , centra-se no mito do rei de Tebas, Penteu, que se recusa a venerar Diónisos e que, em consequência disso, é castigado pelo deus da forma mais cruel e trágica: o rei é morto pela própria mãe, Agave, enquanto esta se acha tomada pelo delírio báquico, durante as celebrações dos rituais dionisíacos. As Dionísias eram festas em honra de Diónisos, também conhecido por Baco ou Brómio, deus da fertilidade e do vinho, potencial cau

Corpo de Deus

Uma floresta em marcha

Última nota sobre Macbeth . No final de Macbeth , antes da derradeira batalha, Malcolm ordena aos soldados que cortem ramos das árvores de Birnam e que avancem ocultos atrás deles, de maneira a confundir o inimigo. MALCOLM: Que cada homem corte pra si ramos E os leve à sua frente, pra escondermos O número dos nossos e induzirmos Em erro os espiões. Shakespeare, Macbeth , 5.4 Que melhor imagem para ilustrar aquilo que somos? Um bando de criaturas ardilosas, assustadas e determinadas em esconder a sua angústia atrás de ramos de árvores. Tal como no início dos tempos.

A arte de sublinhar Macbeth, segundo Marquês de Sade

No Manual de Leitura de Macbeth , editado pelo  Teatro Nacional de São João , Rui Carvalho Homem escreve sobre a famosa “intemporalidade” de Shakespeare. Quer dizer, sobre a “capacidade de o texto shakespeariano nos propor um entendimento do mundo e do humano”, que atravessa o tempo e o espaço. Essa “intemporalidade”, continua Rui Carvalho Homem, é “encarada hoje com reserva (ou cepticismo)” pela crítica académica, em resultado do aparecimento de “novos contextualismos”. No entanto, é inegável que Shakespeare foi e continua a ser “fonte de ampla produção literária e artística”, e a sua influência “não encontra paralelo em qualquer outro corpus literário e dramático”. Shakespeare criou o mundo em sete dias. No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma. No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos E os restantes sentimentos - Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra e a Ofélia, A Otelo e a outros, Para que fossem seus donos, eles e os seus

Macbeth na alcova

Tenho pensado em Macbeth por causa da leitura de Nuno Carinhas , actualmente em cena no São João. É óbvio que Shakespeare está em todo o lado, mas não existirá uma estranha e íntima ligação entre Macbeth e as ficções de Marquês de Sade? E estou a pensar, em particular, na Filosofia na Alcova . Voltarei ao assunto.

David Lynch para crianças

David Lynch costuma lembrar que não vale a pena procurar explicações ou respostas nos seus filmes. Acho que Lynch está certo: é inútil tentar explicar uma obra de arte. O nosso drama é sermos humanos e convivermos mal com aquilo que não conseguimos explicar. Por isso, criámos Deus e os críticos. Ambos oferecem as explicações inexplicáveis de que precisamos. Ambos pertencem ao domínio da fé. O que é curioso em David Lynch: The Art Life é a quantidade excessiva de explicações. Lynch oferece um significado para cada aspecto da sua obra ou, pelo menos, uma proposta de significado. E o mais curioso ainda, tratando-se de Lynch, é a pobreza confrangedora desse “exercício explicativo”. A história que ele constrói, a partir da memória dos seus anos de formação, é uma sequência de lugares-comuns e ideias superficiais. Tudo demasiado óbvio, redondo, sem sombra de profundidade. Na verdade, o filme parece uma colecção de sound bites sobre a arte e a “vida de artista”, montados segundo a lógica

Ideia para uma investigação

Estudar as semelhanças entre a repórter Alice Schalek, personagem de Karl Kraus, e Madame Valiche, personagem de Jean Cocteau. Madame Valiche, participante secundária da louca jornada de  Tomás, o Impostor , parece uma cópia menos sofisticada da incontornável Schalek, de Os últimos dias da humanidade .  Ou Alice Schalek é uma versão mais complexa de Madame Valiche. Onde acaba uma e começa a outra? Alice Schalek, como outras personagens de Karl Kraus, é inspirada numa figura real . Madame Valiche, por sua vez, não se inspira em nenhuma personalidade conhecida, ou seja, é inspirada em muitas. Kraus começou a escrever a sua obra-prima em 1915 e publicou-a em livro em 1922. Cocteau lançou Tomás, o Impostor , em 1923. O primeiro parágrafo de Tomás, o Impostor parece o resumo possível de Os últimos dias da humanidade :  A guerra principiou na maior desordem. Esta desordem nunca cessou, do princípio ao fim. Uma guerra breve teria podido amadurecer e, por assim dizer, cair da árvor

História natural

Por estas fontes somos informados de que o abutre era o símbolo da maternidade porque se julgava existirem apenas abutres fêmeas e nenhum macho nesta espécie de aves. (...) Mas como se daria então a fecundação dos abutres se só existiam fêmeas? Numa certa passagem de Horapollo é dada uma boa explicação: numa determinada altura do ano estas aves mantêm-se imóveis no ar, abrem a vagina e são fecundadas pelo vento. (...) O erudito e editor e comentador de Horapollo assinala a propósito do já citado texto: «De resto, os Pais da Igreja apoderaram-se avidamente desta lenda sobre os abutres, a fim de refutar, com este argumento retirado da história natural, aqueles que negavam o parto da Virgem; é por isso que, quase todos eles, fazem menção deste assunto.» (...) Se, segundo as melhores fontes da antiguidade, os abutres estavam reduzidos a deixar-se fecundar pelo vento, porque é que algo de semelhante não poderia também acontecer a uma mulher? Sigmund Freud, Uma recordação de infância de Le

Aquilo somos nós

“ Eu não sou o teu negro é uma peça importante para se perceber um pouco melhor o que raio se passa, o que raio ainda se passa, na América destes dias”, escreve Luís Miguel Oliveira, no Público de hoje . Na verdade, creio que é mais do que isso. O filme de Raoul Peck sobre James Baldwin ajuda a perceber o que raio se passa na nossa cabeça desde o princípio dos tempos. O que raio se passa na América, mas também na Europa, na Ásia, em qualquer parte do mundo. O que raio se passa connosco. Que raio de estranho poder é este que o nosso lado mais sombrio e sinistro exerce sobre nós. “O que Baldwin fez”, diz Raoul Peck, “foi colocar um espelho à nossa frente”. Imagino um espelho cheio de pó. Um pó acumulado durante anos, durante séculos. O que Raoul Peck faz, através do pensamento claro e simples de James Baldwin, é retirar esse pó, camada após camada, até conseguirmos ver a nossa imagem reflectida no espelho. E a imagem é horrível. Aquilo somos nós.

Shakespeare já lá tinha estado

Enquanto poeta em prosa do pós-shakespeariano, Freud navega na esteira de Shakespeare; e a ansiedade da influência não tem sofredor mais distinto do nosso tempo do que o fundador da psicanálise, que descobria sempre que Shakespeare já lá tinha estado antes dele, e muito frequentemente não conseguia aguentar o confronto com esta verdade humilhante. Harold Bloom, O cânone ocidental . Tradução de Manuel Frias Martins.

Pássaro fluido

Se Derrida compara o poema a um ouriço , João Cabral de Melo Neto designa-o por “pássaro fluido” . O ouriço, bicho que habita em buracos ou entre as sombras, sob ervas e ramos, e que ao mínimo sinal de perigo se enrola numa bola de espinhos, não podia estar mais distante de um pássaro, bicho com asas, veloz, esquivo e capaz de voar. E, no entanto, Derrida e Melo Neto não podiam estar mais próximos de um nome possível para o poema. Uma coisa viva parecida com outra e o seu contrário. Meio pássaro, meio ouriço. Como o mundo.

Homem parado a grande velocidade

Num dos quatro ecrãs , há um homem que segura um ramo de árvore em cada mão. O homem agita furiosamente os ramos. As mãos estão ocultas na sombra. O corpo permanece, tanto quanto possível, imóvel. Folhas e galhos batem-lhe nos cabelos, que parecem varridos por um vento terrível. Os olhos fixam-se num ponto longínquo, atrás da câmara. A expressão do personagem é de angústia, uma angústia absoluta. A luz é de um vermelho febril e sanguíneo. Tudo estremece num completo alvoroço. Está tudo em movimento. O homem parece deslocar-se a uma velocidade vertiginosa e, no entanto, está parado, preso no interior de qualquer coisa que não se vê, mas que adivinhamos, sem saber explicar.

O ouriço

Em Che cos’è la poesia? , Jacques Derrida compara o poema a um ouriço enrolado em bola, no meio de uma auto-estrada. “Desejaríamos pegá-lo nas mãos, conhecê-lo e compreendê-lo, guardá-lo para nós, junto de nós.” Salvar o ouriço é expormo-nos igualmente ao perigo. “Daí a profecia: traduz-me, vela-me, guarda-me um pouco mais, salva-te, deixemos a auto-estrada.” Mais à frente, Derrida escreve: “Não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também.” De um acidente, podemos sair com vida ou sem ela. Mas, de uma maneira ou de outra, o impacto é inevitável e ficarão sempre marcas e cicatrizes.

Quinze minutos de palmas

MAQUINISTA: O meu avô palhaço suicidou-se em pleno espectáculo. Enforcou-se no trapézio, toda a gente julgava que era um número cómico! Houve quinze minutos de palmas entes que as pessoas percebessem que ele estava morto! AUTOR: É isso a arte! Copi, A noite da dona Luciana . Tradução de Isabel Alves.

Na cabeça de Samuel Beckett

Tania Bruguera montou Endgame no interior da cabeça de Samuel Beckett. Por dentro, tudo é branco. Paredes brancas, chão branco, “tão branco, tão limpo”, ou melhor, sem cor, um «deserto». No centro, um homem cego, Hamm, preso a uma cadeira de rodas. Através de uma abertura na cabeça, outro homem, Clov, entra e sai, coxo, incapaz de se sentar. Clov é uma espécie de escravo de Hamm. A verdade, porém, é que Hamm depende de Clov, escravo do seu escravo. E ambos são escravos da cabeça de Beckett. Em cima: o interior da cabeça de Samuel Beckett. A cabeça de Beckett está apoiada numa impressionante estrutura espiralada em ferro (trata-se de uma grande cabeça, pesada, cilíndrica, a testa muito alta). O interior é inacessível ao público, excepto através de pequenas aberturas onde só cabe, justamente, a nossa cabeça. Sessenta cabeças dentro da cabeça de Beckett. Sessenta cabeças a observar o que ali se passa, a olhar directamente Hamm e Clov, olhos nos olhos, ou dito de outro modo, a

Remover tudo o que pudermos

Eu diria que Rei Lear é provavelmente a maior peça de Shakespeare e por isso mesmo a mais difícil. A todo instante constatamos uma terrível verdade: é mais difícil montar obras-primas do que qualquer outra coisa. Estávamos nos queixando disso outro dia, no ensaio, e James Booth, que havia levado uma corda de pular, sugeriu: “Não seria gozado se fizéssemos a cena toda pulando corda?” E eu respondi: “A tragédia de estar montando uma peça tão maravilhosa é que não se pode fazer esse tipo de coisa. Somente quando se tem absoluta convicção de que certos momentos foram mal escritos ou são maçantes pode-se tomar a liberdade de inventar cordas, pular e coisas assim. (...) O objetivo do cenário é atingir um grau de simplificação que faça com que as coisas importantes apareçam mais, pois a peça já é bastante difícil sem o acréscimo do eterno problema causado por qualquer forma de decoração romântica. Para quê a decoração numa peça ruim? Para isso mesmo - para decorá-la. Em Lear , ao contrário,

Notas ingénuas sobre teatro

“O teatro está em crise.” Aparentemente, foi o cinema que desferiu o primeiro golpe. Depois apareceu o cinema sonoro, em 1929. Um pouco mais tarde, a televisão. Durante o século XX, a grande questão estava em saber de que forma o teatro se poderia diferenciar do cinema e da televisão. Que elementos faziam do teatro uma expressão de arte única, impossível de imitar pelos outros meios? Procurei encontrar, através da prática da encenação, uma resposta para as questões com que me tenho debatido desde o início: Que é o teatro e qual a sua essência? Quais os seus elementos que não podem ser substituídos nem pelo cinema nem pela televisão? (Jerzy Grotowski, Em busca do teatro pobre , 1971.) Se Grotowski escrevesse hoje, teria que considerar igualmente os novos meios digitais, cujo poder não tem paralelo na história da humanidade. Na verdade, também a televisão e o cinema estão em crise. Não há como negar: a formação e o gosto de uma parte significativa do público é construída online.