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Mensagens

Dada vive

Leio no jornal que o empresário Pedro Pinto, dono da Livraria Lello, tem uma nova ideia de negócio para o Porto: criar o «Bairro Dada», na Rua do Loureiro. Releio o texto para ter a certeza de que não me enganei. «Numa homenagem ao dadaísmo feita pelo próprio Pedro Pinto, o “Bairro Dada”, cujo nome “já está registado”, será “a nova grande centralidade do turismo na cidade”.» Sinto-me imediatamente inspirado pelo empreendedorismo de Pedro Pinto e ocorre-me também uma nova ideia de negócio: o Bairro das Tripas à Moda do Porto, na Spiegelgasse, em Zurique, com sede no Cabaret Voltaire. Mas, pensando melhor, e agora sem ironia, talvez fosse difícil pensar numa ideia mais dadaísta do que criar o «Bairro Dada» na velha Rua do Loureiro. Dada está vivo.

Astigmatismo

Há meses que tinha a impressão de estar a ver pior. A impressão era mais forte quando lia e, em especial, no olho esquerdo. Marquei uma consulta no oftalmologista. O médico confirmou os meus receios: a lente esquerda dos óculos passou de quatro para cinco dioptrias. O médico disse-me que este agravamento não é comum em pessoas da minha idade com astigmatismo, que é uma doença que tende a estabilizar e não o contrário. Talvez exista uma qualquer lição zen para gente como eu, que vai perdendo lentamente a visão. De tanto se esforçarem por verem as coisas com mais nitidez, vêem cada vez pior. Quer dizer, vêem melhor as sombras das coisas.

Influenciadores do século XX

 

Teletrabalho

Investi o dinheiro do passe em dois livros da Iris Murdoch. Escolhi-os pelos títulos e pelos tradutores. Sinto-me como aqueles tipos que sabem ganhar milhões na Bolsa.

Gravura

Dizem que a mula de Guo Lao conseguia viajar centenas de milhas por dia sem se cansar. Ao fim da jornada, o mestre a transformava em uma gravura de papel; dobrava-a e guardava-a em uma pequena caixa ou dentro do bolso. Para fazê-la retornar à forma anterior, bastava desdobrá-la e espargir sobre ela um pouco de água. A mula ressurgia pronta para cavalgar. Marcílio França Castro.

Quando, subitamente

O Duque Guilherme de Breysach, que vivia em inimizade com o seu meio‐irmão, o Conde Jacob, o Barba‐Ruiva, desde que se unira em segredo a uma Condessa, de nome Catarina de Heersbruck, da casa Alt‐Hüningen, na aparência abaixo da sua estirpe, regressava, estávamos nos finais do século catorze, quando a noite de S. Remígio começava a cair, de uma reunião mantida com o Imperador alemão em Worms, durante a qual havia conseguido desse Senhor, por falta de filhos legítimos, entretanto mortos, a legitimação de um filho natural, gerado com a sua esposa antes do casamento, o Conde Filipe de Hüningen. Mais feliz na antevisão do futuro do que alguma vez estivera no decurso inteiro do seu reinado, havia alcançado já o parque que ficava atrás do seu palácio: quando, subitamente, uma flecha irrompeu do negrume por entre os arbustos e lhe trespassou a carne, mesmo abaixo do esterno. (...)  O Duelo, de Heinrich von Kleist. Tradução de Maria Filomena Molder. Aqui e aqui .

Os espíritos estão à nossa volta

E se Robert Wiene tivesse de filmar O Gabinete do Dr. Caligari tendo como cenários aqueles espaços de exposição do IKEA, que funcionam como vitrines para os móveis da marca e que imitam as nossas minúsculas casas de bonecas?

Observações avulsas sobre o bonfim #30

 

Chesterton e a costeleta de porco

—  (...) Gosta de citações de grandes autores célebres?  — Adoro os autores célebres... —  Pois muito bem. Tenho aqui comigo, no meu próprio bolso, o último livro de Chesterton publicado em espanhol. Noutra altura explico-lhe quem é Chesterton. O livro chama-se As Quintessências . Oiça isto por um instante, que vale a pena: “A ciência “, escreve Chesterton , “a ciência pode analisar uma costeleta de porco e dizer qual a quantidade que ela contém de fósforo e qual a quantidade de proteínas, mas a ciência não pode analisar o desejo de um homem por uma costeleta de porco e dizer qual a quantidade de fome que ele contém, qual a quantidade de hábito, qual a quantidade de capricho nervoso, qual a quantidade de amor persistente às coisas belas. Quando um homem deseja uma costeleta de porco, o seu desejo continua a ser literalmente tão místico e etéreo como o seu desejo de céu.” Percebeu, menina? — Muito pouco, francamente. — É uma pena. O texto parece-me bastante claro.  Viagem de Autocarro,

Comércio tradicional

Na mercearia de produtos eslavos, Гастрономъ Славянский, que fica na Rua Dr. Ricardo Jorge, a primeira coisa que o cliente encontra são livros. À entrada, do lado esquerdo, há uma estante com um número considerável de clássicos russos. Seguem-se as frutas, legumes, queijos, enchidos, molhos, iogurtes e doces.

Observações avulsas sobre o bonfim #29

 Amor, mágoa e uma faca.

Pimenta

Sendo a quantidade de obras em curso [no reinado de D. Manuel] tão grande, a sua execução dependia de um controlo inflexível de todo o processo, dos materiais aos executantes. O rei envolve-se pessoalmente em todo este processo e, sabendo que precisa de pintores de qualidade, insuficientes em Portugal, manda Francisco Henriques, ele próprio um flamengo, à Flandres para recrutar mão-de-obra com o dinheiro resultante da venda dos 550 quilos de pimenta que leva na bagagem. É provável, defende Joaquim Caetano, [director do MNAA], que Frei Carlos e o Mestre da Lourinhã tenham vindo neste grupo de artistas recrutados a pimenta. Lucinda Canelas, no jornal Público de hoje, a propósito da exposição Vi o Reino Renovar. Arte no Tempo de D. Manuel , no MNAA.

O rapaz e o cão

Andava à procura de uma fotografia de Le Chien  com fundo brando, mas encontrei esta , tirada no Musée de l’Orangerie em 1969. Apesar de só poder ser usada em maquetes (o que é um blogue senão uma maquete?), apesar do selo de propriedade sobre as patas do cão, tenho de a publicar nem que seja por três minutos: não é sempre que encontramos alguém que compreende uma obra de arte. (Em silêncio.)

Um pauzinho na engrenagem

À semelhança de Bartleby, também as personagens de Walser preferem não fazer, querem ser um zero à esquerda, um zero muito redondo e encantador. E não só as personagens; no manicómio, Walser decide não escrever (pelo menos de forma oficial, apenas gatafunhos na clandestinidade). Todos querem pôr um pauzinho na engrenagem, mas o método de Walser é mais amável, gentil, doce, solar (esses adjectivos que descrevem gulosamente a sua escrita). Talvez porque é um homem e não uma personagem, Walser sabe melhor do que Bartleby não passar da cepa torta.  Alguns exemplos: em vez de comer como um pisco, Walser e a sua comitiva regalam-se com pratos bem servidos e uma caneca de cerveja ( ver as caminhadas com Carl Seelig ); em vez de ficarem parados, preferem passear ou, como explicou Agamben, “passear diz-se, no espanhol que falam os Sefardins pasearse — passear-se, portanto entender o passeio como um levar-se a passear, um deixar-se andar”; e em vez de se calarem, gostam de tagarelar sobre isto

Como são pesados

Hale aparece carregado de meia dúzia de pesados alfarrábios. HALE: Por amor de Deus, ajudem-me! PARRIS, encantado : Reverendo Hale, que prazer tornar a vê-lo (agarrando alguns livros) . Santo Deus, como são pesados! HALE, pousando os livros : Não admira: têm o peso da autoridade! PARRIS, um tanto amedrontado : Sim, senhor, o Reverendo vem bem preparado! HALE: É preciso estudar muito para podermos cortar as voltas ao Mafarrico, que julga? Arthur Miller, As bruxas de Salém . Tradução de Rui Guedes da Silva.

Dormir

Quando durmo fora de casa, não durmo. Estranho tudo: o quarto, a cama, o colchão, a almofada, a luz que entra pela janela. Às vezes, quando durmo em casa, também não durmo. Estranho a casa.