Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A última cena

Quando as raparigas invadem a sala do Moulin Rouge para dançar (assim como A Regra do Jogo prevê e antecipa a guerra, French Cancan festeja desvairadamente o fim da guerra, que alegria tão distante, ai de nós!), Danglard fica nos bastidores a ouvir a musica à distância, sozinho.   Bom, sozinho até me lembrar de Straub no fim de Onde jaz o teu sorriso?

Ladainha

Andei a juntar os textos que escrevi sobre os filmes de Pedro Costa e dei-me conta daquilo que no fundo já sabia há muito: pareço aquele sem-abrigo a cantar Jesus’Blood Never Failed Me Yet.

«Ser fantasma entre fantasmas»

Há um desconcerto declarado em Ossos . Não é o filme que rompe com tudo, não tem nem a aura nem a veneração de No Quarto de Vanda , mas à distância, e depois de o ver várias vezes, apercebo-me que é já aqui que Pedro Costa e o próprio cinema perdem o pé — as imagens e o som projectados na tela não são, não podem ser, o que estava planeado, é outra coisa mais desvairada. Se insistirmos um pouco, conseguimos ver todo esse descalabro a acontecer. Os actores (principalmente as mulheres que olham — como a mulher de Bissau em Sans Soleil* — e as mulheres que agem) e o próprio bairro deram cabo das intenções cinematográficas, cortaram diálogos, forçaram a escuridão e o silêncio, abandalharam a acção e criaram, elas mais do que ninguém, um objecto estranho e provocatório onde o sentido está dissociado de uma narrativa com causas e consequências — e que se aproxima de qualquer coisa primitiva, amoral e até mesmo, por vezes, infantil (isto não anda longe de uma definição básica de surrealismo)

Toda a gente sabe o que vai acontecer.

«O sol desaparece por trás dos edifícios. Toda a gente sabe o que vai acontecer. «Os putos não têm juízo» todos concordam, «mas eles têm razão, isto não podia ser assim». Escutamos várias versões disto ao longo do dia, como se as pessoas conversassem consigo mesmas. Por um lado, têm consciência que os motins que se avizinham serão perigosos e destrutivos, mas por outro também sentem um ultraje a que nenhum político ou comentador saberá alguma vez responder. Sabem que no dia seguinte serão crucificados nas televisões por uma dúzia de cabeças falantes que projectarão naqueles quarteirões os filmes americanos e brasileiros que viram na Netflix, falando de traficantes de droga e de gangues que reinam sobre o bairro com uma mão de ferro, mas também sabem que é precisamente por isso que tantos daqueles jovens passarão as próximas horas a queimar tudo a que conseguirem deitar mão. Portugal inteiro tem uma palavra a dizer sobre as suas vidas sem nunca ter passado cinco segundos perto delas.» L

Esse breve intervalo entre o impulso e o acto

Se à nascença todos estão destinados a sofrer a violência, a influência das circunstâncias fecha os espíritos dos homens a essa verdade. O forte nunca é absolutamente forte, nem o fraco absolutamente fraco, mas ambos o ignoram. Não se crêem da mesma espécie; nem o fraco se considera semelhante ao forte, nem é considerado como tal. Aquele que possui a força caminha num meio não resistente, sem que nada na matéria humana em seu redor seja de natureza a despertar esse breve intervalo entre o impulso e o acto, onde se abriga o pensamento. Onde o pensamento não tem lugar, também não o têm a justiça nem a prudência. É por isso que estes homens armados agem com dureza e com loucura. A sua arma crava-se num inimigo desarmado, de joelhos; triunfam sobre um moribundo descrevendo-lhes os ultrajes que o seu corpo irá sofrer; Aquiles degola doze adolescentes troianos na fogueira de Pátroclo tão naturalmente como nós apanhamos flores para uma campa. Simone Weil, A  Ilíada  ou o poema da força.

Som + Imagem

Talvez por já conhecer alguns planos de cor, ou pela proximidade às Filhas do Fogo , ou por causa do restauro, a sessão de ontem de Ossos foi uma revelação sonora. Ouvi tudo como se estivesse dentro de água: cães a ladrar, pessoas a falar na rua, o gás aberto (para matar ou aquecer o leite), carros a passar, portas a bater, discussões, música para dançar, a telenovela numa casa ao lado (as paredes do bairro parecem feitas de papel), alguém a acender o isqueiro uma e outra vez, os ruídos instáveis do interior dos autocarros, a chave a rodar na fechadura da casa da enfermeira Eduarda.  Apesar de uma primeira e mais evidente ligação pelas imagens (não por acaso, Emmanuel Machuel foi o director de fotografia de L'Argent ), talvez a ligação mais íntima de Ossos a Bresson seja pelo som.  Estas notas postas em acção:  «É preciso que os ruídos se tornem música.»  « Valor rítmico de um ruído   Ruído de uma porta que se abre e se fecha, ruído de passos, etc., pela necessidade do ritmo.»

Eles sobrevivem em nós

Uma citação de Didi-Huberman fora do contexto: «[Elas] têm gestos muito, muito antigos, bem mais antigos do que elas próprias. Gestos que vêm de muito longe no tempo. Esses gestos são como os fósseis em movimento. Têm uma história muito longa - e muito inconsciente. Eles sobrevivem em nós .» Didi-Huberman não está a falar de As Filhas do Fogo , mas podia. Talvez sejam aqueles «gestos que vêm de muito longe» que me instigam a relacionar o filme com a tragédia antiga. Quer dizer, com a nossa tragédia.

Nunca desilude

Sempre que ouço Bach, digo a mim mesmo que é impossível que tudo seja aparência. Tem de haver outra coisa. E depois, a dúvida toma conta de mim de novo. * Se Bach pode tomar para mim o lugar do resto da música, não consigo ver o escritor que possa substituir sozinho todos os outros – nem mesmo Shakespeare. Cansamo-nos das palavras, sejam elas de Macbeth ou de Lear; não nos cansamos de sons quando compõem certos motetos, certas cantatas. * A coisa mais difícil que há é renovar as nossas admirações. Só admiramos de verdade até aos vinte anos. Depois, é só entusiasmos ou caprichos. Mudei de opinião sobre toda a gente, exceto sobre Shakespeare, Bach e Dostoiévski. Desses três, a minha preferência vai para Bach. Dele podemos dizer: este nunca desilude . * Ouvir Bach nos grandes armazéns enquanto compramos cuecas! E.M. Cioran, Cadernos 1957-1972 . Tradução de Cristina Fernandes. Folha de sala das Variações Goldberg , por Pedro Burmester. Teatro São João, Outubro de 2024.

Coisas visíveis

Fort Apache é um filme magnífico que permite imensas leituras (políticas, musicais, éticas, cinematográficas,…) não só do que é visível, mas também das elipses fundamentais (como lhe chama João Bénard da Costa, com imensa pontaria) que ficam para sempre dentro da nossa cabeça a desinquietar (por exemplo, a enigmática relação entre Thursday e Collington). Das coisas visíveis, destaco uma frase e uma sequência. Referindo-se ao marido que vai nessa manobra funesta planeada pelo tenente-coronel Owen Thursday, Emily Collington diz: Não o vejo. Tudo o que vejo são as bandeiras . Depois do massacre, há um confronto entre o pelotão de John Wayne e os apaches. Wayne aceita a derrota, atira ao chão o coldre com as armas (num plano em que percebemos a admiração de Huillet e Straub) e avança até Cochise. No plano seguinte os índios desaparecem no pó.

Percepção subliminar

Não tenho muito jeito para falar em público, as ideias recuam ou emperram e o que sai é um discurso às três pancadas. Por exemplo, domingo, na conversa no Trindade, quando disse que o travelling de Nuno era um bocado o Pedro Costa a fugir do cinema, não percebi que isso era apenas uma pista e não ainda um pensamento. Só hoje, de manhã cedo, ao tomar banho, é que liguei as coisas e dei-me conta do enorme alcance psicanalítico de Ossos . Já sabemos que é o último filme de Pedro Costa feito em película 35 mm e segundo um sistema de produção convencional, sabemos que marca um fim. Mas é assombroso descobrir como tudo o que passa no seu âmago é uma corrente de ideias inconscientes nem sempre ou não só cinematográficas, uma espécie de luta corporal e abstracta: Nuno Vaz (o pai que não tem nome) corre com o filho dentro de um saco do lixo; Vanda desafia a câmara; e Zita também, de outra forma; o bebé, que ninguém quer comprar, teima em não morrer (aliás ninguém morre — tudo se passa ainda no

Longe dos banhos quentes

Sem dúvida, o infeliz estava longe dos banhos quentes. Não era o único. Quase toda a Ilíada se passa longe dos banhos quentes. Quase toda a vida humana se passou sempre longe dos banhos quentes. A força que mata é uma forma sumária, grosseira, da força. Quão mais variada nos seus procedimentos, quão mais surpreendente nos seus efeitos, é a outra força, a que não mata; quer dizer, a que não mata ainda. Vai matar de certeza, ou vai matar talvez, ou então está apenas suspensa sobre o ser que a qualquer momento pode matar; de qualquer das formas, converte o homem em pedra. Do poder de transformar um homem em coisa fazendo-o morrer procede outro poder, muito mais prodigioso, o de fazer uma coisa de um homem que continua vivo. Está vivo, tem uma alma; no entanto é uma coisa. Que ser tão estranho, uma coisa que tem uma alma; estranho estado para a alma. Quem poderá dizer como ela tem de torcer-se e dobrar-se sobre si mesma a toda a hora para se submeter? Não foi feita para viver numa coisa;