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Mensagens

A origem da couve

No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios. – És bela. – Sou – disse a rosa. – Bela e feliz – prosseguiu o diabo. – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas… – Mas? – Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detêm sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco… A rosa – tentada, como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura. Passou o bom Deus, depois do romper da aurora. – Pai – disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil? – Seja, minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo. E o mundo viu então a primeira couve. Rubén Darío, Curiosidades Literárias e Outros Contos.  Colecção Av

É tudo verdade

Leio numa revista brasileira que, dentro de dias, abre mais uma edição do festival internacional de documentários É Tudo Verdade , no Rio de Janeiro. Em Paris, decorre o festival Cinéma du Réel . Entre nós, o Porto/Post/Doc classifica-se a si mesmo como um “festival de cinema do real” e usa o slogan «As nossas histórias são reais». Curiosa esta recorrente necessidade de afirmar o documentário como o género cinematográfico do «real» e da «verdade». Há aqui uma espécie de horror à ficção que contradiz justamente o tipo de filmes que têm sido premiados - e bem - nestes certames. No Porto/Pos/Doc, por exemplo, que é o caso que conheço melhor, os mais belos filmes do festival revelam sempre um olhar , uma montagem e uma escolha pessoalíssima dos seus autores. Não sei se a «verdade» e o «real» têm alguma relevância para o caso. Há certamente uma contaminação do documentário pela ficção. Mas esse jogo, entre criador e espectador - o que é verdade e o que é ficção? - é a parte verdadeirame

Dentes portugueses

Adeus, adeus, meus dentes! Só mais outro dia, E vamos dirimir esta pugna entre nós, Divórcio que a dentista estrangeira oficia Num desconsentimento total e feroz. Essa fidelidade tão à portuguesa, Feita de tanto golpe baixo, tantas fintas, Com que me temperastes o prazer da mesa, Fruto de fero amor, tão vero e troca-tintas, Ficai com ela, que eu dispenso despedidas. A culpa é toda minha, devo confessar Que não tinha dinheiro e descurei medidas Evidentes no plano mais elementar. O remorso católico arde-me feridas No sítio que Calvino gosta de brocar. Manuel Resende, Poesia Reunida .

Um Fausto

Dois homens, pai e filho, ambos velhos. Outrora, grandes glórias da ciência e da academia. O pai, de noventa anos, praticamente esquecido pela sociedade, o filho, de setenta, a caminho disso. O pai lamenta-se de não ter morrido antes de cair na implacável espiral de decadência provocada pela velhice. O filho ainda acredita que é capaz de lutar contra ela. O pai aconselha o filho a matar-se enquanto há tempo, enquanto se não transforma num “semimorto” e não começa dentro dele o processo de nascimento do “monstrozinho”. O filho ainda pode aspirar à imortalidade, diz o pai: só alguém que morre no momento certo, no auge da glória pública, pode viver para sempre. “Mata-te”, repete ele ao filho, apontando-lhe a bengala (mais simbólica do que concreta). O filho, por sua vez, diz sentir-se bem, “completamente vivo”, com ânimo para aproveitar a vida e a fama, e afastar o terror da decrepitude e decadência. O pai insiste para que o filho se suicide com uma ampola de cianeto. O filho, calma e pac

O fantasma do cavalo de Turim em Ödön von Horváth

CAROLINA: Isto é um Austro-Daimler? RAUCH: Acertou! Bravo! CAROLINA: O meu ex-namorado conduziu um Austro-Daimler. Sabe, era chauffeur . Um homem esquisito. Olhe, há três meses, quisemos os dois ir dar um passeio ao campo; pois não é que teve uma bulha dos diabos com um cocheiro porque ele tinha dado chicotadas no cavalo? Por causa de um cavalo, calcule! Quando ele próprio é chauffeur ! Uma pessoa tem de dar valor às coisas. Ödön von Horváth, Casimiro e Carolina . Tradução de Maria Adélia Silva Melo.

O que se passa naquelas montanhas?

“Quando a morte entra no quarto, a poesia é uma idiotice”, diz Ebru Ojen, a narradora de Meteors , numa espécie de eco longínquo da famosa frase de Adorno sobre a impossibilidade de escrever um poema depois de Auschwitz. O mais intrigante desta frase é que o filme de Gürcan Keltek é exactamente o contrário do que ela enuncia: Meteors  é uma obra terrivelmente bela sobre a guerra. A explicação para isto talvez resida no facto de não existirem explicações claras neste filme. O que se passa nas remotas montanhas do Curdistão, na fronteira entre a Turquia e a Síria? O que se passou durante a campanha militar turca contra os curdos, em 2015? Não estou certo de que o filme responda a esta pergunta. Na verdade, duvido que o filme queira responder ao que quer que seja. O que vemos, desde o primeiro plano - a lua crescente a desvanecer-se numa poeira densa, que também pode ser nevoeiro ou nuvens - é uma sucessão de imagens de uma beleza esmagadora. Cenas de caça nas montanhas nevada

O coiso

CALONICE (...) Conta lá que assunto é esse que tanto te preocupa. LISÍSTRATA Eu já conto. Mas, antes de falar, vou-vos só fazer uma perguntita, coisa sem importância. CALONICE À vontade. LISÍSTRATA Dos pais dos vossos filhos vocês não têm saudades, quando estão mobilizados em campanha? Que eu bem sei que todas vocês têm o marido fora. CALONICE Isso é verdade. O meu homem, coitado, há cinco meses que está ausente, lá para a Trácia, de sentinela ao... Êucrates. MÍRRINA E o meu, já lá vão sete meses completos, em Pilos. LÂMPITO O meu, mal está de volta do regimento, lá deita outra vez mão ao escudo e põe-che a andar. LISÍSTRATA E nem mesmo amantes nos sobra para amostra. Que desde que os Milésios nos tramaram, nem sequer uma coçadeira de coiro de dois palmos de comprido eu vi, que nos desse ao menos um triste consolo. Será que vocês estariam dispostas, se eu arranjasse uma artimanha, a juntarem-se a mim para acabar com a guerra? CALONICE Bolas, eu estava! Nem que

Nunca mais

GUIL (tenso. Irritado progressivamente ao longo da pantomina, e do comentário) Mas o que é que tu sabes da morte? ACTOR É aquilo que os actores fazem melhor. Têm que aproveitar o talento que lhes foi dado, e o talento deles é: morrer. Sabem morrer heroicamente, comicamente, ironicamente, lentamente, repentinamente, abjectamente, encantadoramente, ou de uma grande altura. (...) GUIL É só o que sabem fazer - morrer? ACTOR Não, não - também matam maravilhosamente. Na verdade, alguns deles matam melhor do que morrem. Os outros morrem melhor do que matam. São uma equipa. ROS E quem é quem? ACTOR Isso não tem grande importância. GUIL (medo, derisão) Actores! os mecânicos do melodrama barato! Isso não é morte! (Mais tranquilo) Vocês gritam, sufocam, caem de joelhos, mas isso não traz morte a ninguém - não apanha ninguém desprevenido para lhe começar a sussurrar dentro do crânio e a dizer - "Um dia vais morrer". (endireita-se) Vocês morrem tantas vezes, como é que podem est

Comer com os olhos

La Mélancolie des Dragons , de Philippe Quesne é uma história de encantar, um conto de fadas que se podia chamar A Branca de Neve e os Sete Metaleiros . Mas a peça é muito mais do que isso. Quesne encena a construção de um poema. Ou melhor, encena a receita para fazer um poema. Como numa lição de culinária, mostra com arte e paciência, um após outro, os ingredientes essenciais: água, vento, fumo, bolas de sabão, neve, árvores, a forma das letras, um projector, um computador, sacos de plástico e um escadote. Não há truques nem segredos especiais. O resultado depende da qualidade dos ingredientes, dos gestos certos, do tempo dedicado a cada tarefa e, como todos os cozinheiros sabem, da bonomia e amor pela arte. A beleza, como sempre, está na mais completa simplicidade. O poema de Quesne é para comer com os olhos.

Corpo ou fantasma?

Thomas toca com os dedos o rosto do homem morto, abandonado no parque, sobre a erva. Thomas tem de ter a certeza de que o corpo é real, de que não é um artifício da sua imaginação. Ele toca-lhe para se assegurar de que não foi engolido pelo seu próprio sonho, de que não foi traído pelos truques da sua própria arte: ele precisa de ter a certeza de que ainda conhece o chão que pisa. Num filme construído a partir de gestos, movimentos, deslocações, este é o gesto mais significativo de todos. A dúvida conduz à verdade, mas também à ficção. Na manhã seguinte, o corpo já não está no local e não há nenhum indício de que alguma vez lá tenha estado. Desapareceu como se nunca tivesse existido. O momento em que Thomas toca no corpo, como S. Tomé  (Saint Thomas, em inglês), é o exacto momento em que a realidade e a ficção se tocam, em que todas as fronteiras se dissipam. Thomas tocou num corpo ou num fantasma? Esta é a chave de Blow Up .

Contrato de arrendamento

A vida inteira não é outra coisa que uma dor continuamente infligida uma grande dor é o que uma vida inteira é todos mentem a si mesmos constantemente toda a vida A igreja substitui o cérebro da generalidade das pessoas põe à disposição de cada um o seu Deus por medida aluga por assim dizer o seu bom Deus E de facto não apenas por noventa e nove anos mas a cada um de modo vitalício e disso é fiadora não me refiro apenas à católica todas as religiões arrendam a cada um o seu bom Deus a fé não é mais que um contrato de arrendamento milhares de milhões de arrendatários pagam anualmente uma renda altíssima às suas igrejas e dessangram-se Thomas Bernhard, Praça dos Heróis . Tradução de Francisco Luís Parreira.

Passado e presente

As coisas mais simples são as mais complexas. Pensemos na memória. Existirá material mais simples e democrático do que a memória? E, no entanto, existirá coisa mais complexa? Em Olhares Lugares , Agnés Varda transforma a memória num material tão simples e vivo como um campo de girassóis. A história, a passagem do tempo, a ruína, que abre rugas profundas no mundo e em nós, transforma-se numa celebração da vida. Porque, muito simplesmente, são a matéria de que todos somos feitos. Uma aldeia de casas abandonadas ou um velho bairro mineiro ameaçado de demolição são lugares vivos porque carregados de memória. Num dos mais belos momentos do filme, Agnés Varda revela que a idade lhe trouxe problemas de visão; as coisas surgem-lhe desfocadas. A visão desfocada de Varda dá-nos a ver o mundo justamente como ele é: um milagre, um milagre feito de sombra e luz, cores esbatidas e nítidas, morte e vida. A simplicidade, isto é, a sabedoria de Varda é uma absoluta lição de arte e génio. Olhares Luga

Dizer o quê?

O nascimento é uma questão? Uma questão com um trejeito, ou um brilho nos olhos. Eu prefiro o termo dor de barriga, uma grande irritação, uma actividade do mais severo e impiedoso que haja, sem pergunta nem resposta, um jogo da vermelhinha, uma necessidade. A necessidade de quê? A necessidade de dizer. Dizer o quê? O que quer que seja para ser dito. O que é que é para ser dito? Nada é para ser dito, tudo é para ser dito. É para ser dito. É dito. Algumas pessoas dizem-no melhor do que outras. Dizem o quê? O que é para ser dito. Porquê? Vou ignorar esta questão. Harold Pinter, Várias vozes. Tradução de Francisco Frazão.

Girondo-Bonomi-Parra

Capa da edição original de Espantapájaros (al alcance de todos) , de Oliverio Girondo, com desenho de José Bonomi , Buenos Aires, Proa, 1932   Desenho de Nicanor Parra , incluído em Artefactos , 1972.

No qual se vejam todos os nervos

A arte não pode ser outra coisa senão a reprodução objectiva de uma realidade psicológica, e esse fim não se alcança procurando mostrar apenas o que se considera revestido de certa dignidade. Um poema deve ser uma espécie de corte praticado na totalidade do ser humano, no qual se vejam todos os nervos, as fibras musculares e os ossos, as artérias e as veias, os pensamentos, as imagens e as sensações, etc., etc.  Nicanor Parra. Carta a Tomás Lago, Oxford, 1949.

O cotovelo dentro do prato

Mas os ritos religiosos não são os únicos. A sociedade impõe mil cerimónias que não passam igualmente de uma espécie de missa permanente que ela oferece a si própria. Um exemplo disso é a maneira de se comer em sociedade. Charlot jamais consegue usar os talheres de modo conveniente. Põe sempre o cotovelo dentro dos pratos, derruba a sopa sobre as calças, etc. O ápice é seguramente quando ele próprio é garçom de restaurante (em Charlot patinador , 1916, por exemplo).  Religioso ou não, o sagrado está presente em toda a vida social, não apenas no magistrado, no policial, no sacerdote, mas no ritual de alimentação, nas relações profissionais, nos transportes públicos. É por ele que a sociedade mantém sua coerência, como em um campo magnético. Inconscientemente, a cada minuto, nos posicionamos segundo suas linhas de força. Mas Charlot é feito de outro metal. Não apenas escapa à sua influência, mas a própria categoria do sagrado não existe para ele, sendo tão inconcebível quanto a rosa pa

A máquina

A máquina inimiga para Chaplin é sobretudo sinal de desumanização, na taylorização imposta pela indústria concorrencial, reduzindo o homem-operário a uma escravatura minuciosamente contabilizada, em tempos e gestos repetidos até à paranóia. O riso que tal situação desperta no espectador é horrivelmente condicionado pela sua própria experiência, de profissão em profissão - e se é a técnica que faz o homem, e não, em última análise, o meio social, o operário americano não se distingue, psicossocialmente, do operário soviético, em transes de Stakhanovismo... A frieza com que Tempos Modernos foi recebido nos Estados Unidos não foi, assim, diferente da suspeição que acompanhou o filme na Rússia, mesmo que a crítica oficiosa com algum mal-estar, procurasse distinguir as duas situações sociopolíticas, reduzindo a americana o destino da mensagem chapliniana. (...) A máquina constitui, na economia do filme, e na proporção da suas cenas, articuladas de gags em gags , a sua parte essencial: um

Quatro por quatro

Imaginemos um díptico. A face da esquerda está em branco. Na face direita podemos ver  A lei do mercado , de Stéphane Brizé. Se, num exercício, tivesse de preencher a face em branco e completar o díptico, escolheria Chronique d'un été , de Jean Rouch e Edgar Morin. Uma das histórias mais impressionantes de Chronique d'un été é a de Angelo, o operário da Renault que diz trabalhar vinte e quatro horas por dia: acorda às cinco da manhã, segue de transporte até à fábrica, cumpre uma jornada de nove horas de trabalho, regressa a casa, come e dorme para recuperar energias, e começa tudo de novo às cinco da manhã do dia seguinte. Um dia após o outro, sem pausas. Dormir, diz ele, faz parte do trabalho. O que mudou entre a história de Angelo e a de Thierry, o personagem de Brizé, que trabalha como segurança num supermercado dos nossos dias para «ganhar a vida»? Em  A lei do mercado , há uma sequência em que Thierry e a mulher estão a aprender a dançar rock, naquele que é o único mo

Contra a angústia da folha em branco

Um dos contos mais famosos de Virgilio Piñera narra a história de um homem que se alimenta literalmente de crianças pequenas, «de poucos meses». Uma espécie de apreciador swiftiano das qualidades gastronómicas da carne de criança. Ora, para alimentar este peculiar capricho gastronómico, o narrador envolve-se em cenas de caça, rigorosamente planeadas e sem margem para erro. O conto intitula-se Algumas crianças e o enredo detém-se num episódio de caça que corre mal, o primeiro e único percalço numa longa carreira de caçadas e repastos bem sucedidos. O homem fica encurralado no interior de um elevador com uma das suas vítimas, em copioso pranto, e na companhia de um pachorrento São Bernardo. No exterior, a mãe, vizinhos e autoridades prepararam-se para capturar o criminoso. O narrador não tem maneira de escapar, é o fim da história. Encurralado, sem recursos, Piñera lança mão de uma outra saída, a saída sobrenatural, o truque de magia: «abri a boca ao São Bernardo e, sem perder um segu