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«Ser fantasma entre fantasmas»

Há um desconcerto declarado em Ossos . Não é o filme que rompe com tudo, não tem nem a aura nem a veneração de No Quarto de Vanda , mas à distância, e depois de o ver várias vezes, apercebo-me que é já aqui que Pedro Costa e o próprio cinema perdem o pé — as imagens e o som projectados na tela não são, não podem ser, o que estava planeado, é outra coisa mais desvairada. Se insistirmos um pouco, conseguimos ver todo esse descalabro a acontecer. Os actores (principalmente as mulheres que olham — como a mulher de Bissau em Sans Soleil* — e as mulheres que agem) e o próprio bairro deram cabo das intenções cinematográficas, cortaram diálogos, forçaram a escuridão e o silêncio, abandalharam a acção e criaram, elas mais do que ninguém, um objecto estranho e provocatório onde o sentido está dissociado de uma narrativa com causas e consequências — e que se aproxima de qualquer coisa primitiva, amoral e até mesmo, por vezes, infantil (isto não anda longe de uma definição básica de surrealismo)

Som + Imagem

Talvez por já conhecer alguns planos de cor, ou pela proximidade às Filhas do Fogo , ou por causa do restauro, a sessão de ontem de Ossos foi uma revelação sonora. Ouvi tudo como se estivesse dentro de água: cães a ladrar, pessoas a falar na rua, o gás aberto (para matar ou aquecer o leite), carros a passar, portas a bater, discussões, música para dançar, a telenovela numa casa ao lado (as paredes do bairro parecem feitas de papel), alguém a acender o isqueiro uma e outra vez, os ruídos instáveis do interior dos autocarros, a chave a rodar na fechadura da casa da enfermeira Eduarda.  Apesar de uma primeira e mais evidente ligação pelas imagens (não por acaso, Emmanuel Machuel foi o director de fotografia de L'Argent ), talvez a ligação mais íntima de Ossos a Bresson seja pelo som.  Estas notas postas em acção:  «É preciso que os ruídos se tornem música.»  « Valor rítmico de um ruído   Ruído de uma porta que se abre e se fecha, ruído de passos, etc., pela necessidade do ritmo.»

Percepção subliminar

Não tenho muito jeito para falar em público, as ideias recuam ou emperram e o que sai é um discurso às três pancadas. Por exemplo, domingo, na conversa no Trindade, quando disse que o travelling de Nuno era um bocado o Pedro Costa a fugir do cinema, não percebi que isso era apenas uma pista e não ainda um pensamento. Só hoje, de manhã cedo, ao tomar banho, é que liguei as coisas e dei-me conta do enorme alcance psicanalítico de Ossos . Já sabemos que é o último filme de Pedro Costa feito em película 35 mm e segundo um sistema de produção convencional, sabemos que marca um fim. Mas é assombroso descobrir como tudo o que passa no seu âmago é uma corrente de ideias inconscientes nem sempre ou não só cinematográficas, uma espécie de luta corporal e abstracta: Nuno Vaz (o pai que não tem nome) corre com o filho dentro de um saco do lixo; Vanda desafia a câmara; e Zita também, de outra forma; o bebé, que ninguém quer comprar, teima em não morrer (aliás ninguém morre — tudo se passa ainda no