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Mensagens

A mostrar mensagens de setembro, 2015

O joguete do destino

Ora aconteceu que um belo dia, enquanto caminhava pelo parque, Madwick tropeçou na raiz de uma tília. E foi nesse exacto momento que notou, com absoluta lucidez, que iria rachar a cabeça. “Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, isto iria acontecer”, suspirou. Enquanto tombava, reparou que se esquecera do chapéu em casa. E que tinha saído sem fechar a porta. O gato, por certo, aproveitara a ocasião para se escapulir, como era seu timbre. “Bolas!”, gritou interiormente. Não era a primeira vez que o gato provocava distúrbios na rua. Era um animal dotado de um certo espírito caprichoso. Entretanto, a cabeça aproximava-se do chão com uma urgência cada vez maior. “Vamos encarar a situação friamente”, resmungou para si mesmo. “Além da cabeça, o mais certo é fracturar também um braço, várias costelas e a própria tíbia.” A ideia de fracturar a tíbia perturbava-o especialmente. Enfiou um cigarro mental entre os lábios e acendeu-o. Ocorreu-lhe então um poema que gostaria de citar, mas que não

Ele, que nos seus livros conhecia tudo

Balzac ensaiou a vida prática pela primeira vez quando, desesperado com a sua produção literária, quis adquirir o verdadeiro poder do dinheiro e se tornou especulador. Fundou uma tipografia e um jornal, mas, com essa ironia que o Destino tem sempre reservada para os revoltados, ele, que nos seus livros conhecia tudo: os golpes da Bolsa, os requintes dos pequenos e dos grandes negócios, as manhas dos usurários; ele, que conhecia o valor de todas as coisas, que nas suas obras tinha feito triunfar centenas de homens e lhes fizera ganhar fortunas, estabelecidas sobre fundamentos justos e lógicos; ele, que havia enriquecido Grandet, Popinot, Crevel, Goriot, Bridau, Nucingen, Wehrbrust e Gobseck - perdeu o seu capital, falindo miseravelmente. E nada lhe ficou além da terrível carga de dívidas que conduziu depois, gemendo, sobre os largos ombros, durante todo o século da sua vida, escravo do trabalho mais acabrunhante, sob o qual um dia sucumbiu, sem um grito, com as veias rebentadas. Stefa

Anna Gorenko

Cuando su padre se enteró de que su hija estaba a punto de publicar una selección de sus poemas en una revista de San Petersburgo, la llamó y le dijo que, aunque no tenía nada contra su gusto por escribir poesía, quería instarla a «no manchar un nombre respetado» y recurrir a un seudónimo. La hija accedió y así es como «Anna Ajmátova» entró en la literatura rusa en lugar de Anna Gorenko. Joseph Brodsky.

DiDonato

Gioachino DiDonato, poeta italiano de mérito, foi chamado de Nápoles para ser antagonista de Mallarmé, em Paris. Resultaram desta disputa ásperas campanhas nos jornais, ardentes duelos de palavras, combates espirituosos nos salões, mas também pancadaria entre os frequentadores dos cafés. A princípio DiDonato triunfou com os poemas “Uns quantos grilos em gaiolas”, “O manto de plumas” e “Pirilampos”. Todavia, quando um ou outro dos seus poemas sofreu um fracasso, em parte merecido, o sexagenário cansou-se e abandonou Paris. Nunca mais regressou.

Um relâmpago

Um relâmpago tremendamente amarelo cruzou o céu. De dentro desse relâmpago amarelo irrompeu um relâmpago vermelho-metálico. De dentro desse relâmpago vermelho-metálico irrompeu um relâmpago azul-cobalto. De dentro desse relâmpago azul-cobalto irrompeu um relâmpago verde-alface. De dentro desse relâmpago verde-alface irrompeu um relâmpago púrpura-púrpura. Em seguida, começou a chover.

Próximo sábado, 19 de Setembro, pelas 19h00, no Porto

Imagem de lina&nando from Supernova.

Comichão no nariz

Uma aranha de nome Marie estava a embrulhar na sua teia uma mosca rechonchuda para oferecer de presente ao seu mais-que-tudo. A mosca estava muito satisfeita por poder servir Marie e o seu amor de inúmeras patas, e fazia os possíveis para estar à altura das circunstâncias: mantinha a boca calada e as reluzentes asinhas fechadas. Mas a teia fazia-lhe comichão no nariz e ela não conseguia parar de espirrar. A aranha dava voltas e mais voltas à mosca, envolvendo-a em teia, mas sempre que esta espirrava, o embrulho desfazia-se. A pobrezinha recomeçava então uma e outra vez o trabalho. E a mosca espirrava e voltava a espirrar. - Ah, não! – gritou Marie. – Embrulhar uma mosca é tão difícil como roer a cauda peluda de um elefante. E a mosca espirrou de novo.

Chegou um novo volume da Colecção Avesso

"Quartos alugados", novo livro de contos de Alexandre Andrade e quinto volume da Colecção Avesso , já está disponível nas livrarias, em www.exclamacao.pt e no pavilhão da editora Exclamação, na Feira do Livro do Porto (até 20 de Setembro, nos Jardins do Palácio de Cristal). Este volume, que tem prefácio de Cristina Fernandes e design de Lina&Nando , será apresentado no dia 19 de Setembro, pelas 19h00, na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto. "Quartos alugados" sucede a "Notícias em três linhas", de Félix Fénéon, volume traduzido por Manuel Resende e um dos livros do ano de 2014 , segundo o suplemento Ípsilon, do jornal Público. Mais informações sobre estes e os próximos volumes da Colecção Avesso, no blogue da colecção (clicar aqui) .

Excerto de um email enviado por um amigo

No outro dia tive um sonho engraçado.   O rei François VI chamou os seus conselheiros e disse: «Há vinte anos, fui agraciado com um título papal e a agência Reuters não deu notícia. Vão buscar o correspondente da Reuters e cortem-lhe a cabeça.» Assim se fez. Infelizmente, veio a descobrir-se pouco depois que, de facto, a agência Reuters tinha noticiado o caso. Este facto foi funesto, porque a credibilidade do rei nunca mais se recompôs e a casa real perdeu o lustre que tanto custara a granjear ao longo das gerações.

Autor anónimo, s/d

Rua de Ceuta, Porto

Vida religiosa

Era uma vez um homem que estava preso ao céu por um fio. Se o fio era real ou apenas aparente, não me atrevo a afirmá-lo, visto não possuir nenhuma pedra-de-toque que me permita distinguir, sem margem para dúvidas, o verdadeiro do falso. O que me parece indiscutível é que não se encontra um homem assim todos os dias, nem mesmo em Inglaterra. Ora, dadas as circunstâncias, a sua vida era tudo menos fácil. Tropeçava a todo o momento, braços e pernas ensarilhavam-se, cresciam nós incómodos em volta do corpo. Por vezes, à volta do pescoço. Apesar disso, não mostrava o mais leve sinal de impaciência. Na verdade, ser-lhe-ia muito fácil cortar o fio. Com uma tesoura, por exemplo. Até que. Até que, dizia eu, e este “até que” é tão importante que lhe dedicaremos todo um parágrafo: o seguinte. Até que um dia, durante uma forte ventania, o fio partiu. Pela primeira vez, fugiu-lhe da boca um palavrão. Caiu de joelhos, desfez-se em lágrimas. Ele, dantes tão tranquilo, achava-se agora possuído po

Além do mais

Cortés e Montezuma caminham lado a lado junto ao embarcadouro. «Gosto especialmente do Espírito Santo. Enquanto ideia», declara Montezuma. «O outro Deus, o Pai, é também...» «Um Deus, três Pessoas», emenda Cortés delicadamente. «O facto de ser necessário sacrificar o Filho», prossegue Montezuma, «parece-me errado. Parece-me que deveriam fazer-se sacrifícios ao Filho. Além do mais», detém-se e bate no peito de Cortés com o indicador moreno, num gesto significativo, «onde está a Mãe?» Donald Barthelme, Cortés e Montezuma . Tradução de Paulo Faria.

Quem foi Pierre Aimard?

Pierre Aimard foi um monge que, no ano de 995, descobriu uma fórmula simples e universal de escrever poemas. Achando-se mergulhado no meio de graves cogitações, Aimard olhou para a sua mão esquerda. Ainda hoje as pessoas fazem o mesmo: olham para as mãos quando não sabem o que fazer. De súbito, acudiu-lhe uma ideia grandiosa. Na mão esquerda cabiam perfeitamente dezanove palavras, uma em cada falange – eram catorze –, e outra na raiz de cada dedo; juntas somavam dezanove. A palavra número vinte usava-se tão raramente que Pierre a deixou a flutuar sobre a polpa do dedo médio. A partir desse momento, qualquer pessoa pôde conceber poemas na própria mão. Por meio da combinação das diferentes palavras, as possibilidades são inesgotáveis. Há mais de mil anos que se fazem poemas desta maneira, isto é, à maneira engenhosa de Pierre Aimard. Tão normal como o pão nosso de cada dia.