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Mensagens

Adagas, fitas, rosas e espadas.

Tringapregos dá nome ao livro e compreende-se porquê — é uma personagem de alto gabarito. Grandioso. Tem tudo em demasia e tudo em falta. Porém, apesar do paleio imponente, das alcunhas cómicas e dos trajes ridículos (ah, a maravilha de imaginá-los), Trincapregos é apenas um dos “Valorosos” — um grupo de judeus da ilha grega de Cefalónia, os cinco primos Solal, homens desenfreados, sentimentalões, farsolas, pícaros, chanfrados e muito mais (...) judeus do sol e do bom humor eloquente e cavalheiresco, nós judeus do Mar e das maneiras elegantes, descendentes dos judeus de Espanha a cavalo, que andaram vestidos de seda e usaram adagas, fitas, rosas e espadas (...). O livro cresce em redor das peripécias destas personagens extravagantes. Através de aventuras calhadas para o torto, Albert Cohen capta o lado mais solar da existência — uma vida cheia de cores, de cheiros, de comida, de corpo, efervescente, zombeteira, imperfeita, desgraçada, de excesso, mais dionisíaca que o próprio Dionísi

Uma assustadora retenção

— Tens razão, reconheceu Trincapregos fazendo estalar as mãos imensa. Se eu não mentisse, que me restaria? Mas os romancistas mentem mais fundo do que eu. Todos eles fazem maus livros, que fazem crer às donzelas que o amor é um viveiro do paraíso e às mulheres que o casamento é um esgoto! Mentirosos, verdadeiros mentirosos e envenenadores, todos esses distintos escritores que mostram as suas poéticas heroínas bebendo e comendo de uma maneira encantadora e trincando com um ar obstinado algumas grainhas de uva. Muito bem, meus senhores, permitam-me que me espante de que nunca nos falem das consequências dessas trincadelas obstinadas. Sim, meus senhores, desde Homero até Tolstoi, os jovens heróis e heroínas sofrem, sobretudo quando são belos, de uma assustadora retenção. Não podem mais. Por exemplo, há mais de trinta anos que uma tal menina Natacha Rostova anda a beber sem que o autor a autorize a retirar-se nem por um instante! Todos os amantes e todas as amantes de Shakespeare, de Racin

Sopro

Se de repente um actor decidisse, tal como o Helmer de Robert Walser , mudar o texto ou a cena de uma peça, isso seria o fim do teatro. No teatro, há um plano, um guião, um cenário há muito desenhado. O teatro é o contrário da vida. Não há nada de rotineiro na vida, nada de previsível no rame-rame do quotidiano. Num segundo, tudo pode mudar. A morte espreita a cada passo. No teatro, pelo contrário, sabemos quem morre e quem vive. «A Ifigénia tem de morrer todas as noites.» Um actor não tem o direito de mudar o que está escrito. Na peça de Tiago Rodrigues , o momento em que o ponto tenta mudar o curso de uma história, soprando ao actor palavras que não estão no texto, é exactamente o momento em que o teatro se confunde com a vida. É o momento mais belo e mais perigoso da peça. O momento em que o teatro abandona o palco e irrompe, como uma rajada de vento, pela nossa rotina dentro. Já não é teatro, mas outra coisa mais forte. Um acontecimento sobrenatural e contrário às leis da Natureza.

Debaixo do fogão

(...) A seguir Saltiel falou da perspicácia de um tal professor Freud. — Há alguém que roubou e que nega. Bem, levam-no a este médico professor, que olha para ele e diz: “A carteira está debaixo do fogão!” Trincapregos, de Albert Cohen, tradução de Pedro Tamen, Contexto, outubro de 1999, páginas 108 e 109.

Uma pessoa instruída

E logo a seguir disse aos seus correligionários que aquela pequena nuvem, lá em cima, lhe recordava o ilustre dramaturgo inglês Shakespeare. Depois apontou para uma poça de água e afirmou com desembaraço aos velhos pasmados que ela “continha o ambiente de certos romances de Georges Sand”. — Instruído, baliu o centenário, sacudindo debilmente a sua mão enrugada. — Deus to guarde, ó Abraão, disseram os outros, maravilhados. E Jónatas continuou a brilhar, a mostrar como estava armado para a vida com os dons do espírito, para a imensa glória do seu gordo e inchado pai, que o olhava com frágil meiguice de apaixonada, e sorria nesciamente, enfeitiçado por aquele quase-Messias que pusera neste mundo. Trincapregos, de Albert Cohen, tradução de Pedro Tamen, Contexto, outubro de 1999, página 50.

A arte subtil

— É deprimente. — O quê? — Os livros mais vendidos da categoria de ensaio. — Mas é o top. Qual é a surpresa? — Mesmo assim. É terrível. — Tens de saber dizer que se f*da.

Verde que te quero verde

Daqui até às eleições legislativas, todos os partidos políticos vão falar de questões ambientais. Vão integrá-las nos cartazes, nos posts das redes sociais, nos programas e talvez em pins giros para a lapela. Não porque seja um tema crucial, mas por causa dos últimos resultados eleitorais. Os partidos gostam demasiado da superfície e de votos. Já arranjei uma palavra para o fenómeno: panalização .

A baleia empalhada

«Um filme não é verdadeiramente bom senão quando a câmara é um olho na cabeça do poeta. Os distribuidores, naturalmente, estão todos de acordo em que os poetas não fazem vender lugares. Não adivinham de quem nos vem a própria linguagem do cinema. Sem poetas, o vocabulário do filme seria demasiado limitado para agradar ao público. O equivalente a uma tagarelice de crianças não faria venderem-se muitos lugares. Se o cinema não tivesse nunca sido amoldado pela poesia, teria permanecido como simples curiosidade mecânica e seria ocasionalmente exibido como uma baleia empalhada.» Orson Welles, 1958. Tradução de Luísa Ducla Soares. Béla Tarr, As Harmonias de Werckmeister , 2001.

Outro que tal

Por mais mais voltas que dê, não consigo descrever Franz Polzer. Posso arrumá-lo na secção pobres diabos , sim, mas tem de ficar num quarto incomunicável porque essa categoria não permite nem diálogo nem irmandade. Tudo o que pode ser dito sobre Polzer, está escrito n’ Os Mutilados — o resto são interpretações de segunda, discursos frágeis, variações menores. O grande passo da literatura é a capacidade de transformar palavras e personagens, coisas intangíveis por natureza, em objectos únicos. Uma obra literária é como uma árvore ou uma pedra — guarda o mesmo mistério. Não se deixa apanhar.

Vanidade

Não é preciso um curso completo, mas seria muito útil estudar algumas palavras alemãs. Para começar, sugiro Eigenschaften . É que já chateia ouvir chamar a este e àquele “homem sem qualidades” querendo dizer que ele é má rês (uma expressão portuguesa formidável que caiu em desuso e não se compreende porquê dada a quantidade de patifes sempre disponíveis para adjectivar). Assim, em vez de parecerem ilustrados como querem tanto parecer, vê-se logo que não leram o livro de Robert Musil ou, pior ainda, leram e não perceberam patavina. Um homem sem qualidades é feito de qualidades sem homem . Pobre Ulrich tão cheio de qualidades e tão falho de homem. Vá, desandem, deixem-no em paz.

O vaso de louça chinesa

Nenhuma moral, por mais firme que seja, pode manter-se intacta se cair com estrondo no chão, como uma peça de louça chinesa. Um vaso Song muito raro transforma-se prontamente num monte de cacos.

O risco de morrer de competência

(...) Uma escola mais difusa, resultante de uma mistura destes processos, é analisada num dos livros mais interessantes dos últimos anos sobre história e produção literária: "The Program Era", de Mark McGurl — sobre o impacto dos programas universitários de escrita criativa na ficção americana do pós-Guerra. Um dos efeitos desse regime, simultaneamente descritivo e prescritivo, foi a elevação da pura técnica a telos, e a consolidação de um conjunto de princípios didácticos numa doutrina de composição: o estilo "Hemingway-light" que dominou parte significativa da literatura dos Estados Unidos — principalmente no conto — a partir da década de 1950, e que permitiu a centenas de pessoas construir uma carreira a escrever como Raymond Carver ou (num caso em concreto) a ser Raymond Carver. O modelo será mais ou menos familiar. Relações problemáticas ou terminais. Uma casa nos subúrbios dos subúrbios. O marido (Hank ou Herb) a beber no sofá, atormentadamente. A mulher (Ji

Despedida

Da mesa do café, observo o casal na esquina da Constituição com Faria Guimarães. Têm à volta de cinquenta. Um pouco mais, talvez. Despedem-se com um beijo e um breve toque de mãos. Ela sobe a Constituição, ele espera que o semáforo passe a verde para descer Faria Guimarães. Antes de atravessar a rua, ele lança ainda um olhar na direcção dela, e quase consigo ouvir a pergunta a ressoar dentro da sua cabeça. A velha pergunta. A terrível pergunta: «Será que é a última vez que a vejo?»

Isto dito, continuar

Quando nos damos conta, é sempre demasiado tarde. Adiamos a carta, a mensagem, o telefonema, o encontro, hoje, amanhã, depois de amanhã, uma e outra vez. Por pudor, por incúria, por preguiça, por pura cobardia. Há mil razões para adiar um encontro e todas estão erradas. Não há desculpa. E, no entanto, deixamos o tempo construir a sua diabólica obra. A negra e lenta teia. E assobiamos para o lado, ou melhor, para dentro. Eu devia ter ligado ao Luís Mourão. Devia ter escrito. Devia ter ido ao seu encontro. Agora é demasiado tarde. Restam as palavras e os livros, e é tão pouco. Resta-me a memória de alguns encontros, tão poucos, mas sempre inesquecíveis, a pretexto dos livros. Era um prazer ouvir o Luís Mourão falar dos livros e dos autores que lhe interessavam. Como os grandes mestres, tinha desenvolvido uma espécie de exercício de encantamento para seduzir o auditório. Do fundo de um bolso, retirava a chave e apresentava-a com prazer ao público. Depois, com um gesto largo e lento abri

Restos

Depois de pensar um bocado, escrevi esta frase: Expulso da literatura, é com os restos que Walser trabalha . É curto, mas até não está mau; quer dizer, é pouco mas é um alicerce concreto. Agora é preciso dar margem à palavra restos (nota: procurar umas coisas que Manoel de Oliveira disse sobre o filme Party ) e construir uma tese. Mas isso já não me apetece fazer — gosto de projectos inacabados.

Território espiritual

A maior parte das vezes também penso que não deveríamos dizer nada sobre Robert Walser — uma gentil retribuição da nossa parte. Mas somos sempre tentados, ah! descobrir uma palavra particular, uma frase, uma imagem que nunca ninguém viu e que se aproxime da doçura e da crueldade e que tenha profundidade não saindo do mais rasteiro e por aí fora no desvario. Acabamos afogados (João César Monteiro, por exemplo, afogou-se na escuridão e na humidade com extrema verticalidade), mas isso também não é mau. Porque em Walser é sempre tudo bom e alegre, mesmo quando choramos. Principalmente quando choramos.