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«Ser fantasma entre fantasmas»




Há um desconcerto declarado em Ossos. Não é o filme que rompe com tudo, não tem nem a aura nem a veneração de No Quarto de Vanda, mas à distância, e depois de o ver várias vezes, apercebo-me que é já aqui que Pedro Costa e o próprio cinema perdem o pé — as imagens e o som projectados na tela não são, não podem ser, o que estava planeado, é outra coisa mais desvairada. Se insistirmos um pouco, conseguimos ver todo esse descalabro a acontecer.

Os actores (principalmente as mulheres que olham — como a mulher de Bissau em Sans Soleil* — e as mulheres que agem) e o próprio bairro deram cabo das intenções cinematográficas, cortaram diálogos, forçaram a escuridão e o silêncio, abandalharam a acção e criaram, elas mais do que ninguém, um objecto estranho e provocatório onde o sentido está dissociado de uma narrativa com causas e consequências — e que se aproxima de qualquer coisa primitiva, amoral e até mesmo, por vezes, infantil (isto não anda longe de uma definição básica de surrealismo). Aqueles planos em que duas raparigas riem com cumplicidade de pequenos disparates, por exemplo, são eternos e de uma enorme generosidade (doce milagre das nossas mãos vazias) — podem ajudar-nos vida fora.

Pedro Costa aceitou o risco e deixou-se levar para essa floresta obscura. Se olharmos para trás ainda vemos a civilização. Em frente é o desconhecido, como numa história de «Conrad, ou Stevenson, ou Melville.» Ossos é um filme de perdição.





* O meu problema era mais circunscrito: como filmar as mulheres de Bissau? Aparentemente, a função mágica do olho jogava contra mim. Foi nos mercados de Bissau e de Cabo Verde que encontrei a igualdade de olhar, e esta sequência de figuras tão próximas do ritual de sedução: eu vejo-a — ela vê-me — ela sabe que eu a vejo - ela oferece-me o seu olhar, mas apenas no ângulo em que ainda é possível fazer como se não se dirigisse a mim — e para terminar, o olhar verdadeiro, em frente, que durou 1/25 de segundo, o tempo de uma imagem. (Chris Marker).

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