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Mensagens

Fábula bressoniana

Ontem, por volta das seis da tarde, um grupo de raparigas e rapazes franceses entrou no 502 (paragem Serralves). Eram mais de dez, falavam baixo, tinham a beleza diáfana dos modelos de Bresson. Parecia aquela cena de  Le Diable probablement . Um deles (esguio, calças e sapatilhas pretas, camisa esbranquiçada larga sem colarinho, gorro preto) podia ser Ivan Karamazov e trazer o diabo no bolso. 

Pára-arranca

Uma semana de trabalho presencial no escritório. Os meus colegas queixam-se do trânsito. Dizem que nunca viram tantos carros na rua. Demoram horas para percorrer três ou quatro quilómetros entre a casa e o escritório. São vegetarianos, veganos, activistas ambientais no instagram, praticam a reciclagem, fazem caminhadas organizadas no campo ao fim-de-semana, sofrem de eco-ansiedade. Quando vão a Berlim, Londres ou Marijampolė andam de metro, comboio e autocarro, e fazem selfies nas estações e paragens. Mas para os meus colegas não existe nem nunca existiu transporte público no Porto. Alguns talvez já tenham ouvido falar. Para a maioria, porém, transporte público é qualquer coisa do domínio da fábula. Tão distante como um lugar de estacionamento disponível em hora de ponta.

Modas & Bordados

Estava para publicar um texto (estúpido) sobre os filmes de Wes Anderson e os alinhamentos da loja Ermenegildo Zegna, mas censurei logo o ímpeto. Se não me ponho a pau, ainda acabo a escrever na revista Modas & Bordados.

Duas figuras na paisagem

No capítulo IX d’ O Belo Verão , Amelia conta a Ginia que arranjou trabalho. Como a pintora precisa da duas modelos, tenta convencê-la a posarem juntas. Parece uma cena banal — se calhar até não passa disso e estou a exagerar o envolvimento emocional de Pavese —, mas a minha atenção encrava na forma como Amelia descreve a tarefa. Primeiro, diz: duas mulheres abraçadas (linha 6). A seguir: duas mulheres que estão a lutar (linha 13). E acaba assim: Basta fazermos de conta que estamos a dançar (linhas 14 e 15).

Natureza morta

Ginia estava em pé, diante do cortinado, e em cima da mesa estava um copo sujo e cascas de laranja. — Quando volta o Guido? — perguntou. — Segunda-feira — disse Rodrigues. — Estás a ver? Isso é uma natureza morta — e apontava para o copo. Cesare Pavese, O Belo Verão. Tradução de José Lima. Livros do Brasil. Junho de 2021.

Condomínio fechado

[A propósito de Três Andares , de Nanni Moretti.] Engenheiros, arquitectos, académicos, advogados, juízes do Primeiro Mundo consumidos, em lume brando, pelo tédio. Um tédio branco, higiénico, educado. Um odor a anestésico a flutuar por todo o lado. As casas não são casas, os prédios não são prédios, mas armazéns em zonas nobres onde a solidão engendra monstros. Aquários de água tépida com peixinhos dourados que se mordem uns aos outros porque não há mais nada para fazer. Nanni Moretti aproxima-se de Michael Haneke. Ou talvez Heneke tenha estado este tempo todo à espera de Moretti.

Bibelôs

Afinal, o governo não estava cansado nem desgastado . Afinal, o governo estava cheio de tesão e com vontade de ir a eleições. Nos ressequidos estúdios televisivos, os comentadores explodem de euforia. Da miséria de factos passamos para o luxo de acontecimentos. Há petróleo a correr novamente nas redacções dos jornais. Os comentadores babam-se agora com a decadência da oposição, com a queda e putrefacção de uma certa direita, com a ascensão rápida de outra. Repete-se mil vezes que a democracia está em crise. O fim sem remédio do regime parece pertencer à ordem das evidências. E tudo, esquerda, direita, democracia, eleições, estado, povo, trabalho, direito, liberdade, a nossa vida, tudo, tudo é reduzido à dimensão de bibelôs de plástico com que os comentadores decoram a indigência do seu pensamento.

O cão da angústia

O plano-sequência que abre Fabian — Going to the Dogs vale mais do que mil artigos de politólogos. A câmara percorre uma estação de metro de Berlim na actualidade. É o olho de um passageiro ocasional. Pode ser qualquer pessoa, posso ser eu. Sou eu a caminhar para a saída. Subo as escadas da estação em direcção à superfície. Um degrau após outro. Quando chego à rua, estou em Berlim, sim, mas em plena República de Weimar. Os sinais da ascensão do nazismo estão por todo o lado. Fazem parte da paisagem. Parecem tão naturais como a pedra dos edifícios, o ruído dos automóveis, as nuvens no céu. Neste filme, Dominik Graf não nos convida a mergulhar na história, não quer que desçamos às profundezas de Berlim como arqueólogos em busca de vestígios dos fascismos; pelo contrário, ele empurra-nos para a superfície. É à superfície que tudo se passa, aqui e agora, em carne e osso, diante dos nossos olhos. Não há fronteira entre o passado e o presente. Só temos de apanhar o metro ou o autocarro, e c

Eram sete horas de uma noite muito quente nas colinas de Sinoe

Quando perguntavam a Jean Giono, escritor de surpreendentes dotes literários, qual tinha sido em si o primeiro sinal de homem da escrita, como lhe era possível mostrar um tão hábil convívio com a língua francesa saindo ele de poucas letras e de um passado onde tinham sido impostas à sua infância e à sua juventude tão grandes limitações culturais, Giono desfazia a expectativa de motivações complexas recorrendo apenas a um acidente onde cabiam Kipling e o seu The Jungle Book : Esta simples frase -  «Eram sete horas de uma noite muito quente nas colinas de Sinoe» - deu origem a tudo. Senti a certeza de também ser capaz de escrever aquilo e, à minha maneira, de o continuar. Aníbal Fernandes, na apresentação de O Homem que Falou , de Jean Giono.

Domingo

Dissolução do parlamento, avisos meteorológicos, dia das bruxas, miúdos disfarçados de monstros, bombeiros em alerta, luta no interior dos partidos, chuvas fortes e permanentes, ministros de saída, preços da energia, comentadores e politólogos, mil vampiros nas montras das lojas, aranhas e ratazanas de plástico, guarda-chuvas, dores nas costas, dores nas costas, dores nas costas.

A morte

A morte é uma ocorrência vulgar, talvez a mais vulgar que podemos conhecer. A sua natureza rasteira não se deixa apanhar por raciocínios intelectuais ou palavras engenhosas. O nevoeiro filmado por Carpenter está mais perto da sensação da morte do que o jogo de xadrez de Bergman.

A catástrofe

“… há muito a aprender na catástrofe" (p. 45). Uma vez Susan Sontag disse, diz Brodsky, "que a primeira reação diante da catástrofe é perguntar: Qual foi o erro? O que deve ser feito diferente ?". Mas Sontag ainda diz que há outra alternativa, outro comportamento possível: "deixar a tragédia atropelar você" ; "se você conseguir retornar depois disso, será uma pessoa diferente. O princípio da fênix, poderíamos dizer; eu frequentemente lembro dessas palavras de Sontag" (p. 45).  Kelvin Falcão Klein

Influenciadores do século XX

 

At fourteen I was a boarder in a school in the Appenzell.

This was the area where Robert Walser used to take his many walks when he was in the mental hospital in Herisau, not far from our college. He died in the snow. Photographs show his footprints and the position of his body in the snow. We didn’t know the writer. And nor did our literature teacher. Sometimes I think it might be nice to die like that, after a walk, to let yourself drop into a natural grave in the snows of the Appenzell, after almost thirty years of mental hospital, in Herisau. It really is a shame we didn’t know of Walser’s existence, we would have picked a flower for him. Even Kant, shortly before his death, was moved when a woman he didn’t know offered him a rose. You can’t help but take walks in the Appenzell. If you look at the small white-framed windows and the busy, fiery flowers on the sills, you get this sense of tropical stagnation, a thwarted luxuriance, you have the feeling that inside something serenely gloomy and a little sick is going on. It’s an Arcadia of s

Nível espiritual

Por que inventámos Deus, anjos, etc. ? Para ter com quem falar. 
(“De agora em diante não falarás mais com homens, mas com os anjos”, disse Jesus (?) a Santa Teresa.) Num certo grau de solidão ou intensidade, há cada vez menos pessoas com quem podemos conversar; acabamos até por constatar que já não temos semelhantes . Chegados a este extremo, voltamo-nos para os nossos dissemelhantes (?), para os anjos, para Deus. É, portanto, por falta de interlocutor (!) cá em baixo que procuramos um outro algures O sentido profundo da oração é este: a impossibilidade de falarmos com quem quer que seja aqui, não por vivermos num nível espiritual elevado, mas por um sentimento de abandono ...  Já no caso dos santos e místicos, não se trata de abandono, mas de estado limite, de isolamento pela impossibilidade de dialogar mais com o próximo.  Não haveria absoluto se o homem pudesse suportar um grau extremo de solidão. Não se trata da solidão do abandono; pelo contrário, pode haver, nesta extremida