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Mensagens

Anyone for cricket?

Às vezes a crítica literária marimba-se para análises e julgamentos; atira-se à matéria com tal vontade que dá origem a objectos excêntricos. A tradução do conto Bliss , de Katherine Mansfield, por Ana Cristina Cesar ou, descobri agora, os sete volumes de À Procura do tempo Perdido transformados em argumento por Harold Pinter  (com a vantagem de nunca ter sido filmado). Dr. Percepied: Well, I must be going. I have to look in to see Monsieur Vinteuil. Not in the best of health, poor man. Father: Mmmnn. Dr. Percepied: His daughter’s friend is staying with them again, apparently. Father ( grimly ): Is she? Bom, talvez já não se possa chamar a estes exercícios, crítica — mas então chama-se crítica a quê?

Influenciadores do século XX

Feliz Aniversário

Em Feliz Aniversário , de Harold Pinter, há um tipo que faz anos e cuja festa de aniversário se transforma numa espécie de paráfrase do Processo , de Kafka. Stanley, assim se chama o aniversariante, acaba preso por dois personagens (Goldberg e McCann) após um estranho interrogatório, que lembra a investigação policial a Josef K. Não é claro o «crime» de que é acusado. Também não é evidente que tipo de «autoridade» o acusa. No limite, Stanley é culpado de existir e, portanto, de fazer anos. O seu aniversário é o crime supremo. STANLEY - Lamento muito, mas esta noite não estou com disposição para festas. MCCANN - Não? Que maçada!... STANLEY - Vou sair e festejar a data tranquilamente. MCCANN - Não faça isso… (Pausa) . STANLEY - Se não se importasse de me deixar passar... MCCANN - Mas já está tudo pronto. Os convidados estão a chegar. STANLEY - Convidados? Quais convidados? MCCANN - Eu, por exemplo. Tive a honra de receber um convite. (MCCANN começa a assobiar «The Mountains Morn

Ordesa

Que raio de ideia, substituir um título tão bom como “Ordesa” — que, mais do que uma palavra, mais do que um nome, parece uma pedra na boca — por uma frase vaga e até um bocado pretensiosa.
1. ”Andar com alguém" devia ser isso mesmo: andar lado a lado como nos filmes de Naruse. 2 . O dicionário diz que, neste caso, o verbo é transitivo e intransitivo. — Aprecio a contradição. Se continuarmos a ler, verificamos ainda que não se trata de um verbo copulativo. — Humor involuntário, também gosto. 3. Acho que nunca estudei os verbos copulativos. A gramática é uma coisa cada vez mais abstracta, complexa, inatingível. Imagino que o pessoal que trata do assunto trabalha num sítio parecido com a agência ultra-secreta dos Homens de Preto.

Ladrão que rouba a ladrão

Quando não há nada para escrever, nenhum motivo, nenhuma ideia, o que fazer? A resposta clássica é: escrever sobre o facto de não existir nada, nenhum motivo, nenhuma ideia, para escrever. Roberto Arlt , como qualquer escritor que viva de escrever crónicas para os jornais (espécie em extinção), era um especialista nessa nobílissima arte de «encher chouriços»: Às vezes, quando estou aborrecido e me lembro de que num café que conheço se reúnem alguns senhores que trabalham como ladrões, encaminho-me até lá para escutar histórias interessantes. E a partir daqui já nada o fará parar.

Falar de cor

Há vários dias que leio em diferentes textos do Público a expressão «de cor» para designar as congressistas norte-americanas que Trump insultou com a ideia estúpida de «send her back». A que raio de «cor» é que os jornalistas se referem? Branca, preta, amarela, vermelha, às bolinhas azuis? Há pessoas «de cor» e pessoas sem cor? E as pessoas que não são «de cor» são como espectros? São transparentes? Ou têm cores estranhas como os mortos-vivos do George Romero?

Influenciadores do século XX

Obrigada, senhor Cohen.

“Bela do Senhor” começa nas últimas páginas do “Trincapregos” aliás, “Trincapregos” já vinha de “Solal” assim como “Bela do Senhor” se prolonga em “Os Valorosos”. É uma tetralogia que partilha sítios, personagens, ideias e frases; ler os quatro de seguida é como apanhar uma grande bebedeira. A questão principal do livro talvez seja, de facto, a relação amorosa entre Ariane Cassandra Corisande d’ Auble, por casamento Daume, e Solal dos Solal. Mas reduzir “Bela do Senhor” a uma história de paixão é preguiça e muito errado. Trata-se de uma obra compósita, dinâmica e oh, maravilha! extremamente literária onde as palavras galopam e sucumbem (agradecimentos também aos tradutores que aguentam a agitação constante  e, de novo, ao editor corajoso ). De forma impressionante, Albert Cohen retrata o crescimento do nazismo numa Europa complacente, ataca a burocracia e as rotinas sem sentido e sem responsabilidade da Sociedade das Nações, critica os homens lambe-botas e ambiciosos como Adrien Da

O lápis de barba azul

ora o livro ora o lápis ora a libação a orelha dorme debaixo das almofadas feitas para asfixiar os gritos do futuro ora o livro ora a oração cada passo significa um traço rasurado noutro mapa mais ingénuo mas o risco da correcção reside precisamente na chamada da atenção para o que já esteve escrito para a escrita do que lá estava. Regina Guimarães, Caderno dos atalhos e dos becos , p. 73.

Tocar na mortalha de Cristo

O epicentro é mais ou menos aqui na zona do liceu Garcia de Orta, depois espalha-se até aos subúrbios. Meninas ricas, raparigas que cravam as mães, mulheres que fazem contas à vida ou não querem saber. O fenómeno dá-lhes o nome soberbo dos galgos: Bimbas y Lolas. Há vários níveis, como nos jogos das consolas: as mais afortunadas compram malas originais; seguem-se os acessórios mais pequenos em saldo (porta-moedas ou porta-chaves, desde que evidenciem o logótipo); imitações a 15 euros em lojas de ocasião; no fim da linha, as senhoras da limpeza contentam-se com um vulgar saco de papel branco com o nome da marca impresso a preto, conquistado às patroas. Todas sabem o que vale um símbolo, é como tocar na mortalha de Cristo.
Na última crónica, Álvaro Domingues escreveu sobre a solidão das torres. A imagem impressiona porque não a conseguimos compreender. A torre tão só, com a pequena estrada de terra batida a rodeá-la como o rabo dos gatos. Parece que vem de outra civilização, parece o monólito de Arthur C. Clarke — uma versão mais rasca do monólito, digamos assim.

Menos luz

É noite, estou deitada às escuras com os olhos fechados. Sinto uma luz, abro os olhos, mas não vejo nada. É uma luz interior. Não revela nada: nem objectos como é da natureza da luz, nem sentimentos como é da natureza das coisas interiores. Não significa nada.

Mais pessoas desconhecidas em álbuns de família

Três gaivotas

Gosto de me sentar no degrau da varanda a observar as crias de gaivota que nasceram e vivem no telhado em frente à minha casa. Não se parece nada com os documentários da televisão. Um plano de conjunto, fixo, ligeiramente inclinado, com muitos tempos mortos. Não há trama nem música nem comentários sentimentais. É quase cinema.

Observações avulsas sobre a boavista #6

— Ah, Rui Rio anda a ler Confúcio; mas em que língua? By getting right the proper names of things  Confucius said that order would commence,

Profound semicolon

A sentence from Wittgenstein contains a “fantastically vague semicolon”: “ Der Philosoph behandelt eine Frage; wie eine Krankheit .” (“The philosopher treats a question; like an illness.”) This has been translated by G. E. M. Anscombe thus: “The philosopher’s treatment of a question is like the treatment of an illness.” But, in removing what Erich Heller, an expert in German philosophy, calls a “profound” semicolon, one that “marks a frontier between a thought and a triviality,” the translator has reduced a deep thought to a bland one. Watson writes, sounding like the “punctuation therapist” she sometimes plays, “Ambiguity can be useful and productive, and it can make some room for new ideas.”