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Mensagens

A realidade é teatro e o teatro é realidade

O aspecto mais fascinante de Five Easy Pieces , de Milo Rau, é a arquitectura. Quer dizer, a maneira como os elementos encaixam entre si, sugerindo uma construção de Lego com instruções precisas de montagem e sem margem para o improviso. Se retirarmos os elementos acessórios, ficam duas peças-mestras: a peça das crianças, que acontece no palco, e a peça para adultos, que se desenrola na cabeça dos espectadores. Em Five Easy Pieces há, pois, duas peças dispostas de maneira a evoluírem em simultâneo. Os actores crianças representam uma história que funciona para eles como uma fábula, à maneira tradicional dos irmãos Grimm, com vítimas inocentes e um lobo mau, e interpretada segundo a lógica de uma série televisiva de detectives. Trata-se de um jogo de faz-de-conta, excitante e, de certa forma, divertido. E há uma segunda história, baseada no caso real de Marc Dutroux, pedófilo e assassino confesso de várias crianças, que horrorizou a Bélgica e a Europa nos anos 90. As duas perspecti

Preparação para Medeia: mulher cão

[Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre.]

Preparação para Medeia: o desejo

All human activity is prompted by desire. There is a wholly fallacious theory advanced by some earnest moralists to the effect that it is possible to resist desire in the interests of duty and moral principle. I say this is fallacious, not because no man ever acts from a sense of duty, but because duty has no hold on him unless he desires to be dutiful. If you wish to know what men will do, you must know not only, or principally, their material circumstances, but rather the whole system of their desires with their relative strengths. Bertrand Russell, discurso na Academia Nobel, 11 de Dezembro de 1950. [Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre.]

Um post saído directamente do meu umbigo

2017 está a ser um ano bom. Em pouco mais de dois meses, conseguimos partilhar com amigas e amigos, conhecidas e desconhecidos, leitores e engenheiros astrofísicos, dois livros de que nos orgulhamos até à baba: 63 histórias de Humor e 1 Poema Melancólico , de Alphonse Allais, com tradução, introdução e notas de Filipe Guerra - um dos monstros da tradução, cuja amizade e confiança nunca saberemos agradecer convenientemente -, através da Colecção Avesso , e, agora, 145 Poemas , de Konstantinos Kaváfis, com tradução e apresentação de Manuel Resende, através da nossa editora, a Flop .  Não sei falar sobre Manuel Resende sem usar adjectivos. Dizer que é um dos mais originais poetas portugueses não chega. Lembrar que é um dos três ou quatro maiores tradutores da sua geração é pouco. Declarar que é um dos nossos sábios da literatura é curto. Dizer que é um dos nossos amigos mais queridos também está longe do que queremos realmente dizer. Manuel Resende fez o favor de confiar na Flop para e

Este é o meu corpo

Num livro esquecido dos anos 60, Jorge Semprún conta uma história que tinha lido ou ouvido de Ievtuchenko sobre Pasternak. “Certo dia” - escreve Semprún - “um operário pediu a Pasternak que lhe apontasse o caminho da verdade. O escritor respondeu: ‘Que ideia a tua! Nunca tive a intenção de apontar a alguém fosse o que fosse. O poeta é como as folhas duma árvore que sussurram com o vento, mas não tem o poder de encaminhar ninguém.’” Semprún comenta então: “Todos conhecemos este hábito dos poetas se confundirem com o reino vegetal: comparam-se a árvores, folhas, algas.” Claro que Pasternak, talvez por humildade, talvez por orgulho, não disse ao operário tudo o que pensava. É óbvio que o poeta não pode apontar o caminho da “verdade” porque ninguém sabe exactamente o que é “a verdade” e, portanto, ainda menos o caminho para lá chegar. Mas a poesia, e isso sabemo-lo todos, encerra uma espécie de verdade própria, essencial, subterrânea, capaz de revelar territórios desconhecidos no avesso d

Preparação para Medeia: ela é a mosca dentro do frasco

No peitoril estava um frasco de vidro posto de bocal para baixo. Uma mosca, não se sabia como, fora parar dentro do frasco. Não havia maneira de ela sair, e a mosca andou lá dentro todo o dia. Dentro do frasco, batido pelo sol, pairava um calor lento, indiferente, impenetrável (...) Evgueni Zamiatine, Inundação . Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. [Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre.]

Allais regressa aos jornais

A edição de hoje do  Jornal i  inclui um extenso texto de Diogo Vaz Pinto dedicado a 63 Histórias de Humor e 1 Poema Melancólico , de Alphonse Allais . Texto completo aqui: página 1 e página 2 .

Conto para Sara

O que aconteceu a uma menina Era uma vez uma menina pequena que foi passear a boneca e encontrou dois passarinhos muito simpáticos. Fez-lhes uma ligeira reverência e disse-lhes: «Bom-dia, passarinhos!... Querem brincar comigo?... Tenho pevides no meu saquinho e dou-lhes também.» Um dos passarinhos disse: «Eu quero!» E o outro disse: «Eu também!» E divertiram-se muito quase até à noite. A certa altura, os passarinhos disseram: «Agora queremos ir embora.» Ora bem, juntamente com a noite a chegar, chegou também à cabeça da menina um pensamento maldoso; disse aos passarinhos: «Ainda tenho pevides no fundo do meu saquinho; se quiserem, podem vir buscá-las.» Os passarinhos foram muito depressa e, crac!, a menina apertou logo os cordões e os passarinhos ficaram presos. De nada lhes valeu gritarem e gritarem: a menina levou-os no saco. Nessa mesma noite, rondava precisamente por ali um gatarrão. Ao ouvir gritar os passarinhos, apareceu logo a correr. Quando a menina o viu fez-lhe uma das suas

Ficções de Wong Kar-Wai

Em 1944, Jorge Luís Borges publicou aquele que é talvez o mais popular e influente dos seus livros: Ficções . Um dos contos desse livro intitula-se A Biblioteca de Babel . De acordo com a imaginação de Borges, a Biblioteca de Babel é um “universo” composto por um número indefinido de galerias, com vastos poços de ventilação, intermináveis pisos e uma escada em espiral, que se afunda e se eleva a perder de vista. A biblioteca alberga um número infindável de livros, sobre todos os assuntos e em todas as línguas, vivas, mortas e desconhecidas, e é habitada por numerosos bibliotecários que por ali vagueiam na tentativa de encontrar O livro . Em 1994, exactamente 40 anos após Ficções , Wong Kar-Wai apresentou Chungking Express . Para um realizador que, como Borges, parece obcecado com o tempo e a relação entre os números, a coincidência das datas é mais do que uma simples curiosidade. O cenário do filme é um imenso complexo imobiliário, localizado no coração de Hong Kong, chamado Chungking

Aprender a escrever com os mestres

No espectro deste conto, os raios principais são o dourado, o vermelho e o lilás porque a cidade está cheia de cúpulas, da revolução e de lilases. A revolução e o lilás estão em plena floração, pelo que é possível, com toda a fidedignidade, tirar a conclusão de que o ano é o de 1919, e o mês é o de Maio. Evgueni Zamiatine, O Xis. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

Deus

Começa a fazer-se tarde. A festa está no auge. Os alegres companheiros são todos cor, barulho, amor. As lindas raparigas, desapertadas, descompostas, abandonam-se. Os seus olhos entrecerram-se docemente, e os seus lábios que se entreabrem deixam aperceber tesouros húmidos de púrpura e de nácar. As taças, nunca cheias e nunca vazias! Esvoaçam no ar as canções, ritmadas pelo tilintar dos copos e pelas casquinadas de riso das lindas raparigas. De súbito, o velho relógio da sala de jantar interrompe o seu tiquetaque monótono e resmungão para ranger raivosamente, como faz sempre quando lhe dá para bater as horas. É meia-noite. As doze badaladas caem, lentas, graves, com aquele ar de ralho próprio dos velhos relógios patrimoniais. Parecem dizer-nos que já muitas badaladas deram eles para os nossos avoengos desaparecidos e que ainda muitas mais darão para os nossos netos, quando nós já não estivermos cá. Sem se aperceber, a nossa alegre companhia pôs uma surdina à sua balbúrdia e as

Allais é grande

Um dos livros mais queridos da nossa Colecção Avesso já chegou. É uma antologia belíssima de Alphonse Allais, 63 Histórias de Humor e 1 Poema Melancólico , com uma tradução magnífica de Filipe Guerra. O design (já não tenho adjectivos) é dos inevitáveis Lina&Nando , responsáveis pelo grafismo da colecção. O livro já está disponível no sítio da editora Exclamação e em breve nas livrarias.

Um postal de Budapeste

Örkény pop István Örkény é um escritor popular na Hungria. Em qualquer livraria ou alfarrabista podem encontrar-se vários dos seus volumes. Uma amiga que viveu largos anos em Budapeste, disse-nos que muitos húngaros conhecem de cor as suas histórias. Na rua Szent István, perto da estação ferroviária de Nyugati, há uma livraria meio de plástico, que faz lembrar as nossas Bertrand, chamada Örkény István Könyvesbolt , ou seja, Livraria István Örkény. Coisa tão natural como cá existir uma Livraria Camões ou Bocage. O único livro traduzido entre nós, Histórias de 1 minuto , ou Contos de um minuto , na versão de Ernesto Rodrigues (1983), é dos poucos que não conseguimos encontrar nas livrarias que visitamos. Pelos vistos, esgota facilmente. O problema dos húngaros é não saberem português: o primeiro volume das Histórias de 1 minuto , da Cavalo de Ferro (o segundo volume nunca chegou a sair), andou aos pontapés, durante anos, pelas feiras de fundo de catálogo a 1 euro ou menos.  

Dois postais de Viena

O papel é duro como mármore  Seguindo as indicações de Cláudio Magris , e atravessando Rossauer Brücke, chegamos a Rembrandtstraße. É uma rua relativamente pequena, cinzenta e silenciosa. Em quase todas as entradas, há placas em mármore ou bronze a lembrar os nomes de cidadãos judeus que foram deportados durante o nazismo. São dezenas e dezenas de nomes, famílias inteiras. No número 35, viveu Joseph Roth. É uma das raras entradas onde não existe qualquer placa. Também não há qualquer referência à passagem de Roth por aqui. Seja como for, uma página de papel com o seu nome será sempre tão sólida e duradoura como uma placa de mármore.   Uma pedra e uma trepadeira O túmulo de Karl Kraus fica próximo de uma das portas secundárias do gigantesco cemitério central de Viena, o Wiener Zentralfriedhof, muito longe dos túmulos de Schubert ou Beethoven. Uma pedra de granito, intencionalmente mal esculpida, exibe apenas o nome. Não há indicação das datas de nascimento ou morte. A ca

Preparação para Medeia: experiências de química

SENHOR ORLAS (suspira) : A vida é um abismo de contradições, Araminthe. Bem! Vou para o meu gabinete reflectir em tudo isto. Não posso acreditar que não haja uma solução em que o dever e a felicidade se conciliem. ARAMINTHE: Eu creio, senhor, que é essa a grande inquietação dos homens, desde que saíram das cavernas para tentar viver em sociedade. Inventaram o casamento para tentar conjugar ao mesmo tempo essas duas noções. SENHOR ORLAS: Apenas por um curto espaço de tempo, Araminthe. Acredite num homem que tentou essa aventura! O que se passa a seguir é como uma dessas experiências de química em que se deleita o nosso vizinho, senhor Voltaire. Ao princípio, a mistura brilha; depois, a felicidade, que é volátil, evapora-se e não fica na retorta senão o grosso calhau cinzento do dever. Jean Anouilh , Cecile ou a escola de pais. Tradução de Virgínia Mendes.

Preparação para Medeia: o lápis de Jean Anouilh

Sónia Andrade, Hidragramas .

O cacto sobre a mesa

Aki Kaurismäki, O outro lado da esperança .

Preparação para Medeia: um Jasão sem nome

O DESCONHECIDO - Chamo-me Roger van Hutten. Não é o meu nome. Não tenho nome. Sou filho de um vendedor de fundas de Arras, que não me quis reconhecer. Daí a minha carreira. Decidido a nunca mostrar a minha cédula de nascimento, afastei-me da vida em que as pessoas fazem exames, se casam, vão para soldado ou recebem heranças - em resumo, de toda a vida em que nos exigem um bilhete de identidade - e entrei naquela onde se passa sem ele. Assim me liguei a tudo quanto não necessita, também, do tal bilhete de identidade: aos fósforos belgas, às rendas e à cocaína. Livros especiais também. Na vida de um aventureiro há sempre um período em que ele se sustenta da lubricidade humana. A necessidade em que me vi de empurrar um funcionário de alfândega para lá de uma fronteira donde se não regressar, obrigou-me a embarcar como fogueiro para uma costa que aconteceu ser a da Malásia. Aí tive possibilidades de me safar e organizar o contrabando de chifres de rinocerontes, base de toda a medicamentaçã