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Agora tenho a impressão de que se passa tudo ao contrário

Noutro dia voltei a ver, passados muitos anos, La Vallée fantôme , de Alain Tanner. Para mim, trata-se de um cineasta excepcional, pois é dos poucos que se manteve obstinadamente fiel ao legado de André Bazín, à valorização do plano como unidade espácio-temporal com valor próprio, como um «pedaço de vida», um momento que será inserido no decorrer do filme, mas que existe por si mesmo e não deve ser sacrificado a essa integração. Eu diria que se trata de uma noção de «plano» oposta à de Bresson, que afirmava que um plano não tem de significar nada por si mesmo, porque só assim estará em condições de encaixar no conjunto.  O protagonista de La Vallée fantôme (Jean-Louis Trintignant) é um cineasta que se desfez de um argumento em que estava a trabalhar há quatro meses. Quando a mulher aborda o assunto, ele responde que não era mau, era «uma história com princípio, meio ( milieu ) e fim», mas estava morto, era uma das milhares de histórias que há por aí. «Para que servem?». Ela respon...

Imobilidade em movimento

O sentimento de que corre tudo mal existiu em todas as épocas, e com razão, já que o maior prazer dos homens é inventar maneiras de tornar a vida uns dos outros miserável. A afirmação dos conservadores de que a sociedade actual é má, mas a seguinte será ainda pior, é irritante e até mesmo insuportável. E, no entanto, a história confirma este diagnóstico à risca. Que fazer? Tornar-se budista ou aceitar o Progresso de olhos fechados? Esta superstição vem do tempo do Marquês de Condorcet, e a sua influência tem sido enorme. A ideia de Progresso é uma forma atenuada de utopismo, um delírio aparentemente razoável sem o qual as ideologias do século passado, assim como as do nosso, teriam sido impossíveis. A originalidade do ponto de viragem histórico que estamos a testemunhar reside no facto de este delírio estar a ser contestado, submetido a uma lucidez fatal — um despertar ao mesmo tempo libertador e terrível. As velhas categorias de «direita» e de «esquerda» parecem ultrapassadas. Eviden...

Admiradores

Joyce e Musil moravam muito perto um do outro em Zurique durante a última guerra; no entanto, não fizeram nenhuma tentativa de se conhecerem, de se encontrarem. Os criadores não comunicam entre si. Precisam de admiradores, não de semelhantes . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Livros fortificantes

O que não devo aos livros destrutivos, do contra, «ácidos»? Sem eles, já não estaria vivo. É por reacção ao seu veneno, por resistência à sua força nociva, que me fortaleci e me apeguei ao ser. Livros fortificantes , pois despertaram em mim tudo o que os devia negar. Li quase tudo o que é preciso para soçobrar, mas foi precisamente por isso que consegui evitar o naufrágio. Quanto mais «tóxico» é um livro, mais age em mim como um tónico. Só me afirmo pelo que me exclui. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972
O nacionalismo é um pecado do espírito. Pertencer a um povo não tem um significado profundo (excepto, talvez, para os Judeus). A única comunidade verdadeira é aquela que se funda na «família espiritual», nem nacional nem ideológica. Só me sinto solidário com quem me compreende e que eu compreendo, com quem acredita em certos valores inacessíveis às multidões. Tudo o resto é mentira. Um povo é uma realidade, sem dúvida; uma realidade histórica e não essencial. Quando penso na efervescência da minha juventude por causa da minha tribo! Que loucura, meu Deus! Temos de nos libertar das nossas origens, ou pelo menos esquecê-las. Tenho tendência a voltar a elas, sem dúvida por masoquismo, por gosto da servidão, das «grilhetas», da humilhação. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

China my China

21 de Junho  Ontem disse à Doreen que o governo devia pôr à disposição da população uma sala ou um edifício onde as pessoas se pudessem encontrar, conversar, fazer discursos, desabafar. Ela respondeu-me que as mulheres na China antiga, quando estavam com raiva ou tinham alguma aflição, subiam a pequenos estrados, montados especialmente para elas na rua, e ali davam rédea solta à sua fúria ou à sua tristeza. Essa «prática» parece-me muito mais eficaz do que o método psicanalítico ou o confessionário. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Ir ao mercado

Ouvido no mercado. Duas mulheres velhas e gordas prestes a terminar a conversa. Uma diz à outra: «Para se viver tranquilo, não devemos sair do rame-rame da vida.» Uma manhã destas, fui ao mercado (como todos os dias). Depois de dar três voltas, saí incapaz de me decidir por o que quer que fosse. Nada me tentava, não tinha vontade de nada. Em tudo, a escolha tem sido a minha perdição ao longo da vida. Noutro dia, no mercado, olhei por um instante para uma cabeça de boi cuja pele tinha sido arrancada. Os olhos, ou o que deles restava, deram-me um calafrio terrível. No mercado, uma mulher horrível, com cabeça de águia, começou a gritar comigo porque eu tinha acabado de passar entre ela e a banca. «Você não é educado. Um cavalheiro não deve passar à frente de uma mulher, etc.» Ela insiste. Fraqueza incrível da minha parte, tento justificar-me e enervo-me tanto como a mulherzinha. Nisso, como sempre, sensação de mal-estar físico. Decididamente, só morto alcançarei a indiferença. ...
Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Como todos os grandes acontecimentos cá em baixo, o «fim do mundo» chegará com um «primário», com um louco... medíocre. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

& outras manhas

Foi uma luta para me obrigar a traduzir decentemente este aforismo (V ariations Goldberg . / … Après ça, il faut tirer l’échelle). Na verdade, gosto mais da versão censurada ( Variações de Goldberg . / … Depois disto, deitar fora a escada). Tenho uma predilecção por escadas.

Campanha eleitoral

É incrível a que ponto o espírito é tão pouco capaz de prever, de admitir, de assimilar as catástrofes. À minha volta só vejo pessoas que não querem acreditar nas catástrofes. Isso vem de uma reacção de defesa completamente natural, mas também de uma falta de cultura histórica. Ora o que é a História senão a disciplina do pior? Quem a cultiva, habitua-se e até lhe ganha o gosto...  Eles não ousariam (foi o que os checos disseram a si mesmos recentemente... até que viram). Os romanos também não acreditavam que Alarico ousaria. Um homem político que rejeita a ideia de catástrofe é um ingénuo e prepara a ruína do seu país. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Best-seller

Graças ao Daniel e à Diana, o Caderno de Talamanca é o livro mais bonito de Cioran que já vi. Entretanto comecei a fazer pequenas emendas à tradução, o que sustenta o meu carácter duvidoso. Não há contradição entre os axiomas.
A imagem desaparece. O NEGRO do fim começa (dezasseis segundos de negro).  Voz off de MD  Aguarda-se o acidente que povoará a floresta.  É o ruído de uma passagem.  Não se sabe de quem, de quê.  [ Silêncio .]  E depois, pára.  O tema de Diabelli sobrepõe-se à música, estridente, e envolve o desenrolar do GENÉRICO .   O Camião,  de   Marguerite Duras.

O sistema das canções

A música é um dos poderes máximos de Ford, talvez a chave fundamental. É possível que o seu desejo principal tenha sido converter o cinema em música, fazer filmes que se podem justificar pelo desenvolvimento musical, sem necessidade de mais nada. Creio que isto é verdade, pelo menos durante os prodigiosos anos da Argosy (incluindo Stagecoach ). Depois, talvez se tenha interessado ou viu-se obrigado a interessar-se por outras coisas.  Nesse sentido,  Fort Apache  é provavelmente a sua obra maior e bastaria este breve 1º acto para o demonstrar. Há ritmo até no bater de botas dos sargentos quando se põem em sentido perante O’Rourke na noite da festa. A música em Fort Apache também é o silêncio; o silêncio insólito e ominoso da carga, «formada a quatro», dos soldados do regimento quando o corneteiro é o primeiro a cair. Caso único entre as numerosas cargas de cavaleiros na obra de Ford, que são sempre acompanhadas pelo característico toque de clarim. No filme anterior, The F...
Nostalgia e ansiedade — é a isto que a minha «alma» se resume. Dois estados aos quais correspondem dois abismos: o passado e o futuro. Entre os dois, apenas o ar suficiente para poder respirar, apenas o espaço suficiente para me aguentar de pé Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Cheias de graça

Nos seus filmes, Ford não nos fala do oeste real, faz um comentário em segundo grau do mito popular do oeste. Os seus filmes são um mito ao quadrado. Não se trata de converter em mito o Oeste real, mas, partindo de um mito popular, conferir-lhe dignidade estética, por assim dizer; refiná-lo, poli-lo, elevá-lo ao mais alto grau, destilá-lo, o que se quiser; pôr esse mito de andar por casa num pedestal, conseguir  disfrutar dele ao máximo. Talvez a sua atitude não seja muito diferente da dos grandes compositores quando fazem obras a partir do folklore. Ainda para mais tendo em conta que, para Ford, o principal é a música. Para ele, um mito é sobretudo musicalidade. E também arte plástica e poesia, como já assinalamos em relação à «trilogia». Claro que Ford não é um homem da cultura, como esses grandes compositores, mas o que acontece é que quando querem fazer alta cultura com Buffalo Bill, sai um filme de Altman.  Ford é um apaixonado da cultura popular, como têm de ser todos os...
Há salas de cinemas de subúrbio vazias como hangares e belas como cais de sonhos. São as que prefiro. Os grandes estabelecimentos das avenidas, com as suas poltronas de veludo vermelho e arquitetura de ópera cómica, onde a talha dourada se derrama sobre as cariátides melosas, são feios e antipáticos. Apesar da obscuridade dissimular esses horrores teatrais, os filmes mais belos perdem aí a selvajaria. Para que serve, então, o luxo desses salões, que só valem pelas trevas?  Pelo contrário, as salas pobres, essas cuja pintura descasca um pouco e dissimulam a lepra sob os belos cartazes de filmes, possuem uma verdadeira atmosfera de emoção e aventuras.  Lembro-me daquela sala em Levallois, já desaparecida, onde vi O Clube dos Valetes de Copas e Fantomas . Era tão grande e tão vazia que os gritos do público ecoavam como num vale. E lá ao fundo, uma orquestra esforçava-se em ruídos discordantes, como a orquestra de um navio a afundar-se, cujos músicos, por uma tradição que nunca...