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Mensagens

Ah, se houvesse um burro

Não sei qual é a minha personagem favorita d’ O Idiota ; são todos exaltados em demasia. Mesmo o Príncipe, agora que estou mais perto da idade de Lisaveta, parece-me tão parvinho como Aglaia. E os nilistas, sempre prontos a trocar as frases radicais pelos tormentos da alma — que decepção! Na verdade, apesar de me divertir muito com as grandes e as pequenas intrigas, de quem gosto mais é do narrador. Ou do burro, se houvesse um burro.

Comic relief

Aníbal Fernandes conta no prefácio de O Pendura que o pai de Jules Renard se matou com um tiro de caçadeira e a mãe se deitou a afogar num poço. Desta fatalidade dupla, diz o prefaciador, Renard extraiu este desabafo: «Que maneira tão complicada de me fazerem órfão.» Nada está mais próximo do riso do que o desespero.

Os tipógrafos conhecem o nosso estilo

- Já agora, Falk, estiveste no Teatro de Djurgården? - perguntou o alto. - Não. - É uma pena. O Lundholm e o seu grupinho de escroques actuam lá de momento. Que coisinha lamechas! Não enviou bilhetes ao [jornal] A Víbora , e quando lá fomos esta noite expulsou-nos. Mas vingar-nos-emos. Gostarias de desancar naquele suíno? Aqui tens um lápis e um papel. Intitulá-lo-ei Teatro e Música, Teatro de Djurgården ; agora, podes escrever! - Mas nem sequer vi o que a sua companhia tem em palco! - Que diabo tem isso que ver com isto? Nunca escreveste sobre coisas que não viste? - Não, nunca o fiz. Denunciei casos de corrupção, mas nunca ataquei pessoas inocentes. E não conheço a companhia. - São uns imprestáveis. Não passam de refugo! - confirmou o gordo. - Afia o lápis e espeta-o onde dói; és bom a fazê-lo. - Porque não o esfaqueiam vocês mesmos? - Porque os tipógrafos conhecem o nosso estilo e trabalham amiúde como actores secundários no teatro, à noite. August Strindberg, O salão verme

Influenciadores do século XX

Roberto Arlt.

Observações avulsas sobre a boavista #21

As ervas daninhas crescem no parque de estacionamento da Fartech. Isto quer dizer que os trabalhadores continuam em casa. Num futuro próximo poderá ser uma metáfora da queda subtil de um unicórnio inverossímil  escrita nas páginas de um semanário de economia por um jornalista influenciado pelas imagens bucólicas da China toda poderosa.

Observações avulsas sobre a boavista #20

Não sei se o conceito “moradia Arpel” serve mais a arquitectos, sociólogos ou cinéfilos. A mim dá-me jeito como instrumento multiuso — tipo canivete suíço. Na avenida da Boavista, nos números três mil setecentos e tal, existem uns quantos exemplares. Algumas até têm cadeiras exteriores idênticas às do filme de Jacques Tati. Imagino que lá dentro  tudo comunica .

Falam com grande gravidade e, apenas, o estritamente necessário.

João César Monteiro: Os diálogos que escreveste para o Mudar de Vida do Paulo Rocha também são resultantes de uma investigação prévia? António Reis: Nesse caso, a natureza dos diálogos deve-se primeiro, a um espírito muito conciso que tenho na poesia: o seu aspecto descarnado é também peculiar à região dos vareiros da Afurada, que eu conhecia. Havia uma certa afinidade com a maneira de falar da região porque eles falam com grande gravidade e, apenas, o estritamente necessário. Para além disso, o Paulo Rocha ia tratar um tema que eu estudara na adolescência, e isso foi determinante. Praticamente, vi sempre o diálogo na boca das pessoas. Por isso, tem muitos silêncios, muitos  staccatos , uma pontuação cinematográfica. Na verdade, julgo que criei um diálogo para cinema. Com esta sorte também: é que, na expressão poética eu era muito económico e conhecedor dos vícios em que se incorreu ao utilizar o diálogo como suporte de muitos filmes e estava, por assim dizer, alertado contra esse

Figos secos

O meu irmão trouxe-me alguns figos. Não os comi logo. Espalhei-os num tabuleiro e pu-los ao sol, atrás do vidro da cozinha. Três ou quatro apodreceram sem remédio. Mas os restantes têm boas hipóteses de ficar secos, engelhados e torcidos. Os únicos aforismos de que sou capaz.

Pressuposto normativo

Daqui para o futuro todos os romances apropriados vão declarar na última página: Brevemente uma série NETFLIX. Daqui para o futuro todos os romances impróprios vão declarar na primeira página: Das profundezas da DARKNET.

Shanqarani

(...) “O teu poema é comovente,” disse Abu al-Anbas, “mas o que significa shanqarani ?” “Ó, essa é uma palavra antiga. Hoje em dia, só a ouves na poesia de burros.” O Burro de Abu Al-Anba, por Eliot Weinberger.  

Máscaras e palavras

Sou meio duro de ouvido. Acontece-me por vezes não perceber à primeira o que me dizem. Por timidez, nem sempre peço para repetirem. Com as máscaras, o problema generalizou-se e eu desisti. Há conversas em que consigo perceber apenas algumas palavras. Mas será que ouço as palavras correctas ou simplesmente imagino-as? Quantos diálogos extravagantes não têm acontecido nestes tempos de pandemia? Quantas histórias paralelas não têm vivido as pessoas duras de ouvido?

Obras

Os tipos das obras escreveram “FIM” no cimento junto à porta do edifício onde vivo. A palavra — letras maiúsculas, vermelho sangue de boi — ocupa mais ou menos dez por dois centímetros. Vai desaparecer quando fizerem o novo piso de alcatrão. Classificação: ao nível das melhores obras efémeras de Banksy. Ofusca os monstrengos da Joana Vasconcelos.

Banalidades

- Então não tem mesmo respeito nenhum pela sua arte? - Pela minha arte? Porque deveria ter mais respeito pela minha arte do que pela de qualquer outro? - Mas interpretou os grandes papéis; interpretou Shakespeare, interpretou Hamlet, não foi? Nunca se sentiu tocado na essência do seu ser ao proclamar o profundo monólogo «Ser ou não Ser?» - O que quer dizer com profundo? - Bem, profundo e penetrante! - Explique-se. O que tem de tão profundo dizer coisas como «Devo ou não matar-me? Ficaria feliz por cometê-lo se soubesse o que existe depois da morte (como qualquer outra pessoa). Mas não sabemos, por isso não nos atrevemos a tirar as nossas próprias vidas.» O que tem isso de profundo? - Bem, se o coloca desse modo... - Exactamente. Não tenho dúvidas de que pensou em tirar a sua própria vida em alguma altura, não pensou? - Sim, toda a gente o fez. - E porque não o fez? Porque, como Hamlet, não se atreveu, porque não tem a certeza do que existe depois! Estava então a ser especialm

Influenciadores do século XX

Como seres humanos e não como livros

No seu estado parcialmente inebriado, Falk sentia-se muito bem: aquele sítio era quente, luminoso, barulhento e fumarento, e encontrava-se rodeado de pessoas cujas vidas prolongara por algumas horas e que, por conseguinte, estavam tão contentes quanto moscas reavivadas pelos raios do sol. Sentiu-se parte de uma unidade que com eles formara, uma vez que, no geral, eram infelizes, modestos e educados; percebiam o que ele dizia e, quando falavam, expressavam-se como seres humanos e não como livros. August Strindberg, O salão vermelho . Tradução de João Reis.

Há três tipos de melancolia

Emil Cioran: (…) a música deve deixar-nos loucos, senão não vale nada. Sylvie Jaudeau: Em suma, a música confronta-nos com este paradoxo: a eternidade presentida no tempo. Emil Cioran: É de facto o absoluto apanhado no tempo, mas incapaz de aí permanecer, um contacto ao mesmo tempo supremo e fugitivo. Para que permanecesse, seria necessária uma emoção musical ininterrupta. A fragilidade do êxtase místico é idêntica. Nos dois casos, o mesmo sentimento de incompletude, acompanhado por um lamento dilacerante, uma nostalgia sem fim. Sylvie Jaudeau: Essa nostalgia é precisamente a base da sua visão do mundo. Como é que a define? Emil Cioran: Esse sentimento está ligado em parte às minhas origens romenas. Por lá, impregna toda a poesia popular. É um desgosto indefinível que em romeno se diz dor , próximo do Sehnsucht dos alemães, mas sobretudo da saudade dos portugueses. Sylvie Jaudeau: Você escreveu: “Há três tipos de melancolia: russa, portuguesa e húngara." Emil

Picar o ponto

«A vida é uma festa, vamos vivê-la juntos», repetiu Guido Anselmi, ontem à noite, em Oito e meio . Depois, o filme acabou, saímos do cinema e regressámos a casa. Esta manhã, entrei ao serviço às nove em ponto e a sensação foi a de que tinha mordido um prego. «A vida é uma festa.» Talvez ainda tenha de morder muitos pregos até aceitar esta verdade felliniana, sem fazer perguntas.
Ouvi a expressão no noticiário da TSF, à hora do almoço, a propósito da final da Champions: inerência da superação . Significa  ganhar o jogo  mas, dito assim, parece que as palavras estão sentadas na cadeira do dentista.