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Mensagens

A Iris de Alcarràs é da mesma têmpera do Bogey do Rio Sagrado . Miúdos que são como o vento.

Sarajevo VI

Últimos momentos em Sarajevo. Apanhamos um táxi para a central de autocarros. Num semáforo, o taxista aponta para um edifício moderno e feioso com uma cruz no telhado. É uma igreja católica erigida depois da guerra e que permaneceu inacabada durante anos por falta de dinheiro. A obra só foi concluída, diz o taxista, graças à ajuda de um muçulmano rico da cidade. Faz uma pausa e acrescenta: «Isto é a Bósnia.» Não sei se o taxista inventou a história. E se inventou, não sei se o fez por nós ou por ele. É uma bela história. Agradeço que a tenha contado. Tal como se inventam histórias para justificar a guerra, também se criam outras para construir a paz.

Sarajevo V

A Casa dos Sindicatos fica numa das extremidades da Obala Kulina bana, a avenida que acompanha o rio Miljacka. O mobiliário e a decoração do café são patrocinados pela marca de whisky Johnnie Walker, e no telhado brilha de dia e de noite um gigantesco néon da McDonald’s.

Sarajevo IV

Observo, fascinado, as gralhas. Estão por todo o lado. Elegantes no ar, completamente desengonçadas no chão, como o albatroz de Baudelaire. As pessoas naturalmente parecem nem dar por elas. Sinto-me como aqueles turistas no Porto que fotografam cada gaivota que lhes passa pela frente.

Son coeur mis à nu

O monólogo de Véronika é talvez a parte mais referida e até venerada d’ A mãe e a puta . Compreende-se, tem a força dos desastres: uma explosão, uma chuva torrencial, esses fenómenos que atraem e metem medo.  Mas prefiro encarar este monólogo de um jeito menos isolado e mais dialéctico, como uma resposta a todas as coisas cruéis que Alexandre disse à personagem Véronika e à antiga amante Françoise Lebrun durante essa longa  sequência de treze minutos no Flore . Como um verdadeiro contracampo — o mais intenso que já se viu num filme pois dura o tempo que tem de durar e usa um vocabulário em tudo contrário ao de Alexandre. Mostrando as suas contradições, as próprias debilidades do seu pensamento (haverá maior prova de sinceridade?), Véronika leva tudo pela frente: as palavras e a pose do amante e até as ideias do seu tempo. Exactamente como uma queimada quando o mundo era ainda rodeado de deuses. E mesmo depois desta catarse, depois do vómito e do plano igual ao de La Chienne , e da repr

Fazer frente a todas as ofensas

A sequência 26 é uma das mais longas do filme, dura treze minutos. É também a mais dolorosa e a mais grave. […] No Flore , Alexandre conta a Véronika as circunstâncias da sua ruptura com Gilberte. Com despudor e arrogância, pela boca de Léaud, Eustache acerta contas com Françoise Lebrun, contando minuciosamente todos os acontecimentos que levaram à separação e os que daí resultaram. A personagem é Véronika, mas a atriz é Françoise Lebrun. Pela única vez no filme, os olhares estão directamente no eixo da objectiva para dar mais peso aos argumentos. Além disso, a atriz luta para esconder a emoção, as lágrimas caiem dos olhos. Mas resiste e fica calada; ao aceitar o filme, decidiu enfrentar todas as ofensas. Quando Alexandre diz: "As mulheres que estão com tipos decentes deixam-nos sempre por gajos menores", a equipa sabe que o marido de Françoise está a fazer figuração sentado num banco vizinho. O casal aceitou o acerto de contas e o “menor” veio espontaneamente naquele dia ofe

Uma brecha

— Um dia em maio de 68…, havia muita gente no Mahieu , e estavam todos a chorar. Todo um café a chorar, era muito belo. Tinha caído uma granada de gás lacrimogéneo... Se não fosse lá todas as manhãs, não teria visto nada disso. Mas assim, diante dos meus olhos, abriu-se uma brecha na realidade.

Le Train Bleu

— Gosto tanto deste sítio. Quando estou de mau humor, venho para aqui, creio que sou o melhor cliente. Só há pessoas de passagem. Parece um filme de Murnau. Nos filmes de Murnau há sempre uma passagem: da cidade ao campo, do dia à noite. Tudo isso existe aqui. À direita, os comboios, o campo; à esquerda, a cidade. Parece que não há um grama de terra, nada mais do que pedra, betão, viaturas.

Quem é quem

Jean-Pierre Léaud interpreta Alexandre, alter ego de Jean Eustache.  Bernadette Lafont faz de Marie que na verdade é Catherine Garnier, encarregada do guarda-roupa e maquilhadora do filme, companheira de Eustache.  Françoise Lebrun, antiga companheira de Eustache, interpreta Véronika que na vida real é Marinka Matuszewski, amante de Eustache (ela aparece por um instante no Flore  a pedir lume a Alexandre).  Isabelle Weingarten interpreta Gilberte, na realidade Françoise Lebrun, aquela que deixou Eustache e não quer voltar para ele apesar das suas súplicas.  Vê-se Jean Eustache no supermercado a empurrar um carrinho de compras e de braço dado com Gilberte. Representa o marido daquela que o deixou. Aparece, portanto, no papel do seu rival. Luc Béraud, Au travail avec Eustache (Making of), Lyon, Arles, Institut Lumière/Actes Sud, 2017, p. 34

Falar com as palavras dos outros, deve ser isso a liberdade.

— E se fossemos tomar o pequeno-almoço ao Mahieu? É um café no boulevard Saint-Michel que abre às 5h25. A essa hora encontram-se por lá pessoas formidáveis, pessoas que falam como livros, como dicionários. Ao pronunciar uma palavra, é a própria definição dessa palavra que nos oferecem. Nada a ver com o jargão, a linguagem cifrada do Nouvel Observateur ou do Monde . Lembro-me de um árabe que dizia, pronunciando cada sílaba: “Consta que as mulheres negras fazem amor de forma extraordinária. Quando o homem introduz o seu órgão sexual na vagina da mulher, parece que se sente um calor de fornalha. Foi um administrador das colónias que me contou isto.” Gostava de poder falar assim. Falar com as palavras dos outros, deve ser isso a liberdade.

En vert et contre tout

Apesar de Jean-Pierre Léaud dizer que passa as tardes no Flore a ler ,  só o vemos com “À procura do tempo perdido”  — e o filme  tem três horas e quarenta minutos! O livro (com dedicatória) que ele tenta oferecer a Gilberte é “Os desastres de Sofia” (curiosa, mas não inédita, a ligação de Proust à Condessa de Ségur).  Em casa de Marie, quase escondido, o Cahier Michaux , das Editions de L’Herne .  Em casa do amigo, um livro sobre as SS.  Há mais algumas citações esparsas (Bernanos, Borges, Céline? et al .) O resto é a perfeição e diversidade literária do texto de Eustache: muitos aforismos, críticas de todos os tipos, pequenas narrações, confissões, diálogos, monólogos,  anedotas , etc. Contra todos.

Locais de filmagem em Paris:

Jardim de Luxemburgo, fora e dentro do gradeamento. Em frente ao liceu Montaigne.  Interior e esplanada do café Les Deux Magots . Interior do café de Flore . O café Le Saint-Claude . Interior de La Rhumerie . Le Train bleu , restaurante na estação de Lyon, O apartamento do amigo, rue du Commandant-Mouchotte . O apartamento de Marie (de Catherine Garnier), rue de Vaugirard . A boutique de Marie (de Catherine Garnier), rue Vavin. Um cais do Sena, à noite. O quarto de enfermeira nas águas-furtadas do hospital de Laennec, rue de Sèvres .  Algumas ruas do Quartier Latin .   Em Paris, Antoine de Baecque.

Sarajevo III

Do quarto do hotel, observo as pessoas na rua. Ninguém caminha com pressa. E apesar da fila de carros em hora de ponta, só de vez em quando se ouve o troar nervoso de uma buzina. Ninguém está em guerra. A cidade não está cercada e em estado de sítio. Para quê correr?

Sarajevo II

Em muitos prédios da cidade, há uma placa com o aviso «Perigo de derrocada da fachada». Mais uma coisa que não é imediatamente óbvia para um estrangeiro que não domine a língua. Só me apercebi dessa espécie de padrão após várias caminhadas. Decorridos 30 anos sobre o cerco, porque é que ainda não se renovaram as fachadas e se apagaram os traços das balas e dos morteiros? Imagino a resposta: porque na Bósnia o dinheiro é pouco e o que existe é para usar nas coisas essenciais à vida.

Sarajevo

O hotel fica numa rua relativamente estreita, que conduz directamente à avenida principal da cidade, a avenida do Marechal Tito. De um lado e do outro, prédios de quatro ou cinco andares, construídos entre os anos 60 e 70. Edifícios banais de habitação, como quaisquer outros de qualquer outra cidade da Europa Central. Fachadas manchadas pelo fumo dos carros, varandas com mesas e cadeiras de praia, janelas com venezianas. Mas se olharmos com mais atenção, as fachadas destes prédios são tudo menos banais. Há marcas de bala e de estilhaços de morteiro um pouco por todo o lado. No edifício em frente ao quarto do hotel conto mais de vinte destas marcas. Não se vêem de imediato, é preciso afastar um pouco a cortina.

O tempo presente e o tempo passado estão ambos talvez presentes no tempo futuro

Num certo sentido, os mortos são criaturas dóceis. Posso afirmar — com leviandade mas sem oposição — que Cioran escreveu estas notas depois de ter lido a crónica de hoje do Guerreiro:  «Tenho uma percepção tão directa dos desastres que o futuro nos reserva, que me pergunto onde ainda encontro força para enfrentar o presente. (...) Se pudéssemos ver o nosso futuro, enlouqueceríamos de imediato.  (...) Por mais desiludidos que sejamos, um dia havemos de parecer necessariamente ingénuos, pois o futuro excederá em muito as nossas visões mais sombrias. (...) O meu tempo não é o tempo da acção: agir é viver no presente e no futuro imediato. Mas eu só vivo no passado longínquo e num futuro ainda mais longínquo.  Diz-se (diz a ciência) que a Grã-Bretanha ficará completamente submersa e coberta de água daqui a quinhentos mil anos. Se fosse inglês, bastaria esse facto por si só para me paralisar e para justificar a minha recusa à acção.»

Fado da tristeza

Assim como já pensei traduzir mauvais demiurge por um adjectivo diferente a cada investida, aumentando com este subterfúgio o alcance negativo do demiurgo, também arranjei um truque semelhante para contornar a frustração de não encontrar uma palavra portuguesa que faça justiça ao  cafard francês. Basta juntar à nossa tristeza rasteira uma qualificação que a projecte mais para baixo — como se estivesse continuamente a cair num poço. A lista é infindável: negra, abismal, medonha, funesta, canalha, desgraçada, sinistra, fatal, cruel, lutuosa, sombria, soturna, malfadada, lúgubre, desditosa, inconstante, etc.  As melhores duplas são as que podemos imaginar na letra de um fado antigo. Demiurgo ( 1 , 2 e 3 ) | Cafard ( 1 , 2 e 3 )

Influenciadores do século XX