Não tenho muito jeito para falar em público, as ideias recuam ou emperram e o que sai é um discurso às três pancadas. Por exemplo, domingo, na conversa no Trindade, quando disse que o travelling de Nuno era um bocado o Pedro Costa a fugir do cinema, não percebi que isso era apenas uma pista e não ainda um pensamento. Só hoje, de manhã cedo, ao tomar banho, é que liguei as coisas e dei-me conta do enorme alcance psicanalítico de Ossos. Já sabemos que é o último filme de Pedro Costa feito em película 35 mm e segundo um sistema de produção convencional, sabemos que marca um fim. Mas é assombroso descobrir como tudo o que passa no seu âmago é uma corrente de ideias inconscientes nem sempre ou não só cinematográficas, uma espécie de luta corporal e abstracta: Nuno Vaz (o pai que não tem nome) corre com o filho dentro de um saco do lixo; Vanda desafia a câmara; e Zita também, de outra forma; o bebé, que ninguém quer comprar, teima em não morrer (aliás ninguém morre — tudo se passa ainda no limiar da morte, na prostação e agonia); a enfermeira Eduarda (Isabel Ruth) entra sorrateiramente no bairro e parece que sempre lá viveu, dorme com o marido de Clotilde, sente-se em casa; as sucessivas portas que se fecham (o negativo do que acontece em Spellbound, outro tipo de paixão), etc.
de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral
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