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Mensagens

Poetas da própria existência

(...) 8-11-82 (Para substituir o exemplar de há mais de 30 anos — talvez 1.ª ed. — de que agora dei pela falta.) Dedicatória na primeira página de Três poetas da própria existência , de Stefan Zweig, livro que encontrei, entre bibelôs de porcelana, sapatos de senhora e calças de ganga usadas, na Feira da Vandoma. A dedicatória, dirigida a si mesmo pelo antigo proprietário, está escrita numa letra delicada e perfeitamente legível. A única coisa que não consigo perceber é o nome. Tenho muitos livros comprados em feiras de usados e alfarrabistas, com toda a espécie de dedicatórias, frases sublinhadas e notas, escritas por leitores que nunca conheci e de quem nada sei. Leitores que, na sua maioria, já não fazem parte deste mundo, mas cujas marcas persistem nas minhas leituras e, por isso, na minha vida. Dir-se-ia uma outra literatura que avança em paralelo com a das páginas impressas. Em que lugares, em que circunstâncias, a que horas do dia e da noite todos estes leitores mergulha

Mundo interior

Como funciona o pensamento? Que som tem a nossa «voz interior»? Que cor têm as imagens que passam dentro da nossa cabeça? E passam a que velocidade? O pensamento é o nosso cinema interior. Terno e terrível, belo e assustador, apaixonado e assassino. Em todo o caso, um cinema que não pertence ao mundo, impossível de resistir fora da cabeça. O Livro de Imagem é o colossal combate de Godard contra essa impossibilidade. Durante uma hora e meia, o realizador procura mostrar a mecânica do seu pensamento. A tela transforma-se no espelho de tudo o que ocorre no interior da sua cabeça: palavras e imagens. Apenas isto. E isto , que em literatura não é novidade, é muito mais do que qualquer outra coisa que já tenha sido tentada em cinema.

O mistério da revelação

Buster Keaton carrega a câmara de filmar , de um plano para o outro, entre uma cena e outra, como se percorresse uma estranha via crucis . Mas se os cristãos acreditam na redenção pela cruz, Keaton acredita na salvação pelo cinema.  

Corrente de ar

Mas continuar a pertencer à Igreja Anglicana requeria um tipo de paciência que ele deixara de possuir. Estavam demasiados afogados em inanidades. Por exemplo, a ideia que tinham da natureza de Deus era uma incongruência. Tudo o que faziam, no fundo, era andarem às palmadinhas nas costas uns aos outros. Quanto a Deus, tinham-lhe dado o chapéu, dizendo-lhe para esperar. Olhavam-no como uma criação deles; uma mercadoria. Eles dirigiam a empresa, e a ele não lhe restava mais do que fazer os recados. Deus fazia o trabalho chato; eles recolhiam os lucros. Na última reunião em que participara, tinha declarado: Onde está esse vosso Deus? Ponham-no aqui em cima da mesa e vamos lá a examiná-lo. Vamos todos passá-lo a pente fino. Para eles foi como se tivesse explodido uma bomba. No fundo, eram o tipo de pessoas que, se as portas do Paraíso se abrissem diante deles, a única coisa que haviam de sentir era uma corrente de ar. Harold Pinter, Os anões . Tradução José Lima.

Fractura exposta

Dois actores entram em palco para representarem a sua própria tragédia. Ambos perderam os filhos e, esta noite, a peça é sobre essa perda . As palavras são as suas próprias palavras. Os gestos são os seus, a dor, a angústia, o desespero. O desaparecimento de um filho é uma crueldade irremediável e para a qual não existem guiões. Não há autor nem encenador. A morte é a autora e a única encenadora. O teatro é posto de pernas para o ar. Os dois actores são o público involuntário de um diabólico espectáculo montado pela morte. E este é o grande paradoxo: ver a morte de frente transforma-se no mais impressionante espectáculo sobre a vida.   C'est la vie , de Mohamed El Khatib. Com Fanny Catel e Daniel Kenigsberg.

Trás-os-Montes

O que é Trás-os-Montes ? Que espécie de filme é este? Não tenho uma resposta. Creio que não existe uma resposta. E o ponto é exactamente esse. O espanto, a dúvida, a impossibilidade de o definir. E se não há para Trás-os-Montes géneros ou categorias, se não é isto ou aquilo, uma coisa ou outra, o espaço que sobra para a imaginação é inesgotável. O jogo está todo do nosso lado. A tela para Trás-os-Montes não é a do cinema, mas a da imaginação. O rasto de fumo que atravessa as montanhas, no final do filme, é o de um comboio em movimento? Ou o fumo de uma casa que decidiu desprender-se do chão e correr pelo campo como um comboio?  

Sapatos de defunto

Tolstói no seu leito de morte, em 1910. Não parece morto, apenas adormecido. Descalçou os sapatos, que ele fabricava com as próprias mãos, despiu-se, deitou-se, fechou os olhos e mergulhou no sono. Dir-se-ia que decidiu morrer voluntariamente porque o século XX já não era o seu tempo. Sokurov pede-lhe, em Francofonia , que acorde. Tolstói, acorda! Mostra-nos o que fazer, diz-nos o que vai ser de nós. Esperámos pelos teus sapatos de defunto, os sapatos que tu próprio fabricaste, e acabámos descalços.

Três ou quatro imagens

No meio da pista do velho aeroporto, de uma fenda no alcatrão, nasceu um frondoso arbusto. Floresce em Abril e dá uns frutos pequenos e muito vermelhos em Junho. * O Aeroporto de Tempelhof , no coração de Berlim, desactivado em 2008, está dividido em duas partes: o exterior é agora um imenso parque de lazer e o interior foi convertido num abrigo para refugiados . As duas zonas estão separadas por um gradeamento. Dir-se-ia um muro a dividir Berlim. Durante o dia, os berlinenses ocupam as velhas pistas de aterragem do aeroporto e entregam-se a toda a espécie de distracções: correm, andam de bicicleta, brincam com os filhos, fazem piqueniques, passeiam os cães. Os cães não podem andar no parque sem trela. À noite, quando todos regressam a casa, entre as ervas que rodeiam as pistas, aparecem esquivas raposas. As raposas de Tempelhof fogem quando avistam um carro patrulha da polícia. Raposas livres no coração de Berlim e cães presos pela trela. No  filme de Karim Aïnouz  quem são

Nunca vi homens tão felizes

Aqui, no Hotel Sossego, também descobri que aqueles que inventaram que o trabalho embeleza o homem não foram senão aqueles que aqui, toda a noite, bebiam e comiam com belas meninas sentadas nos joelhos, os ricos, que sabiam ser felizes como crianças pequenas... e eu que estava convencido que a gente rica estava amaldiçoada ou coisa do género, que as cabanas, os sótãos, a sopa de alho e as batatas davam às pessoas o verdadeiro sentimento de felicidade e beatitude, que a fortuna era uma espécie de maldição!, mas, segundo parece, mesmo esta conversa fiada sobre a felicidade nas cabanas, mesmo isso tinha sido inventado pelos nossos hóspedes, para quem tanto fazia, que deitavam as notas aos quatro ventos, não olhavam a despesas por uma noite louca e sentiam-se bem assim... nunca vi homens tão felizes como aqueles industriais e fabricantes ricos... como disse, sabiam brincar e gozar a vida como os putos pequenos, faziam mesmo maldades e, propositadamente, enganavam-se uns aos outros, tanto t

Atenas

Subindo a Acrópole, há um número incontável de turistas a fotografarem-se a si mesmos. Uma, duas, dez, cem vezes. Em cada lanço de caminho, junto de cada pedra, à frente e atrás de cada coluna, em cada metro quadrado do Pártenon. O mesmo plano do rosto, uma e outra vez. Não é a acrópole que visitamos, mas a nós mesmos. Ou melhor, o nosso rosto moderno, inchado e orgulhoso. Uma máscara sem sombra de tragédia ou comédia, morta, anémica como alabastro, sem mistério, espírito ou emoção. Nenhum de nós precisa de percorrer as ruínas e sentir-se assaltado pelo fantasma da história, o que precisamos é de um telemóvel com uma câmara melhor. Entre nós e os escravos que carregaram estas pedras colossais, há apenas uma diferença de pixéis. * No regresso, num dos flancos da Acrópole, inclino-me para colher do chão a folhinha de uma oliveira. Guardo-a entre as páginas de um livro. A relíquia viva da idade dos heróis, dos titãs e dos deuses. * Numa das salas do museu , estão expostas as cabeç

No fundo

Sim, valeria a pena estudar clinicamente, ao pormenor, os itinerários de Hitler e do hitlerismo, e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista, muito cristão do século XX, que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler vive nele, que Hitler é o seu demónio, que se o vitupera é por falta de lógica, que, no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os "coolies" da Índia e os negros de África estavam subordinados. Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo , 1950.

Horas e horas à frente de papel em branco

Tentei, pela centésima vez na vida, trabalhar, criar algo de belo, de duradouro. Queria perturbar a alma dos humanos, fazê-los sentirem-se melhores ou piores, mas o meu esforço evaporou-se no vazio. Sentei-me horas e horas à frente de papel em branco, imaginei que em virtude de um pacto com um demónio tutelar seria capaz de escrever algo semelhante à Divina Comédia , e quando a minha pequena e dourada alegria atingia o limite onde eu supunha principiar a orla da inspiração, escrevia, redigia duas ou três linhas, e acabava depois por deixar, desalentado, a lapiseira no cinzeiro. Convenci-me de que era impossível trabalhar de dia e obter assim os benefícios da inspiração, e recorri aos favores da noite. Reparei que no meu quarto abundavam livros, formosos quadros, selectas comodidades e, não sei porquê, ocorreu-me que a inspiração precisa, para se manifestar, da monástica solidão de uma cela, do silêncio conventual de uma cartuxa perdida nas montanhas, e então mandei substituir os vid

A Love Supreme

De repente, um piano corre através do palco. A bateria dá uma pirueta e depois outra, e outra ainda. O baixo abre os braços, roda sobre si próprio, agita todos os membros, não pára quieto. O saxofone contorce-se, explode e espalha-se por toda a parte. A seguir é o piano que se dobra e o saxofone que dispara pelo palco. A bateria contrai-se, salta, e o baixo rebola e arrasta-se pelo chão. O piano parece ter quatro, seis, oito braços, e o saxofone mil asas. O baixo e a bateria combinam-se, afundam-se, misturam-se, em longos, ternos e voluptuosos abraços. Os quatro instrumentos juntam-se e afastam-se, e aproximam-se de novo e voltam a separar-se. No palco, não há qualquer piano, nenhum baixo, nenhuma bateria ou saxofone. E, no entanto, nunca houve quatro instrumentos mais vivos sobre um palco. A love supreme , Anne Teresa de Keersmaeker & Salva Sanchis.

Todos cerram a boca

ANTÍGONA  (...) Ouviria toda a gente louvar a minha acção, se o medo lhes não cerrasse a boca. A tirania tem, entre outras vantagens, a de poder dizer e decidir quanto lhe apeteça. CREONTE De entre todos os cadmeus, só tu tens esse modo de ver. ANTÍGONA  Isso é o que te parece, porque todos cerram a boca diante de ti. Sófocles. Antígona . Versão de António Manuel Couto Viana.

Os fantasmas divertem-se

Carpe Diem , de Daniel Blaufuks, 2010. Uma casa vazia nunca está vazia. Uma casa que não é habitada há longos anos é um ninho vivo de memórias, isto é, fantasmas. Cada parede, cada fenda na parede, cada porta, cada janela, cada tábua, cada escada, cada degrau de escada, cada prego, cada grão de poeira, cada sombra, cada raio de luz, é uma voz. Pode-se imaginar quantas vozes há numa casa há muito tempo desabitada. O barulho pode ser ensurdecedor.

Quanto tempo o corpo leva a esquecer?

César deve morrer , de Paolo e Vittorio Taviani, 2012. Não será o actor para sempre um prisioneiro? Preso às tábuas, aos gestos, às palavras, a um pensamento. Preso numa espécie de limbo, nem dentro nem fora do mundo, nem agora nem antes ou depois. Morto e ressuscitado quantas vezes for preciso e à vista de todos. Quando é que um actor é livre? Quando é que o palco e o fora do palco deixam de ser a mesma coisa? Quando é que finalmente o corpo do actor se desprende do personagem? Mesmo depois das tábuas e dos muros, quanto tempo o corpo leva a esquecer? Opening Night , de John Cassavetes, 1977.

A mão e a luva

LADY MACBETH What, will these hands ne'er be clean? — No more o' that, my lord, no more o' that: you mar all with this starting. (...) Here's the smell of the blood still: all the perfumes of Arabia will not sweeten this little hand. Oh, oh, oh! (Macbeth, acto 5, cena 1.) Shakespeare antes de ser Shakespeare fazia luvas. Era luveiro, como o pai. Que secretos fios ligam o luveiro e o dramaturgo? Quantos dos seus personagens não têm as mãos manchadas de uma qualquer espécie de sangue, real ou simbólico, que é preciso revelar ou encobrir? Quantas não calçam ou descalçam luvas para ocultar ou mostrar amor, ódio, afecto, raiva, angústia, amizade, desespero, culpa ou inocência? Quantas não calçam ou descalçam as mãos para dar ou tirar a vida? Quantas das suas palavras não são luvas que mostram ou escondem um imenso e inesgotável mapa do tesouro?