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Duvido de tudo o que faço. É um defeito que já nem me interessa ultrapassar, digamos que aprendi a tolerá-lo. Sem competências académicas para traduzir Cioran, sei contudo que chego lá quando, a meio das traduções dos Cadernos , começo a chorar ou a rir-me.

Selfie VII

Eu a corrigir as traduções de Cioran (uma e outra vez).

Combate

Traduzir Cioran não dá créditos em filosofia mas, se nos esforçarmos um bocado, equivale a um curso de língua francesa digno da Sorbonne (da Cantina à Capela).  O meu combate com a língua francesa é um dos mais duros que se pode imaginar. Vitória e derrota alternam — mas não cedo. É a única área das minhas actividades onde mostro algum encarniçamento. Em tudo o resto, faço questão de vacilar.  Em luta com a língua francesa: uma agonia no verdadeiro sentido da palavra, um combate onde fico sempre por baixo.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Só sou feliz quando encontro uma «fórmula».

Arranjei mais uma possibilidade para traduzir cafard : tristeza constante.  Agrada-me por si mesma, pelo seu ar de fórmula clínica, e também porque estabelece diálogo (ainda que do contra) com a dúvida, medo e desespero de Espinosa.  Agora vou ter de rever de novo o Caderno da Talamanca . E ando nisto.

cette vie dont j’avais soif

Cioran escreve muitas vezes sobre Teresa de Ávila nos seus Cadernos . Começo a compreender o encanto; aliás, é melhor dizer feitiço .  Ela é uma mulher devota a Deus, mas com um misticismo fogoso — a imagem corporal que se insinua na nossa cabeça para dizer aquelas coisas intensas é de uma actriz de Hollywood dos anos 50. Je me voyais mourir du désir de voir Dieu et je ne savais où je devais chercher cette vie dont j’avais soif, si ce n’est dans la mort même . Nota: será que Bénard da Costa escreveu sobre isto? É um tema tão perversamente bénardiano (ou será buñueliano?).

Fado da tristeza

Assim como já pensei traduzir mauvais demiurge por um adjectivo diferente a cada investida, aumentando com este subterfúgio o alcance negativo do demiurgo, também arranjei um truque semelhante para contornar a frustração de não encontrar uma palavra portuguesa que faça justiça ao  cafard francês. Basta juntar à nossa tristeza rasteira uma qualificação que a projecte mais para baixo — como se estivesse continuamente a cair num poço. A lista é infindável: negra, abismal, medonha, funesta, canalha, desgraçada, sinistra, fatal, cruel, lutuosa, sombria, soturna, malfadada, lúgubre, desditosa, inconstante, etc.  As melhores duplas são as que podemos imaginar na letra de um fado antigo. Demiurgo ( 1 , 2 e 3 ) | Cafard ( 1 , 2 e 3 )

Traços de cançonetista macabro

Das mais de mil páginas dos Cadernos , pode-se fazer uma série de antologias: sobre filosofia, música, doenças, geografia, clima, etc. — o que se quiser. A mais polémica seria, sem dúvida, sobre escritores e literatura (mais sobre escritores do que literatura, suspeito). Cioran nem sempre é justo nas diatribes, mas tem uma linguagem viva e pulverizadora e isso é tão raro de encontrar que merece muitos aplausos. Exemplo Gottfried Benn (três entradas): Li os primeiros poemas de Gottfried Benn: Morgue — em certos momentos é exatamente assim que vejo a vida . Mas que prazer saber que outros experimentaram e imaginaram os mesmos horrores que nós! Benn falava como um médico; a sua visão, por terrível que seja, é normal e, até certo ponto, sã. Ah, imaginar as imundícies da carne sem necessidade exterior, por simples impulso mórbido!  Gottfried Benn — um poeta bastante grande com traços de cançonetista macabro.   Li as cartas de Gottfried Benn a mulheres com o mais vivo interesse. Que mudanç

Coleccionismo dissoluto

Aplico os pensamentos e as palavras de Cioran a quase tudo; só me falta começar a debitar diatribes cioranescas nas compras no mercado, mas é uma questão de tempo. Neste gesto, porém, que fique claro, assemelho-me mais àquelas velhas que recolhem os gatos que encontram no caminho ou amontoam tralhas em casa do que a uma estudiosa assertiva.

Atalhos ou desvios?

“Sonho com um sistema filosófico formulado com atalhos à la Emily Dickinson.” Nesta nota de Cioran, hesitei muito entre atalhos e desvios. Os especialistas de Emily Dickinson usam, muitas vezes e em múltiplos aspectos, “desvio”. É uma palavra eficaz, não nego; é evidente que corresponde bem a deviation (quase o efeito espelho, sonho de todos os tradutores); e talvez se aplique na perfeição a alguém que não segue o caminho habitual. Nos seus Cadernos , em relação a Emily Dickinson mas principalmente a si próprio, Cioran usa a palavra francesa raccourci . É ampla e afiada: serve para atalho e também para resumo, coisa abreviada ou elíptica — parece que tem no seu interior uma acção de corte abrupto (cesura?). Apesar de em português “atalho” não segurar o sentido breve e preciso de “súmula”, consegue ainda assim dar uma boa imagem do método de trabalho da poeta americana. Atalho é uma vereda, um caminho secundário que permite encurtar a distância e chegar mais rapidamente,  enquanto de

Persona non grata

Quando estou a trabalhar nas traduções de Cioran, faço muitas pesquisas para perceber melhor o que ele quer dizer e para tentar encontrar formulações vulgares que estejam de acordo com os seus pensamentos. Isso implica muito mais do que consultar dicionários. Muitas vezes vou dar a sites religiosos ou místicos. Gostava de saber como é que a Google interpreta estas movimentações, quer dizer, o que é que acham que me podem vender.

Notas de tradução

Num dos livros mais bem traduzidos que conheço, refiro-me a  As Variedades da Experiência Religiosa de [William] James, encontrei apenas uma coisa duvidosa: “os abismos do cepticismo” ... Devia ser da dúvida , pois em francês o cepticismo contém uma nuance de diletantismo e de ligeireza que exclui qualquer associação com “abismo”. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

A tua mais completa tradução

Ao mesmo tempo que tento arranjar as palavras mais convenientes para traduzir as confissões e pensamentos irrequietos dos Cadernos , alguma coisa acontece — não é bem uma influência, é mais da ordem do parentesco, creio.  Dou por mim a querer oferecer coisas a Cioran; até um cão já me passou pela cabeça.  Dou por mim a vê-lo como um mestre de artes performativas  ( que, ao ser proferido, corresponde à acção a que se refere ). Começa por fazer de filósofo, de escritor, de místico, de estrangeiro, etc., mas o grande golpe é quando interpreta o ser humano — aí, Cioran supera-se.  As lágrimas, de novo. Uma palavra irradiante.

Juntos no matadouro

No dia 1 de dezembro de 1971, Cioran anota nos seus Cadernos:  Exposição Francis Bacon . Sinistra q.b. e esplêndida.   Não sei desde quando ele conhecia o trabalho do pintor, mas a verdade é que dez anos antes já dominava a sua técnica visual:  Entrar no sono como num matadouro. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 Francis Bacon, fotografado por John Deakin para a Vogue, em 1952.

Insultos

[Cioran tem jeito para escrever insultos. Não recorre nunca a lugares comuns nem a palavras gastas. Pelo contrário, preocupa-se em encontrar os adjectivos mais intensos e adequados à ofensa. Trata-se de um trabalho moroso e frágil — lamentavelmente nem sempre apreciado. Nos seus exercícios insolentes (são tantos, muitos deles contra si próprio), o filósofo eleva o francês ao nível de uma língua profunda e musical: os insultos quase parecem elogios. Talvez isso aconteça, também, porque estas palavras de afronta são arrancadas das entranhas — Cioran é um tipo antiquado que ainda escreve com os órgãos. Em termos literários, são mais poesia do que certos poemas coxos que por aí andam. Merecem ser lidos em voz alta, num palco? — sim, onde podem revelar todo o seu dramatismo. E até algumas lágrimas.] Encontrei X por acaso — sempre essa mistura desconcertante de crápula e louco, mas no fundo inapreensível: um homem que nem sequer tem a noção de “veracidade”, fisiologicamente “inexacto” e amo

Material circulante

Acho que arranjei uma solução para traduzir Mauvais Demiurge . Na verdade não é bem uma solução no sentido de desfecho, mas uma equação dinâmica: traduzir sempre de modo diferente. Transformar o adjectivo mauvais  numa palavra camaleão; a cada ocorrência (e são tantas), convertê-lo em variadas palavras que não se conseguem agarrar — tão esquivas como o  " trabalhador para o povo " .

Estar com a mosca

Fui vaguear para as ruas dos duques. Ao passar à porta do café Asa de Mosca, lembrei-me da pretensão recente de traduzir  avoir le cafard por estar com a mosca; não deu em nada porque a expressão já está tomada. É pena. Mesmo assim, se tivesse de me encontrar com Cioran aqui no Porto, era no Asa de Mosca. Depois podíamos ir ao Prado do Repouso — ele era capaz de apreciar o nome e ainda alguns arroubos arquitectónicos que por lá se vêem. Quando saí do cemitério comprei vinho (os tais de altitude ) e flores.

Conjunção aditiva

Gosto do campo — e vivo numa metrópole; detesto estilo e vigio as minhas frases; sou um céptico incorrigível — e leio principalmente os místicos ... e podia continuar assim indefinidamente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 Nota: O melhor deste aforismo é a conjunção usada para ligar as duas orações. Seria de esperar uma conjunção adversativa, mas Cioran escolhe uma conjunção aditiva — como Godard (não me lembro do link).