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Mensagens

Erros sucessivos

Quando escrevi “talvez os seus aforismas não surjam de um pensamento analítico sustentado” , enganei-me. Só me apercebi da gralha mais tarde. Corrigi. Aforisma  utiliza-se em medicina e designa “hematoma resultante da ruptura de um vaso sanguíneo”. As palavras têm um sentido clandestino e autónomo que vê tudo com mais clareza. Corrigir é um erro maior.

Liquidação

E ainda a propósito do sentido das palavras : Somos feitos de palavras. São o nosso limite e ilimite. Ético. Estético. Político. Com elas nos exprimimos, atrás delas nos escondemos. São mentira reveladora, verdade tímida, meia verdade. Carregam a nossa impotência e embriagam-nos com o seu poder. Apesar da omnipresença das imagens, as palavras passaram a ser o suporte mais forte da pós-verdade. A par das fake news , que inundam a cena política, o recurso ao fake knowledge , amiúde assente no name dropping , tem vindo a vulgarizar-se a ponto de haver quem defenda, com falsa candura, que tudo é o que é e o seu contrário. Só assim se explica que proibir pretensamente signifique permitir que alguém se coíba... (...) Repare-se, por exemplo, na utilização pelos programadores dos Teatros Municipais do termo “ocupar” (1000 razões de ocupar o teatro) que, remetendo para factos ocorridos num passado assaz recente – a saber: a luta contra a privatização da gestão do Rivoli –, aposta no seu t

A balança bem calibrada de Steiner

Pode parecer um bocado acintoso entalar George Steiner no meio de textos sobre Cioran. Não foi de propósito, calhou assim. Também não me apeteceu disfarçar até porque, se parar para verificar os  raciocínios, ainda acabo a concordar com o que Steiner escreveu sobre Cioran (por exemplo, procurar aqui “Short Shrift”). Steiner tem uma balança bem calibrada para as letras , sei disso. E sim, talvez haja nos lamentos de Cioran uma facilidade ominosa. Talvez os seus aforismos não surjam de um pensamento analítico sustentado. Talvez a sua tristeza seja preguiçosa, repetitiva e demasiado declamada. Talvez Cioran seja um moralista teatral sem argumentos de ferro, sem roupas, sem reino. Mas não é por isso que gosto menos dele — das suas palavras de meteco ou dos seus pensamentos esbotenados. Também as nossas inclinações intelectuais saem muitas vezes de um não sei quê obscuro e antigo . É  como o cheiro das laranjas, é preciso aguentar.

Non, rien de rien.

Cioran só começa a escrever em francês aos 37 anos. Há várias maneiras de explicar esta decisão, ele próprio fala bastante sobre o assunto. Mas, conforme vou lendo e traduzindo, mais me convenço que foram as variadas formulações negativas disponíveis que atraíram Cioran para a língua francesa. Mesmo para afirmar qualquer coisa, é possível atirar uma frase com uma negativa indirecta ou exclusiva. Escrever assim é como andar de costas — inequivocamente o movimento que melhor convém a um filósofo de sobrolho franzido. Em última instância, o francês oferece ainda a dupla negativa — um verdadeiro rodopio centrípeto junto ao abismo. Que mais poderia Cioran ambicionar? Ah, sim, umas gotas de sangue. A negação não sai nunca de um raciocínio, mas de um não sei quê obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para a justificar e apoiar. Todo “não” surge do sangue.

Influenciadores do século XX

cf. Peter Marlow - GB. Cambridge. George STEINER

Take care of your belongings

No metro de Lisboa, os painéis informativos aconselham os passageiros a ter cuidado com os seus pertences. Há tanta coisa que só a mim pertence e que infelizmente não cabe na mochila ou nos bolsos. Tanta coisa que agradecia que me tirassem, sem drama e alvoroço, como no carteirista de Bresson.
Da humidade e do cotão — uma perspectiva sobre a obra de João César Monteiro Podia ser uma tese de setecentas e tal páginas com frases transparentes e pensamentos densos, densos de tudo aquilo que se lhes escapa .

Início da primavera

Atrofia do verbo

Gosto do modo desembaraçado como Cioran atribui características físicas às palavras. Nos seus livros, a linguagem é uma entidade viva ou, pelo menos, ainda viva . O definhamento e a doença já estão agarrados à pele das frases, mas ainda há uma respiração, uma rala cavernosa. Não sabemos se os pensamentos se safam ou não. Se cheira a lírios ou a cadáver.

Pequenas notas sobre um grande amigo

Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século. Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende deixou de ser um segredo guardado por meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta. O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever. Os três livros que publicou, antes da «Poesia Reunida», de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A «Poesia Reunida» também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele q

A reflexão e a acção

A certa altura do teu mail anterior dizias: «Parece-me que é entre estes dois pontos que a nossa vida se joga: a reflexão e a acção.» É curioso, isto faz-me lembrar as plantas. Elas têm uma parte reflexiva e uma parte activa. A parte reflexiva é a parte das folhas, que estão ali à espera que venha o ar e o sol dar-lhes o CO2 e a luz de onde extraem 88% da sua massa. A parte activa são as raízes que furam o solo e exsudam açúcares para os microorganismos que, em troca, lhes dão azoto, potássio, quelatos de ferro, etc., e oligo-elementos, isto é, o resto, muito pouco, da sua massa. Bem, tenho consciência de que isto tudo é um pouco confuso, mas pronto. Um abraço.  manel

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh Essa orelha que nem o amor criterioso da honrada família Conseguiu preservar do esquecimento, Pobre orelha a que mais ninguém ligou E que está se calhar esperando o seu dono Que não volta, Nessa Provença é que eu estou. A verdade é que nem eu a encontrei, Mas, também, como os outros, não perdi muito tempo a procurá-la. Salvem-se os quadros, vendam-se os quadros Guardados pela criteriosa família E até por descuidados provençais - é o essencial. A orelha, que se lixe, não se pintam quadros com orelhas. As orelhas são para os músicos, e mesmo esses, Às vezes já só tocam música interior. Vicente, meu velho, em verdade te digo, Que por aqui as plantas andam a tentar imitar-te E, tantos anos depois, ainda não conseguiram. Elas bem se torcem, elas bem chamam o sol, Que todo se estremece, Elas bem se encostam ao céu, Elas bem se verde, elas bem se azul, elas bem se amarelo. Eu sei, eu sei, Vicente, muito te custou, Talvez até

A classe operária apanha o elevador e sai no 13º andar

Não sou de comprar muitas coisas. Nunca fui. Vivo no mesmo apartamento há trinta anos; o carro tem mais de vinte. Roupa, só a necessária. Tralhas para a casa, nem pensar. Houve um tempo em que comprava livros e filmes, mas também me deixei disso (vou à biblioteca ou releio, aborreci-me um bocado com o cinema). Deixei de fumar. Aproveito tudo até ao fim, consumo cada vez menos. Neste momento só gasto dinheiro em coisas básicas tipo água, electricidade, de comer e beber, transportes, dentista. Apesar do rendimento familiar ser baixo, sobra mais ou menos um terço todos os meses — sem esforços. O dinheiro serve-nos para pouco. Já fiz as contas, quando ficar sem emprego (não falta muito) posso viver dos rendimentos. Pareço a minha avó que com pouca comida, enchia uma mesa; e com uns trocos, juntava dinheiro. Uma versão letrada e manhosa da minha avó.

Dia do pão

Milhões e milhões de euros, dólares, cuanzas. Mansões nos quatro cantos do mundo, iates, automóveis de luxo. Para a esmagadora maioria, tudo isto tem o mesmo peso de uma folha de jornal, lida de manhã cedo no metro, a caminho do trabalho. É tão concreto como uma história de fadas ou um policial, ou um episódio da novela da noite. Estamos fora desta escala, tal como os nossos pais e avós também estiveram. Não entendemos, apenas imaginamos entender. Por estes dias, não me sai da cabeça aquele longo plano de um dos grandes filmes de Dvortsevoy : o grupo de velhos a empurrar um vagão de comboio, durante horas, no meio da neve. E no interior do vagão, uma curta fornada de pão. Insuficiente para alimentar todos os habitantes da aldeia.

Influenciadores do século XX

Ó vós que ides passando

Esta manhã, quando saí de casa, já não chovia. O céu estava limpo. Mas, de vez em quando, ainda caíam dos telhados aquelas gotas solitárias, frias, inesperadas, que passam entre os cabelos e gelam o crânio. Mais terríveis do que um aguaceiro. Para nos lembrar que o Inverno é longo e difícil.