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A mostrar mensagens de outubro, 2023

Sardoniscas

Tirei uma semana de férias para tratar de assuntos importantes. Primeiro assunto importante: ler. De manhã, tento avançar umas páginas no segundo volume do diário de Gombrowicz , mas não me sai da cabeça a imagem das sardoniscas a atravessarem dois planos de A Morte de Empédocles , que vimos no domingo em Serralves. Na folha de sala, Jonathan Rosenbaum refere a «presença de um lagarto que atravessa o espaço na cena em que Empédocles liberta os escravos». Mas estou certo de que há pelo menos mais uma sardonisca num outro plano. Um mero acaso? Claro que não. O filme está vivo do primeiro ao último fotograma. Acabou-se. Ponto final. Posso voltar ao Gombrowicz.

Wenn dan der Erde Grün von neuem Euch erglänzt

É magnífico como Hölderlin transforma o alemão numa língua musical e leve (Straub talvez dissesse «arejada»). Agora os poetas não ligam muito a essa qualidade, mas ainda é uma das grandezas da poesia.  Pessanha faz isso com o português. E em Para Comigo ( reunião da sua poesia tal como a pretende preservar ), Joaquim Manuel Magalhães tem poemas que são verdadeiras ruínas de ruínas (é só pó e pedras), mas outros surgem quase como cantilenas e são belos e têm essa alegria sem afectação que só se encontra na natureza.

Segunda-feira

Jogo de futebol no Estádio River Plate. Com trinta mil espectadores. O sol aquece. De repente, sobre os camarotes, onde se fazia ouvir a algazarra da espera impaciente por uma luta renhida aparece um balão... Um balão? Todos podem ver que não é um balão, mas um preservativo grandemente insuflado pelo hálito indecente de alguém. O balão-preservativo, auxiliado pelas correntes de ar que ascendem do público acalorado, sobrevoa as cabeças e, quando cai, é levemente tocado pelas mãos dos brincalhões... e uma multidão de milhares de pessoas fixava o olhar neste escândalo flutuante, tão horrivelmente visível, tão flagrante! Silêncio. Ninguém se atreve a falar. Êxtase. Foi então que um padre de familia , indignado, o esfaqueou com um canivete. E ele rebentou. Assobios! Uivos! Uma raiva inacreditável explodiu de todos os lados — de perto e de longe —, e o aterrorizado «pai de família» esgueirou-se o mais depressa possível pela saída mais próxima, Quem mo contou foi Betelú Mariano, de alcunha Fl

O teatro natural de Oklahoma

Este hipódromo é ao mesmo tempo um teatro e isto constitui um enigma. Mas o lugar enigmático e a figura clara e transparente de Karl Rossman encontram-se estreitamente ligados. Transparente, puro, talvez frouxo de carácter, é-o com efeito Karl Rossman, e é-o no sentido em que Franz Rosenzweig, no seu livro Stern der Erlosung , diz que na China o homem interior se acha «privado de carácter, o conceito de sábio, tal como desde Confúcio tem sido classicamente encarnado, apaga todas as possíveis particularidades de carácter. O que distingue o homem chinês é algo diferente do carácter: uma pureza de sentimentos elementar». Por mais que isso possa explicar-se teoricamente — a pureza de sentimentos talvez seja um equilíbrio excepcionalmente refinado do comportamento mímico —, a verdade é que o teatro natural de Oklahoma nos encaminha para o teatro chinês, que é um teatro de mímica. Uma das funções mais importantes deste teatro natural consiste em transformar o acontecer em gesto. É possível

— Alors, un petit supplement?

A exposição dedicada ao trabalho de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub parece uma actividade cultural de centro comercial. Puseram umas folhas verdes nos projectores de luz e todo o espaço ficou verde como uma alface. Não é assim que a terra deve brilhar — isto deixa ficar mal até o louco do Hölderlin. Há uns ecrãs espalhados pelas paredes verdes onde se podem ver excertos de alguns filmes da retrospectiva (nem sempre com legendas em português que, diga-se, não são grande coisa). E mais nada, nenhuma ligação aos escritores que eles leram e aos textos que filmaram. Nenhuma ligação aos cineastas e filmes que os marcaram e com os quais se relacionam. Nenhuma ligação às pessoas que filmavam com eles.  Nem encontros, nem diálogos, só aquela cor verde que alastra. Esta exposição podia chamar-se — Alors, un petit supplement ?

O Porto já não são tripas

Há uns seis ou sete anos, quando o vendaval do turismo e da gentrificação se abateu definitivamente sobre o Porto, surgiram um pouco por toda a parte, em grafítis e autocolantes, os slogans «O Porto já não são tripas», «Make Porto Podre again» ou «Porto Morto». Lembrei-me disto ontem, ao ver Vanitas , de Paulo Rocha, no Batalha. O filme é de 2004. Poucas vezes alguém mergulhou tão fundo na carne da cidade, na nossa carne, até às tripas. O Porto barroco, da morte e da terra molhada, dos fogos de Junho, do granito que nesse tempo transformava o dia em noite, do rio escuro, meio água meio lama. Esse Porto podre pertence já a outro mundo. Os próprios slogans perderam a força de um manifesto político e soam agora como um lamento, um canto fúnebre. Não apenas pela cidade soterrada sob os plásticos coloridos do turismo, mas por um Porto que já só existe na memória, no pó dos livros ou em certos filmes, como Vanitas .
Tenho óptimas discussões no fim dos almoços de fim-de-semana, quer dizer parecem óptimas como os sonhos coxos parecem óptimos enquanto estamos a dormir. Ontem, talvez por causa do arroz de cogumelos e do alvarinho (do Pingo Doce, pois sou mais operária do que presidente da câmara), acabei por confessar que me entristece ver um dos meus filmes preferidos de Huillet e Straub apresentado às três pancadas e que mais valia não convidar ninguém, dizer apenas: «Este filme é belíssimo e palpitante, vejam-no com atenção, mas sem preocupações analíticas, como se não soubessem o que é o cinema. E depois, se precisarem (vão precisar, claro, todos nós precisamos), vejam-no outra vez e leiam o Pavese e olhem à vossa volta e procurem os deuses as vinhas as fontes e os homens. O nosso agradecimento a Huillet e Straub não tem fim. Boa sessão.» Em italiano, soava melhor.

Destruir os clichés

Straub: Penso que devemos fazer filmes sem nenhuma significação, pois de contrário só se faz porcarias (...). É preciso que um filme destrua a cada minuto, a cada segundo, aquilo que dizia no minuto precedente, porque estamos a sufocar sob os clichés e é preciso ajudar as pessoas a destruí-los. Neste sentido, o último plano [de Othon ] não significa nada, é o que espero.  Nota: A resposta de Straub foi retirada de uma montagem de entrevistas organizada por Antonio Rodrigues para o catálogo da Cinemateca de 1998. A versão espanhola pode ser lida aqui .  Esta questão do significado dos planos, ainda para mais dos últimos planos, é recorrente e é, também ela, sem sentido. O que interessa não é o que significa (se for importante, não significa nada), mas de que modo essas imagens nos afectam, que sensações e pensamentos provocam, para onde nos desviam. É a tal «saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação» de que falava Manoel de Oliveira e que Godard sistem

«Não tenho palavras»

Desde o dia 7 de Outubro, há um estribilho vindo de longe que atravessou trevas e sofrimentos para desaguar mais uma vez no discurso de muitos colunistas regulares ou esporádicos da imprensa: “Não tenho palavras”. Seríamos levados a pensar que se trata da confissão derradeira de um naufrágio linguístico do pensamento, ou do desespero que antecede o sucumbir, como acontece na ópera de Schönberg Moses und Aron, quando Moisés pronuncia a sua última réplica, que fez correr rios de tinta: “O Wort, du Wort, das mir fehlt!” (“Oh palavra, tu palavra, que me faltas”). Mas não, até agora não vi ninguém sucumbir depois de gritar publicamente o seu desespero linguístico; pelo contrário, essa afirmação antecede ou culmina quase sempre uma animada tagarelice. António Guerreiro, jornal  Público , 20 de Outubro de 2023.

A nossa fogueira ninguém a vê

A apresentação Da Nuvem à Resistência , pelo Álvaro Domingues, foi desastrosa: apanhado desprevenido (enrascado?) e sem saber o que fazer, teceu um breve e desinteressante comentário geográfico sobre as paisagens que vemos no filme. Uma situação lamentável — constrangedora para ele e para nós (ao nível do «eu é mais bolos» do Herman). Esta mania de tentar aproximar os filmes de Huillet e Straub a uma disciplina tem tudo para dar para o torto, aliás, numa entrevista, é o próprio Jean-Marie Straub que diz que a conjunção «e/e» é sempre uma estupidez: cinema e história, cinema e literatura, cinema e música, e assim por diante até ao fim do mundo, o fracasso intelectual... (depois acrescento o link)  Quando critico assim uma acção, obrigo-me sempre a responder ao outro lado:  — Ah é, e o que é tu farias no meu lugar?  Bom, para começar não me vejo a ocupar um lugar (nenhum lugar), mas posso fingir e atiro logo o nome do Antonio Rodrigues (por quem tenho um fraquinho cinéfilo e, além disso,

Um leitor desconhecido

Tiro um livro da estante. É um velho livro usado que talvez tenha comprado na Vandoma. Ou num alfarrabista, talvez. Não sei, não me lembro. Há frases sublinhadas, símbolos nas margens: setas, cruzes, pequenas circunferências. Releio as passagens que o leitor anterior sublinhou e destacou com sinais. O que é que ele viu e que eu não consigo ver? O que é que eu não percebo? Ou terei sido eu a sublinhar o livro e entretanto perdi a memória disso? Um leitor desconhecido ou eu próprio noutro tempo. A diferença não é nenhuma.
Que diremos (pergunta) se as coisas naturais — fontes, florestas, vinhas, campos — forem um dia absorvidas pelas cidades e desaparecerem, e apenas se encontrarem em frases antigas? Serão como os deuses antigos, as ninfas, a natureza sagrada que emerge dos versos gregos. Então a simples frase «havia uma fonte» nos comoverá. Cesare Pavese ( Il Mestiere di vivere ), citado por Manuel de Seabra no prefácio a "A Lua e as Fogueiras",  livros de bolso Arcádia, 1958 (tradução corrigida).

Material circulante

O noticiário da rádio abre com novos pormenores sobre os horrorosos acontecimentos na Palestina. Logo a seguir, futebol. As declarações dos jogadores, as opiniões dos treinadores, os comentários dos comentadores. O noticiário termina com uma peça rápida sobre comboios, que não consigo perceber bem. Retenho apenas a expressão «material circulante». Perfeita alegoria do actual estado da informação: tudo não passa de simples «material circulante».

Depois virá aquela morte

Só ontem me apercebi que os campos, as vinhas e o trigo, o céu e as nuvens, as árvores e a terra, o som dos insectos e dos pássaros, a água a correr, tudo isso que vemos e ouvimos na segunda parte de Dalla nube alla resistenza nas deambulações do bastardo por Santo Stefano Belbo — é Nefele sentada no ramo da árvore.  Como Olimpia Carlisi avisara, as coisas mudaram no alto dos montes, os homens já não se misturam com as ninfas das nascentes e dos montes, com as filhas do vento, com as deusas da terra ; uma mão mais forte impede esse movimento. A potência da natureza transformou-se numa paisagem— ainda bela e inebriante, porém sem encontros nem diálogos.  Mas até essas imagens parecem tão longínquas, vindas de um passado recente (o filme é de 1978) que nos foge — quase arqueológicas? Onde existe ainda aquela terra? Por quanto tempo será viva? Temo que vivamos já depois do último plano do filme, depois da música de Gustav Leonhardt. E as palavras de Pavese revelam-se mais escuras do que

Advertência

Podendo, de bom grado se teria passado sem tanta mitologia. Mas estamos convencidos de que o mito é uma linguagem, um meio de expressão — quero dizer, não uma coisa arbitrária mas antes um viveiro de símbolos a que pertence, tal como a todas as linguagens, uma particular substância de significado que mais nada poderia dar. Quando repetimos um nome próprio, um gesto, um prodígio mítico, exprimimos em meia linha, em poucas sílabas, um facto sintético e compreensivo, um miolo de realidade que vivifica e alimenta todo um organismo de paixão, de estado humano, todo um conjunto conceptual. Se depois este nome, este gesto nos for familiar desde a infância, desde a escola — tanto melhor. A inquietude é mais verdadeira e cortante quando agita uma matéria costumeira. Aqui contentámo-nos em servir-nos de mitos helénicos dada a perdoável voga popular destes mitos, dada a sua imediata e tradicional aceitabilidade. Temos horror de tudo o que é incompleto, heteróclito, acidental, e tentamos — até mat

Selfie XII

Pareço as testemunhas de Jeová da rua a tentar convencer os fiéis a irem à sessão Da Nuvem à Resistência . Até já lhes passo papeizinhos com a palavra do senhor para a mão. 

As últimas maçãs da época

Domingo passado fui à aldeia dos meus pais colher dióspiros. Não eram muitos. Decidi aproveitar também as últimas maçãs da época, que tinham caído e estavam espalhadas pelo chão. São muito bonitas, de um amarelo lento e aveludado, com pontinhos vermelhos. Trouxe as que pude. Só em casa, ao abri-las, percebi que estavam podres. Não me arrependo do tempo e do esforço. A cor das maçãs continua magnífica.

Itinerário da alma vacilante

Rue de Vaugirard, Rue Rataud, Rue Lhomond, Rue du Pot-de-Fer, Rue Amyot, Rue du Cardinal-Lemoine, Rue Jean-de-Beauvais, Rue du Sommerard, Rue Médicis, Rue Guynemer, Rue Daru, Rue d'Orléans, Rue Saint-Denis, Rue de Tournon, Rue de l'Odéon, Rue d'Assas, Rue Garancière, Rue Cujas, Rue Servandoni, Rue Racine, Rue Vavin.  Place des Vosges, Place de l'Odéon, Place des Vosges, Place de la Concorde, Place de l’ Étoile, Place Saint-Sulpice, Place du Panthéon. Jardin des Plantes, Jardin du Luxembourg.

Dois planos

Há um filme que se desenrola à porta do Batalha. Não faz parte de nenhum dos ciclos arrojados do Centro de Cinema. É apenas uma sequência de dois planos opostos. No primeiro plano, a câmara está parada junto à fonte, virada para o Batalha e para a Igreja de Santo Ildefonso. Fim da tarde. Ouve-se a música de baile do Orfeão do Porto, o som da fonte e uma ou outra frase dos turistas que passam com sacos, a comer, a olhar para os telemóveis, a tirar fotografias. É um plano aberto e muito longo.  Corte.  No outro plano já é noite, o público sai de uma sessão e o segundo adro da igreja está cheio de gente parada em fila à espera de comida. Agora é a câmara que se move, é um travelling sem fim e inquieto. Como se fosse a Lorenza Mazzetti a filmar mais uma adaptação de Kafka, como se fosse uma coisa inconcebível.

Revolução de inércia

O maior erro histórico é um erro de perspectiva — nos vários sentidos da palavra.  Desde a revolução francesa que os pobres deviam comer brioches , isto é, largar a pele de pobre, os olhos de pobre. E nem era preciso uma guerra, bastava não fazer nada, ficar parado.  Sonho com uma revolução de inércia.

O sol do futuro

Leio no jornal que Rishi Sunak, primeiro-ministro do Reino Unido, quer endurecer as medidas conservadoras do seu governo para oferecer aos britânicos um «futuro mais brilhante» («a brighter future») . Os comunistas têm razão: roubaram-lhes tudo. Até a retórica.

Influenciadores do século XX

Lorenza Mazzetti é uma mulher maravilhosa, basta ouvi-la um pouco no documentário de Brighid Lowe e Henry K. Miller para ficar entusiasmada com o seu bom humor e inteligência.  Teve uma carreira curta no cinema mas, ainda assim, deixou obras importantes e também um método de trabalho que vale a pena seguir. Não só roubou a película e pôs na conta da Slade School of Fine Art a revelação de K ( Metamorphosis ), como não acatou a proibição de Max Brod para não adaptar as histórias de Franz Kafka. Era o que faltava — logo ela que compreendeu Kafka inteiramente pelos olhos.

Exercício de geometria

Traçar um arco que começa com A Caça , de Oliveira, e acaba com Adeus a Matiora , de Shepitko-Klimov. Primeiro, o homem da mão amputada a afundar-se no pântano e a gritar desesperadamente pela mão de um companheiro (ou será pela sua?). Depois, a cena final no barco, na qual Pinegin e Petrukha gritam por Matiora (ou será pela mãe?), que vai desaparecer sob as águas da barragem.

Singurătate şi destin

Durante muito tempo houve sobre a mesa de Cioran um caderno sempre fechado.  Após a sua morte, ao juntar os seus manuscritos para os confiar à Biblioteca Doucet, encontrei trinta e quatro cadernos idênticos. Só diferiam nas capas marcadas com um número e uma data. Iniciados em 26 de Junho de 1957, pararam em 1972.  Durante quinze anos, Cioran manteve no seu escritório, à mão, um desses cadernos, que parecia ser sempre o mesmo e que nunca abri. Neles encontramos entradas geralmente breves («Tenho o fragmento no sangue»), e a maior parte das vezes sem data. Apenas os acontecimentos considerados importantes estão datados, quer dizer, os passeios no campo e as noites de insónia — o que dá:  «Domingo, 3 de Abril. Caminhei todo o dia pelos arredores de Dourdan...»  «10 de Abril. Segui pelo canal Ourcq.» «24 de Novembro. Noite medonha.»  «4 de Maio. Noite atroz.»   Apesar do carácter repetitivo e monótono, guardei todas as passagens pois essas antífonas estão datadas.  Os cadernos de Cioran n

Gente com asas

CRIANÇA: Mas que ideia é essa que se te meteu na cabeça, paizinho, de arrear um escaravelho para ires até aos deuses? TRIGEU: É que fui descobrir nas fábulas de Esopo, que só gente com asas foi capaz de chegar aos olímpicos. CRIANÇA : Incrível essa história que me estás a contar! Ah, pai, pai! Um bicho fedorento como esse ser capaz de chegar até aos deuses! TRIGEU: Pois chegou sim, em tempos que já lá vão, com raiva da águia. E, por desforra, arirou-lhe com os ovos para o chão. CRIANÇA: Tu devias era arrear um Pégaso alado, para apareceres aos deuses com um ar mais trágico. TRIGEU: O pior, minha cara amiga, é que para isso tinha de arranjar rações a dobrar. Ao passo que assim, seja o que for que eu manduque, com a mesma paparoca - nem mais nem menos - encho a pança aqui ao fulano. Aristófanes, A Paz . Tradução de Maria de Fátima Sousa e Silva.

Othon, de Huillet-Straub

O que há de mais sólido no mundo são as palavras. Creio que também é isso que Othon prova. As palavras são feitas de um material próprio, cujo segredo os próprios físicos ignoram. Os carros continuarão a circular em Roma até serem substituídos por outra coisa qualquer. Os regimes cairão em silêncio ou com estrondo, e outros surgirão em seu lugar. O tempo continuará a produzir ruínas. Mas aqueles personagens permanecerão ali, onde sempre estiveram, a dizer aquelas palavras, até não restar mais nada.

Exercício de tradução

Othon é um filme violento . Não só são violentas as tramas que se urdem no império romano pela luta pelo poder — quem irá suceder a Galba? — mas toda a forma como Danièle Huillet e Jean-Marie Straub levantam o texto de Corneille .   Filmar ao ar livre, nos montes Capitólio e Palatino em Roma, cenas que são de gabinetes e corredores onde é normal esconder as intenções ou até mudá-las em função das oportunidades do momento é, talvez, o primeiro acto arrojado. Ameaças, traições, cinismo, casamentos de conveniência, todas essas intrigas que descrevem o comportamento de uma classe dirigente apodrecida na sua imponente ambição, vistas assim, ao sol e ao vento, entre a vegetação, as pedras e as fontes, sobranceiras ao ruído do trânsito da cidade, parecem-nos mais reais e mais aflitivas e também mais intoleráveis — não há escuridão para esconder o gesto vil nem veludos para abafar o som das palavras hipócritas.  E se essa determinação abre a urgência do filme, tudo o que se segue investe ain