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Mensagens

As Afinidades Electivas

Vieira da Silva, Le bout du monde , 1986. Biblioteca de Antonio Candido. Porto

Isto está ruim para os cavalos

Almanaque de Outono , de Béla Tarr, começa com uma epígrafe sobre fundo negro: Mato-me e não vejo o carreiro; Perdemo-nos, sim! Tanto monta! Estou que nos leva o diabo, Faz-nos dar volta atrás volta. Trata-se de um excerto da segunda estrofe do poema Demónios , de Púchkin, que, de resto, também serviu de epígrafe ao romance com o mesmo título de Dostoiévski . Ora, o curioso é que o poema contém vários versos que parecem legendas de planos de O Cavalo de Turim , o filme-monumento que Tarr realizou quase 30 anos após o  Almanaque de Outono . Galopam nuvens, rodam nuvens (...) Preto é o céu, a noite breu. Lá vou, lá vou, por campo aberto, Guizos din-din a tilintar... Nem que não queira mete medo, Medo o descampado alvar! «Arre, cocheiro, anda!...» — «E forças? Isto está ruim para os cavalos; (...) No jogo túrbido da lua, Ajunta-se o bando horrendo, Díspar, vasto, redemoinha Como as folhas em Novembro… (...) Aleksandr Púchkin, O cavaleiro de bronze e outros poemas . Tradução de Nin

Reality Show

Se, num sonho louco, Béla Tarr decidisse fazer um reality show , o resultado talvez não andasse longe do Big Brother . Almanaque de Outono é uma espécie de Big Brother filmado por um fanático da filosofia e génio do cinema.

Haverá outro tema?

No fabuloso texto de Edward Bond,  Using Lulu , dedicado ao teatro de Frank Wedekind, e publicado no Manual de Leitura de Lulu , há digressões que podem ser lidas como comentários a Provisional Figures . De resto, são infindáveis as ligações que se podem estabelecer entre as duas peças. O tema é exactamente o mesmo. Haverá, na verdade, outro tema? O capitalismo – o Dinheiro Total – subordina tudo às necessidades do mercado. Isto transforma de forma profunda a sociedade. Na verdade, a sociedade ocidental é a primeira que não cria uma cultura – ela é apenas um sistema. Não vivemos para criar uma cultura – existimos para manter um sistema. E, ao mantê-lo, não promovemos a humanização, como sucederia caso criássemos uma cultura. O capitalismo desumaniza-nos, não porque não seja suscetível de persuasão moral, mas por razões de ordem estrutural. Ao dinheiro dá-se precedência sobre outros elementos da sociedade, e assim damos novos sentidos a nós mesmos e à sociedade. (...) Para se autopre

Com o tempo fui-me habituando

Um ascendente possível de Provisional Figures , de Marco Martins, é Tempos Modernos , de Chaplin. Em ambos os casos, mulheres e homens são trágica e tenazmente devorados pela grande máquina. Humanos e animais transformados em alimento para o sistema fabril de trabalho em série. Elos de uma engrenagem altamente organizada, que é preciso manter com a docilidade de escravos. Alguns dos «actores» de Provisional Figures são operários de uma «fábrica de perus», em Great Yarmouth, cidade costeira do sul de Inglaterra. O trabalho envolve gestos automáticos, executados de manhã à noite: matar os perus, depená-los, arrancar-lhes as vísceras, cortar as asas e as patas, separar os peitos, etc. Uma espécie de «dança macabra», vinte e quatro horas por dia, sem intervalos ou falhas. Equipámo-nos num corredor comprido que tinha uma porta com cortinas de plástico, onde havia um cheiro intenso a merda e sangue. Quando abri as cortinas — qual é o meu espanto quando vejo perus pendurados por todo o

Gógol, o ghost writer de Harms

OMELETA — Permita que lhe pergunte: com quem tenho a honra de falar? JEVÁKIN — Jevákin, tenente na reserva. E, por minha vez, permita-me a pergunta: com quem tenho a felicidade de conversar? OMELETA — Ivan Pávlovitch Omeleta, intendente. JEVÁKIN (que ouviu mal) — Sim, também já comi alguma coisa. Sabia que o caminho ia ser longo e fazia frio: então, comi arenque com pão. OMELETA — Não, o senhor percebeu mal: Omeleta é o meu apelido. JEVÁKIN (com uma vénia) — Ah, desculpe! Sou um pouco duro de ouvido. Pareceu-me que o senhor se referiu a uma omeleta que tinha comido. OMELETA — Pois, nada a fazer! Já quis pedir ao general que me autorizasse a mudança de nome para Estrelado, mas os meus amigos disseram que ia dar ao mesmo. JEVÁKIN — Acontece, sim senhor. Na nossa terceira esquadra, todos os oficiais e marujos tinham nomes esquisitíssimos: Lixeirov, Aldrabónov, Pútridov, o tenente. Um aspirante da marinha, e bastante bom aspirante, tinha por nome Buraco. O comandante, às vezes, gr

Ideia para uma tese

Identificar todos os pontos de contacto entre os dez intermináveis minutos da curta-metragem Hotel Magnezit , de Béla Tarr , e o romance breve (talvez exista um outro nome para isto) de Joseph Roth, Hotel Savoy . Também vieram ter comigo pessoas dos últimos andares, e a procissão nunca mais acabava. Percebi que nenhuma dessas pessoas estava voluntariamente no Hotel Savoy. Todos estavam amarrados por uma infelicidade, e para todos o Hotel Savoy constituía a infelicidade, e ninguém sabia distinguir bem entre o hotel e a infelicidade. Todos os azares aconteciam neste hotel e acreditavam piamente que a infelicidade se chamava Savoy. Joseph Roth, Hotel Savoy .

A single dot of ink

Just as egregious to many was the sacrilege concerning a single dot of ink. At the end of the last chapter featuring the protagonist Leopold Bloom, you find literature’s largest period — a giant black dot on the page — the size of which Joyce worried over, instructing his French printers to make the first edition’s big dot even “more visible.” The big dot ends a long, hilarious chapter that parodies the kind of crisp, cold tone associated with scientific discourse. The Q. and A. format is precise to the point of exasperation. By the end of the chapter and hundreds of questions — “In what directions did listener and narrator lie?” “In what posture?” — the pesky interrogator finally asks, “Where?” To which Joyce drops his big fat dot, as if to say: Just shut up. But of course, that’s just one interpretation. Some see the big dot as Earth, viewed from the heavenly throne of God, who is often understood to be the annoyingly precise narrator of this chapter. Some think it’s a black hole or

Quatro haicais de Bashô, traduzidos por Manuel Bandeira

Quatro horas soaram. Levantei-me nove vezes Para ver a lua. * Fecho a minha porta. Silencioso vou deitar-me Prazer de estar só... * A cigarra... Ouvi: Nada revela em seu canto Que ela vai morrer. * Quimonos secando Ao sol. Oh aquela manguinha Da criança morta! Manuel Bandeira, Selecta em Prosa e Verso.

Livro de horas

O que vemos pode ser um homem. Qualquer homem ou qualquer mulher, em qualquer parte. Ou ainda um espectro. Uma simples voz. Uma memória, uma imagem por dentro do sonho de outro homem ou de outra mulher. Talvez o pensamento vago e passageiro de um qualquer deus desconhecido. Que diferença faz? Uma mulher, um homem, um espectro, um sonho, são feitos da mesma substância e esperam. Eis a mais universal e democrática das leis: todos esperamos. Esperamos a nossa vez, como numa grande sala de espera, de paredes intermináveis. À espera de qualquer coisa extraordinária, incalculável e caprichosa. Ano após ano, desde há séculos, desde o princípio do mundo, ontem, hoje, amanhã, com os mesmos pontos, as mesmas vírgulas, como um livro já lido e do qual se conhecem os mais ínfimos pormenores. Se alguém perguntasse “o que estão a fazer aqui?”, alguém responderia “estamos à espera…” Sozinhos. À espera. Provavelmente de qualquer coisa que não seríamos capazes de reconhecer se nos aparecesse no caminho.

Ideia negra

O que digo é que o «rochedo» que domina toda a parte central do quadro  O Naufrágio,  de Claude-Joseph Vernet, pode ser outra coisa. Uma estranha nuvem, talvez. Talvez um sonho diabólico, a verdadeira forma do medo. O que digo é que aquela terrível mancha negra não é deste mundo. É de uma substância e potência diferentes de tudo o que existe e se conhece. Qualquer coisa que surge vinda de um outro sítio, de um outro lado, e se instala, por momentos, neste mundo. Como uma aparição, uma ideia negra que ganha forma e matéria. O que Vernet não mostra é se essa ideia negra nasce da angústia dos marinheiros ou se a sua origem é de outra natureza: o sonho de destruição de um deus funesto. O trabalho de Michael Biberstein é o de alguém que pensou obsessivamente nisto e sabe a resposta. Ou melhor, é o de alguém que sabe a pergunta certa. De que me serve fugir da morte, dor e perigo, se me levo eu comigo? Luís de Camões

Um grafíti num muro

É um pequeno e discreto grafíti no muro de um miradouro em Lisboa. Quase rente ao chão, o artista pintou oito figuras que avançam em fila. Na frente, um homem caminha com pressa. A silhueta lembra a de Fernando Pessoa. Atrás do homem (estou certo de que se trata de Pessoa), avançam seis cabritinhos. O homem (Fernando Pessoa) e os seis cabritinhos estão pintados a preto. O muro é de um branco sujo, carregado de líquenes e musgo. A encerrar este curioso cortejo, o artista pintou um lobo, a única figura a vermelho. Ou seja, Fernando Pessoa caminha com pressa — ou corre?, ou foge? —, seguido de seis saltitantes — ou assustados? — cabritinhos e atrás deles, talvez perseguindo-os, talvez não, um rubro lobo. O que significa isto? Tenho uma teoria:

Lento rápido

O que vemos em 66 Kinos é uma espécie de road movie através de uma peculiar paisagem de salas de cinema. Philipp Hartmann percorre o espaço e a memória de 66 cinemas, espalhados um pouco por toda a Alemanha. Há histórias simples e outras mais originais, longas e curtas, de resistência e loucura, mas todas têm em comum o amor pelo cinema. Por vezes, a câmara fixa-se no rosto apaixonado dos espectadores antes de uma projecção e é inevitável não vermos ali o nosso rosto. De todas as histórias, a mais curiosa é a de um empresário cinéfilo que sonha construir um cinema sob um viaduto rodoviário. O homem explica que a sala teria cerca de 60 metros de comprimento, uns 20 de largura e um andar subterrâneo. E enquanto fala e mostra o local vazio, automóveis passam a alta velocidade sobre o viaduto. E é inevitável pensarmos no impressionante contraste entre um mundo que avança a um ritmo impossível de acompanhar e os cinemas que amamos, afundando-se lentamente na sua irremediável e escura im

Cansaço

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende IX Haverá instrumento, aparelho, tecnologia, capaz de medir o nosso cansaço? Não se trata só de um cansaço de mundos, como em Álvaro de Campos, mas de todo o cansaço do mundo. «Para que serviram/ Tantos olhos entornados,/ Tanto requebro no corpo, tanta catedral, tanta obra de arte?/ Tanto filósofo enjoado?» Uma  corrida  universal contra o tempo, para chegarmos, na melhor das hipóteses, ao exacto ponto de onde partimos. Porque todos somos Ulisses e Ítaca fica em toda a parte. O mundo é velho, como um barco velho, e as tentativas para o mudar pouco mais engendram do que cansaço. E o que fazer senão voltar a partir e regressar outra vez, e partir de novo e outra vez regressar? Pireu! A cena está posta: os poucos haveres, tenho-os num saco, e o saco no convés, e o corpo vazado num cansaço espesso e vagaroso, E vou, sem amor e sentimento, só ir, por esse roxo mar que Ulisses navegou. A cena está posta e juro que, dentro do peito, que digo eu

Amor

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VIII E se o mundo é isto , «tanta gente a passar aos poucos», o que sobra? O amor? Mas «qual amor»? O amor aos fins-de-semana e feriados? O amor depois do trabalho, dos transportes, das filas no supermercado, do jantar, do telejornal, da louça lavada e posta a secar, da cama gelada e por fazer, da marmita para o dia seguinte? O amor dos «heróis do lar, humilhados e mal queridos»? Este é o amor que nos foi dado viver: o amor que avança «em seu ritmo por inércia». não digas nada nada est -  amos cansados subimos e descemos vivemos melhor e pior bem e mal bem e mal cala-te agora um pouco um pouco dá-me um cigarro e apaga a luz fala mais devagar não há dinheiro não há direito não há ar des abrido s u focado s ó só podemos amar das dez à meia-noite (Qual Amor?)

A fair field full of folk

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VII Um grito indomado cerca a terra toda; é a revolta dos escravos. (Um Dia de Vida.) Quantas vezes na poesia de hoje lemos a palavra «escravos»? Quantas vezes a palavra «oprimidos»? E «povo»? A despeito dos seus possantes pulmões e grossos punhos, o grande espectro já não paira sobre a Europa e o mundo, esfumou-se, e o ar ficou ainda mais irrespirável. Dele restam milhões de sementes de angústia, plantadas no texto, como intermináveis reticências. Sementes significativas, mas é tudo, e esse tudo não é suficiente. Juro que acreditei e acredito Na força imensa das massas populares. Eu sou dessa massa - e que doutra massa seria? Só no mundo, mesmo que esteja só no mundo, Outra coisa não posso dizer, nem outra língua falar. O homem é uma coisa Que há-de ter de ser. (Escrever nas Costas.)

O homem da câmara de filmar

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VI E há momentos em que o ritmo acelera, a marcha avança, vertiginosa, até ao fundo do século XX. O leitor corre por dentro do filme de Vertov, numa louca e febril espiral com Maiakovski e Rodchenko. Mas o olho do poeta vê mais do que o olho da câmara. Vê a imagem e o que está por trás dela, o objecto e o seu avesso de minuciosas rodas dentadas, o homem e o seu desespero cor de fogo, o homem e a sua insondável solidão. Eia pontes! Eia gruas, braços arranhando o nevoeiro dos portos! Eia formigamento de braços moles aguentando a estiva contra o peso e o sol! Eia suor, eia rumor, ronronar, triturar, estuar, estourar abrir das ostras e da noite, eia súbito lançamento da manhã, eia multidão invadindo as ruas, invadindo os transportes, os portos, a alma, os olhos, invadindo tudo! Eia! Tinir das chaves de fenda, borbulhar do ferro em brasa, chispas de aço fendendo a escuridão Eia! Proteína da argamassa, cimento, estuque, fermento dos seis

Surrealismo

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende V Não é preciso revolver as páginas para encontrar as longas e cintilantes raízes do surrealismo. Estão por toda a parte, no fundo e à superfície. «Vidros arestas peixes epilépticos»; «ali no marulhar das tardes barbitúricas.» As raízes do surrealismo, engenhosamente combinadas com humor, referências clássicas, citações bíblicas, acontecimentos, realismo . Se a palavra não é sinónimo directo de liberdade é pelo menos o instrumento possível para a alcançar. Um insulto atirado à cara da História. A resistência também se faz com a gramática, o papel e as palavras, as furiosas pedras que nos restam. Até que ponto pode chegar um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos? – a frase que poderemos intitular de central. E esta posição de abjecção, de desespero irresignável, leva-nos à única posição válida: – SOBREVIVER, mas Sobreviver LIVRES. António Maria Lisboa, Erro Próprio .

Poesia do real

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende IV Toda a poesia é do real. Toda a poesia é do quotidiano. Sentir e pensar são reais. O absoluto e o relativo são reais. O bem e o mal. Deuses e demónios também são reais. O sonho é real. O mistério é real. Os pequenos acontecimentos são reais. São reais as cidades, as aldeias, os campos, os cafés, as filas de trânsito, as salas de espera dos hospitais, o turismo. São reais o crime, o genocídio, o fogo amigo, os danos colaterais. Os bancos, as taxas de juro, a dívida. O suicídio é real. A história também. É tudo tão real que o mundo é uma ferida aberta em cada um de nós. E o pouco alívio que a poesia nos dá, não é pouco, é muito. Ocupamos um território de gestos apalpamos à nossa volta um estádio de liberdade Passam mendigos sapateiros mulheres homens concretos mineralogia urbana em seus passos comedidos despidos até por dentro cauteleiros mancos por não poderem ser mais nada  Que vêm aqui fazer por uns minutos a esta praça Homens m