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A mostrar mensagens com a etiqueta palavras

A forma do homem

« (...) For Arendt, it was always the world itself that provided the matter of thought. And if she turned to the authors and texts of the past to think those matters through — to literally permeate them with thought — it was not from a need for authority, or out of longing for a dead past, but because she believed, I suspect, what George Seferis expressed poetically: As pines keep the shape of the wind when the wind has fled and is no longer there so words guard the shape of man even when man has fled and is no longer there .» Thinking without a ground; Hannah Arendt and the contemporary g of understanding (último parágrafo), de Stan Spyros Draenos.

Bisogna trovare le parole giuste: le parole sono importanti!

Leio no jornal que Ana Gomes foi ilibada pelo Tribunal da Relação do Porto no caso em que chamou «escroque» ao empresário Mário Ferreira. Os excertos que o jornal cita do acórdão , redigido pelo juiz João Pedro Pereira Cardoso, são um tesouro da linguagem: No significado mais ecléctico do vocábulo ‘escroque’, acrescentar o sinónimo ‘desonesto’ ou ‘vigarista’ a um ‘criminoso fiscal’ não passa de uma redundância pejorativa intensificada. Não existe criminoso fiscal que não seja desonesto, pelo que a utilização interligada dos vocábulos não passa de uma crítica mais severa ou exagerada. [Ana Gomes considera que Mário Ferreira], na sua actividade empresarial, exibe um padrão de comportamento trapaceiro, de mentiras e embustes quanto ao cumprimento das suas obrigações fiscais — um comportamento, em suma, de escroque, vigarista ou desonesto.

«Não tenho palavras»

Desde o dia 7 de Outubro, há um estribilho vindo de longe que atravessou trevas e sofrimentos para desaguar mais uma vez no discurso de muitos colunistas regulares ou esporádicos da imprensa: “Não tenho palavras”. Seríamos levados a pensar que se trata da confissão derradeira de um naufrágio linguístico do pensamento, ou do desespero que antecede o sucumbir, como acontece na ópera de Schönberg Moses und Aron, quando Moisés pronuncia a sua última réplica, que fez correr rios de tinta: “O Wort, du Wort, das mir fehlt!” (“Oh palavra, tu palavra, que me faltas”). Mas não, até agora não vi ninguém sucumbir depois de gritar publicamente o seu desespero linguístico; pelo contrário, essa afirmação antecede ou culmina quase sempre uma animada tagarelice. António Guerreiro, jornal  Público , 20 de Outubro de 2023.

Othon, de Huillet-Straub

O que há de mais sólido no mundo são as palavras. Creio que também é isso que Othon prova. As palavras são feitas de um material próprio, cujo segredo os próprios físicos ignoram. Os carros continuarão a circular em Roma até serem substituídos por outra coisa qualquer. Os regimes cairão em silêncio ou com estrondo, e outros surgirão em seu lugar. O tempo continuará a produzir ruínas. Mas aqueles personagens permanecerão ali, onde sempre estiveram, a dizer aquelas palavras, até não restar mais nada.

O Cervejal

Foi para aí nos anos oitenta: um tipo que trabalhava para a companhia de teatro TEAR, uma espécie de contínuo, referia-se à peça de Tchékov como «O Cervejal». Não era um trocadilho, pensava mesmo que era assim que o texto se chamava. Sem querer, e por pura afinidade ( tendência dos corpos para se unirem ), tinha inventado uma palavra. Se estivesse para aí virado (quer dizer, se fosse o Valério de «Leôncio e Lena » ) até podia criar um conceito. E que conceito!

Liberal Radical Autêntico

Já são conhecidos os resultados das eleições presidenciais no Paraguai. O candidato derrotado, Efraín Alegre, é o líder do Partido Liberal Radical Autêntico. Leio isto no jornal e ocorre-me de imediato a imagem de Nanni Moretti, de roupão e touca, em Palombella Rossa , a gritar como um louco: «Le parole sono importanti! Le parole sono importanti!»

Palavras familiares

Estou a traduzir um texto da Chantal Akerman em que ela usa palavras da mãe. Ela é boa a usar as palavras da mãe, consegue agarrar a voz e os medos e a escuridão e o amor que essas palavras encerram. Para fazer o meu trabalho de intermediária, tive de convocar as palavras da minha mãe e da minha avó e, mais uma vez, dei-me conta do enorme património que me deixaram: palavras muito simples, imperfeitas, quase esbotenadas, mas com uma potência desarmante.  Quando usamos as palavras dos mortos acontece uma coisa curiosa, é como se nos encontrássemos a meio do caminho, eles um pouco vivos e nós um pouco mortos.

Ensaio de natal

Muñoz Machado ha querido destacar las modificaciones introducidas por iniciativa del escritor y académico Javier Marías, fallecido el 11 de septiembre: hagioscopio, que es la abertura o pequeña ventana hecha en la pared de una iglesia, desde donde se puede ver el altar; otra es una adición al término traslaticio como relativo a la traducción, y una nueva acepción, sobrevenido, como adjetivo que significa impostado, artificial. As três palavras juntas podem ser o início de uma história. Ou de um ensaio. 

Cimeira dos passos perdidos

Para além das palavras (banir os trabalhadores, saturar a resiliência, afrouxar a disrupção, etc. etc.), as agências de comunicação também deram cabo das camisas brancas. Vesti-me como Asako e afinal parece que vou para uma cimeira.

4 Aventuras de Reinette e Mirabelle

Sem a avalanche habitual de palavras, os filmes de Rohmer seriam outra coisa. E, no entanto, em Reinette e Mirabelle busca-se o silêncio. Um silêncio que só é possível «escutar» longe das cidades e durante um breve minuto, na hora azul, quando os animais nocturnos adormecem e os diurnos acordam. Mesmo assim, há um motor que se ouve ao longe. Ou quando Reinette quer provar, num jogo com Mirabelle, que é capaz de passar um dia inteiro sem dizer uma palavra. Reinette ou Rohmer em modo auto-irónico?

O homem mais feliz do mundo

Ouço na rádio a notícia de que está em Portugal, para dar uma conferência, um tipo que é «considerado o homem mais feliz do mundo». Não me engano. O jornalista repetiu diversas vezes que o conferencista — não consegui reter o nome — é «considerado o homem mais feliz do mundo».  A concorrência feroz entre gurus, xamãs, feiticeiros, padres, é tão antiga como a humanidade. Mas antes era preciso provar a autoridade espiritual com milagres ou feitiços. Agora, basta afirmar que um tipo é «considerado» o homem mais feliz do mundo. E o pior é que as palavras não ganharam mais peso no domínio da fé. Pelo contrário. As palavras transformaram-se em cuspo.

Branco e preto

Estava a subir as escadas rolantes do metro do Campo 24 de Agosto, talvez demasiado cansada para pensar, quando percebi que “sim” corresponde ao branco da neve de Walser e “não” corresponde ao negro da Branca de Neve de João César Monteiro. Traduções exactas cada uma delas. A mesma origem, caminhos diametralmente opostos e, no entanto, são — continuam a ser — as duas a mesma coisa.  Também no mundo das cores e das palavras vigora o princípio da incerteza.

Sensorium

A aula sobre Hamlet é um amontoado de ideias brilhantes. Bradley deixa-se levar por uma corrente que não sabemos nunca se é um delírio intelectual ou um sentimento ou tudo ao mesmo tempo (Iris Murdoch é suficientemente generosa para nos permitir a ambiguidade como um deleite). Mas uma coisa percebemos sem sombra de dúvida: as palavras são um dispositivo sensorial poderoso; entram no nosso corpo como uma espada.

O privilégio de compreender a vulgaridade de Shakespeare

Há várias referências a Hamlet e Shakespeare n’ O Príncipe Negro , as que me interessam mais são estas quatro:  Na página 141 (edição da Relógio d’Água), Julian e Bradley encontram-se por acaso na rua e acabam por falar outra vez sobre Hamlet. Digamos que é um divertimento provocador ao ar livre; uma ocasião propícia aos simbolismos (antecede a oferta das botas roxas a Julian); aquilo que mais tarde, no relatório policial, transforma-se num momento crucial para a acção, ou seja, a desgraça. A aula, propriamente dita, começa na página 170 e já dispõe de cadeiras, mesa e livros. Aqui Bradley supera-se (só não sei se é na própria altura em que tudo acontece ou depois quando descreve a situação):  «Porque Shakespeare conseguiu, através da pura meditação sobre o tema da sua própria identidade, criar uma nova linguagem, uma retórica especial da consciência…» (…) «O ser de Hamlet é feito de palavras, tal como o de Shakespeare.»  « Palavras, palavras, palavras .»  «Há alguma obra da história d

A palavra retoma consciência

Ao utilizarmos as palavras correntes esquecemo-nos de que são fragmentos de histórias remotas e eternas, e que construímos - como os antigos - a nossa casa com estilhaços das estátuas dos deuses. Os nossos conceitos e termos mais concretos são derivações muito remotas dos mitos e das histórias antigas. Não há um único átomo nas nossas ideias que não provenha daí, que não seja uma mitologia transformada, estropiada ou alterada. (...) A poesia reconhece o sentido perdido, restitui as palavras ao seu lugar, enlaça-as de acordo com certos significados. Manejada por um poeta, a palavra retoma consciência, digamos assim, do seu sentido primevo, desabrocha espontaneamente segundo as suas próprias leis, recupera a sua integridade. Bruno Schulz, A mitificação da realidade . Tradução de Patrícia Guerreiro Nunes.

Quem mexe os cordelinhos?

Fui rever Days of Being Wild , de Wong Kar-Wai. Desta vez, o que me impressionou foi o som. Os personagens, já se sabe, pouco falam. Mas entre as palavras, o que existe não é o silêncio, mas o ruído. Os amantes expressam-se, quase sempre, através do barulho ensurdecedor dos gestos. O barulho desesperado das mãos, dos braços, das pernas, dos pés, dos olhos, dos lábios. O filme é uma sucessão de corpos aos gritos. Corpos presos por arames invisíveis que os arrastam fatalmente para longe uns dos outros.