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A mostrar mensagens com a etiqueta Margarida Cordeiro

Episódio psicótico breve

Não sei o que aconteceu, perdi-me na sessão e vi — com extrema definição — tantas ligações em Ana .  Tati no número do circo (duas vezes); Dreyer quando Ana está junto à cama de Alexandre doente e o pároco de Ambricourt na sua deambulação final; Paradjanov nos tapetes, nos pimentos (contrabandeados de Espanha), e na cena dos pássaros; Staroye i Novoye nos campos;  Las Hurdes em certas cerimónias; John Ford na entrega dos ovos junto à cancela e no plano de Octávio encostado ao umbral da porta da igreja de Algosinho e, já fora, qualquer coisa de Straub e Huillet nos homens a comer morangos; Renoir na cena do banho no riacho — e de tal forma que julguei que os gansos também eram de Le Déjeuner sur l'Herbe ...  (Peregrinação Exemplar) O filme de António Reis e Margarida Cordeiro também é uma aula (ou uma história?) do cinema. Devia ser projectado regularmente por todo o país e nós íamos pelos campos a Bragança ou a Moura ou a Aljustrel ou a onde calhasse só para o ver ( juste pou

A natureza como imemorial casa

Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro inserem-se numa comunidade com algumas influências reconhecíveis e muitos herdeiros apaixonados; o que eles fazem é cinema. Podemos começar por defender esta verdade necessária. Mas, em rigor, não sabemos bem, ou sabemos cada vez menos, o que se agrega sob a palavra «cinema», por isso a proposição não faz justiça a uma obra cujos pontos de fuga nos levam para muito longe. Quer dizer, eles usam a linguagem primitiva do cinema mas depois estabelecem um diálogo intenso com muitas outras coisas: pintura, música, literatura, e ainda mais o conhecimento da terra e das pedras, dos animais e dos frutos, das estações, das construções das casas ou dos barcos, da vida e da morte — ou seja, nos seus filmes todos os elementos fundamentais da cultura vibram e isso dá-lhes um carácter de objectos raros e preciosos. Como se o cinema fosse um olhar cosmológico. Como se eles fossem feiticeiros. (...) Da folha de sala para a sessão organizada pelo Lucky St

Juste une image

Em 1976, as pessoas de Trás-os-Montes não gostaram da cena da neve. Acharam que os denegria, que não correspondia à realidade, que ninguém é tão pobre que coma neve.  A própria Margarida tinha algumas reservas: Essa ideia foi mesmo do António. Significava uma pobreza extrema. E claro que a neve não alimenta. Eu ai pus uma certa reserva. A neve é bonita mas não alimenta. E também não era neve... É qualquer coisa da produção, uma espécie de espuma... Eu aí reagi um bocado. Primeiro porque não alimenta. Segundo porque não era verdade... Pus uma certa reserva. Mas a única reserva que ponho actualmente é a lentidão. Dura muito. A duração dessa plano devia ter sido encurtado .  Mas a força da cena vem precisamente da sua profundidade e da sua  duração ; quando vemos a neve (apanhada, servida, comida) paramos e temos tempo para compreender o que é a pobreza e, se dermos um passo atrás, o que é uma imagem.  Há palavras de Kafka em Trás-os-Montes , mas esta imagem — destemidamente livre — podi

Sagen Sie’s den Steinen

Apetece brincar à cama de gato e pegar nas linhas éticas/estéticas com que o Luis Miguel Oliveira juntou Trás-os-Montes , No Quarto de Vanda e Sicília! e, seguindo a minha pancada por pedras, mudar a forma para: Trás-os-Montes , The Searchers , Antígona . — Rui! Rui! Que pedra é esta?  — É a pedra do raio! Quando há trovoada muito forte, cai o raio, entra pelo chão adentro…então fica lá uma pedra muito pesada e muito escura!

Um dia isto vai ser importante

Descobri que o Luís de Trás-os-Montes (que tem mais ou menos a minha idade) dá aulas na escola do quarteirão onde vivo. Se calhar já nos cruzamos na rua, no multibanco ou no Lidl. Diz ele: — O António era de um carinho, de uma simpatia transbordantes. E a Margarida também. Eu tinha perdido a mãe há meses e tivemos uma relação muito especial. Eu estava sempre abraçado a ela, de mão dada, ela oferecia-me imensas coisas. O António era mais reflexivo, falava só quando tinha alguma coisa importante para dizer. A Margarida era mais espontânea, mais rápida. Mas as coisas que o António dizia ficavam sempre na nossa cabeça. Funcionavam muito bem os dois. Nas refeições, eu sentava-me à beira deles, começavam a falar de Proust e acabavam em Stockhausen. O António dizia: "Presta atenção, porque agora não vais perceber nada, mas um dia isto vai ser importante." Às vezes eu apontava. Depois chegava a casa e perguntava: "Quem é este, e aquele?" Falavam, falavam, a Margarida escrev

Influenciadores do século XX

— Trás-os-Montes é um documentário?  — Não! Claro que não! Chamaram-lhe muito isso. O António não gostava nada. Um documentário para mim, na minha definição, é ficção o mais próxima da realidade que exista, mas “ficção” na cabeça de quem faz. Trás-os-Montes não! Muito daquilo é sonhado, muito daquilo não era verdade... Na altura mesmo! A ficção pura é isso, é juntar varias coisas. Tanto dá que tenha sentimentos humanos como não. É o juntar de formas. Isso é ficção pura.  (...) — Algumas críticas apontam o Trás-os-Montes como um panfleto político? Vê o filme como tal?  — Tudo é político! Não há nada que não seja político... Político quer dizer da cidade, da comunidade. E por isso [ Trás-os-Montes ] é político, claro. O filme não era uma brincadeira. Mostrava que há pessoas na extrema miséria. Mas que são belas, num país que pode ser muito belo. Nós tentamos dizer isso, não percebem?  Entrevista de Pedro Branco a Margarida Martins Cordeiro realizada presencialmente em Mogadouro, Distr

Longe da capital, longe da lei.

Sem mais nem menos, a menina da bilheteira decidiu fazer-me o desconto jovem. À primeira vista, foi um capricho anti-burocrático que se transformou logo em gag cómico. Depois percebi que não teve nada a ver com a idade. Ela deu-me o bilhete justo para ver Trás-os-Montes . Com aquele bilhete entrei na sala como se fosse em cima do cavalo Pensamento.