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Mensagens

A regra do jogo

Contaram-me que, durante a rodagem de A Regra do Jogo , nas vésperas da Guerra, Jean Renoir e a equipa tiveram de esperar quinze dias para filmar as cenas da caça. Durante esses quinze dias, de chuva ininterrupta, ficaram confinados perto do local das filmagens. A paragem mudou, de certa maneira, a vida de Renoir: o filme ultrapassou largamente o orçamento previsto, foi um fracasso comercial e o realizador endividou-se. O confinamento forçado da equipa em A Regra do Jogo transformou-se na pandemia particular de Jean Renoir. E entre as criaturas que tombaram na sequência da caça, também estava ele.

Mão de Deus

Uma enfermeira brasileira criou a Mão de Deus: duas luvas de plástico com água morna no interior e os dedos atados para formar uma só peça envolvente. Serve para dar algum conforto aos doentes que estão hospitalizados sem contacto com ninguém. Tem substância material e simbólica como uma obra de arte sem cair no experimentalismo afectado. Apesar da serventia, é uma obra de arte em acção — como uma ponte?

Excesso de exercícios físicos e imprudente uso de drogas

É por volta dos 36 anos que aparecem os sintomas da doença que aniquilaria Guy de Maupassant. Escreve menos, e Le Horla sugere que ele está sujeito a alarmantes desvios da imaginação. Em 1890, a sua carreira está praticamente encerrada. Começa então a tomar interesse pelos problemas religiosos e, por algum tempo, faz da Imitação o seu livro de bolso. Mas doenças nervosas herdadas, além do excesso de exercícios físicos e o imprudente uso de drogas, acabam por abalar-lhe a forte constituição; sua misantropia agrava-se e sofre curiosas alucinações. Atingido de paralisia geral, de que a mania das grandezas fora um dos sintomas, ia ele passar o Inverno de 1891 em Cannes, quando sua razão começa lentamente a soçobrar. Em Janeiro de 1892 tenta suicidar-se e é removido para Paris, onde morre em penosas circunstâncias a 6 de Julho de 1893. Mário Quintana, Guy de Maupassant, sua vida e obra.

Hábito

Ao fim de um ano, passado o primeiro terror, instalou-se uma nova calma. Uma calma que tem menos que ver com esperança e mais com impotência. Pouco a pouco, a cidade retoma a vida, com ou sem restrições. As pessoas formigam pelas ruas e praças, ocupando-se de mil e uma insignificâncias. A vida não depende dos números, mas do hábito.

Masterclass de storytelling

Bárbara passou outra vez na televisão. Gravei. Vale a pena rever os filmes de Christian Petzold; o olhar vai-se desviando da história e encontramos imagens que pouco nos dizem sobre o que está a acontecer, mas que ficam a ressoar na cabeça para sempre. Por exemplo, as cenas na banheira: o pneu da bicicleta e o dinheiro embrulhado à prova de água. Ou no hotel, as raparigas com as pernas ao alto. Quando se deita fora o storytelling , o que fica é cinema. Se não me engano, no Party , de Manoel de Oliveira, Michel Piccoli diz qualquer coisa do género?

Coisas que saem ao escrever

(...) o Manoel confessou um dia ter ficado intrigado com a afirmação de Fanny — a alma é um vício; isso não deixava de o inquietar, e por mais voltas que desse, e perguntas que fizesse, não conseguia obter um significado plausível! Um dia, perguntou mesmo a minha Mãe o significado de tal afirmação, mas a resposta foi simplesmente: não sei, foi coisa que me saiu ao escrever!

Possibilidade de trovoada

Sexta-feira santa. Segundo a tradição cristã, o dia em que Jesus foi crucificado. O céu está nublado, mas não chove. De vez em quando, o sol irrompe. Uma luz coada pelas nuvens, amarela, pesada, doente. Até ao final do dia, talvez troveje. A meteorologia alinha no tempo cristão com um toque de melodrama.

Observações avulsas sobre o bonfim #26 (anexo)

O senhor Pedro atende à porta sobre duas caixas de plástico transparente empilhadas. Um cesto para o pão, pilhas, detergente, o que calhar. Desejam-lhe boa Páscoa, ele responde “igualmente” e despede-se com “tudo de bom”. Apesar do sotaque, o senhor Pedro já domina a linguagem local. Nota-se que não é completamente português porque agradece e sorri muito.

Deserto

A chuva de lama, prevista pelos meteorologistas , não se confirmou. Pelo menos no Porto. Mas dentro de casa há uma película de areia muito fina espalhada pelo chão. O deserto avançou até ao quarto.

Chuva de lama

Portugal está a ser atingido por uma massa de ar proveniente dos desertos do norte de África. Durante estes dias o céu deverá apresentar uma tonalidade acinzentada, embora a presença de nuvens altas possa tornar menos discernível esse efeito. A luz solar será também afetada, com um efeito de filtração constante, mesmo em períodos de menor nebulosidade. Além disso, a precipitação prevista, associada à presença de poeiras em altitude, poderá resultar na deposição de algumas poeiras no solo, no que popularmente se designa por "chuva de lama". Daqui.

Não é ninguém

O borá começava a soprar. Eu e B. tínhamos acabado de sair do museu Revoltella e dirigíamo-nos para o café Garibaldi, quando um moço alto e magro, com um impermeável de gabardina meio revirado pelo vento, passou apressadamente ao nosso lado, cruzando-se connosco, e se voltou para cumprimentar com um aceno de mão. Não tinha nada de especial, no entanto perguntei a B.:  - Quem é? - Oh, não é ninguém - respondeu B. indiferente -, um futurista. Eugenio Montale, A borboleta de Dinard . Tradução de Armandina Puga e outros.

3 de outubro de 1966

Encontrei Beckett esta noite por volta das 23 horas. Fomos a um bar. Falámos disto e daquilo, de teatro e depois das nossas respectivas famílias. Ele perguntou-me se eu trabalho. Disse-lhe que não, expliquei-lhe a influência nefasta do budismo, que não páro de estudar, sobre as minhas actividades de escritor. Toda a filosofia hindu exerce efeitos anestésicos sobre mim. E depois disse-lhe que consegui tirar consequências das minhas teorias, que me convenci a mim mesmo do que escrevi e que me tornei meu discípulo. E se quiser voltar a ser escritor, terei que seguir o caminho oposto ao que percorri. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Devir-negro do mundo

O que há de novo neste momento é o que Achille Mbembe chamou de devir-negro do mundo , isto é, quando a condição da população negra se torna padrão de vida e se generaliza por toda a sociedade. Não à toa as polícias estão encontrando tanta dificuldade em desfazer aglomerações, afinal, não se chega em toda festa da maneira que se chega num baile funk, batendo, esculachando, prendendo e até matando, como nos lembra o massacre de Paraisópolis no já longínquo 2019. Aline Passos.