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Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro, 2020

Pequenas notas sobre um grande amigo

Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século. Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende deixou de ser um segredo guardado por meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta. O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever. Os três livros que publicou, antes da «Poesia Reunida», de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A «Poesia Reunida» também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele q

A reflexão e a acção

A certa altura do teu mail anterior dizias: «Parece-me que é entre estes dois pontos que a nossa vida se joga: a reflexão e a acção.» É curioso, isto faz-me lembrar as plantas. Elas têm uma parte reflexiva e uma parte activa. A parte reflexiva é a parte das folhas, que estão ali à espera que venha o ar e o sol dar-lhes o CO2 e a luz de onde extraem 88% da sua massa. A parte activa são as raízes que furam o solo e exsudam açúcares para os microorganismos que, em troca, lhes dão azoto, potássio, quelatos de ferro, etc., e oligo-elementos, isto é, o resto, muito pouco, da sua massa. Bem, tenho consciência de que isto tudo é um pouco confuso, mas pronto. Um abraço.  manel

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh Essa orelha que nem o amor criterioso da honrada família Conseguiu preservar do esquecimento, Pobre orelha a que mais ninguém ligou E que está se calhar esperando o seu dono Que não volta, Nessa Provença é que eu estou. A verdade é que nem eu a encontrei, Mas, também, como os outros, não perdi muito tempo a procurá-la. Salvem-se os quadros, vendam-se os quadros Guardados pela criteriosa família E até por descuidados provençais - é o essencial. A orelha, que se lixe, não se pintam quadros com orelhas. As orelhas são para os músicos, e mesmo esses, Às vezes já só tocam música interior. Vicente, meu velho, em verdade te digo, Que por aqui as plantas andam a tentar imitar-te E, tantos anos depois, ainda não conseguiram. Elas bem se torcem, elas bem chamam o sol, Que todo se estremece, Elas bem se encostam ao céu, Elas bem se verde, elas bem se azul, elas bem se amarelo. Eu sei, eu sei, Vicente, muito te custou, Talvez até

A classe operária apanha o elevador e sai no 13º andar

Não sou de comprar muitas coisas. Nunca fui. Vivo no mesmo apartamento há trinta anos; o carro tem mais de vinte. Roupa, só a necessária. Tralhas para a casa, nem pensar. Houve um tempo em que comprava livros e filmes, mas também me deixei disso (vou à biblioteca ou releio, aborreci-me um bocado com o cinema). Deixei de fumar. Aproveito tudo até ao fim, consumo cada vez menos. Neste momento só gasto dinheiro em coisas básicas tipo água, electricidade, de comer e beber, transportes, dentista. Apesar do rendimento familiar ser baixo, sobra mais ou menos um terço todos os meses — sem esforços. O dinheiro serve-nos para pouco. Já fiz as contas, quando ficar sem emprego (não falta muito) posso viver dos rendimentos. Pareço a minha avó que com pouca comida, enchia uma mesa; e com uns trocos, juntava dinheiro. Uma versão letrada e manhosa da minha avó.

Dia do pão

Milhões e milhões de euros, dólares, cuanzas. Mansões nos quatro cantos do mundo, iates, automóveis de luxo. Para a esmagadora maioria, tudo isto tem o mesmo peso de uma folha de jornal, lida de manhã cedo no metro, a caminho do trabalho. É tão concreto como uma história de fadas ou um policial, ou um episódio da novela da noite. Estamos fora desta escala, tal como os nossos pais e avós também estiveram. Não entendemos, apenas imaginamos entender. Por estes dias, não me sai da cabeça aquele longo plano de um dos grandes filmes de Dvortsevoy : o grupo de velhos a empurrar um vagão de comboio, durante horas, no meio da neve. E no interior do vagão, uma curta fornada de pão. Insuficiente para alimentar todos os habitantes da aldeia.

Influenciadores do século XX

Ó vós que ides passando

Esta manhã, quando saí de casa, já não chovia. O céu estava limpo. Mas, de vez em quando, ainda caíam dos telhados aquelas gotas solitárias, frias, inesperadas, que passam entre os cabelos e gelam o crânio. Mais terríveis do que um aguaceiro. Para nos lembrar que o Inverno é longo e difícil.

Influenciadores do século XX

Quartzo, feldspato e mica

O mais curioso nos edifícios «recuperados» do Porto é o granito liberto da poeira e fumo acumulados ao longo de muitas décadas. Os grãos de mica reluzem como milhões de pequeníssimas partículas de ouro. Tudo brilha por toda a parte. Os tripeiros mais carrancudos semicerram os olhos, desviando-se da claridade que irradia das fachadas. Mas é apenas o velho granito limpo. Mais cedo ou mais tarde, a poeira voltará a assentar.

Oh, uma ocorrência literária!

Ando há mais de uma semana a tentar escrever sobre os “Cadernos de Bernfried Järvi” e não consigo. Enquanto estava a ler o livro, talvez por simpatia, assaltavam-me ideias fulgurantes, mas depois da última página, depois nada. Quase uma afasia; as ideias foram perdendo a força, as palavras revelam-se desajustadas. Passa tudo ao lado. Tento uma e outra vez. O nevoeiro alastra. Não é fácil fazer frente a este livro, não é um livro qualquer, não é um livro à toa. Pelo contrário, posso afirmá-lo sem rodeios: este livro é literário e tem um passado! E basta isso para o tornar marginal, suspeito e até perigoso ( é necessário acrescentar uma tarja vermelha , diria Pagreus). O problema são as provas, a linha cronológica existe mas vejo-a toda enrodilhada ( falta-me discernimento ) Mais do que uma crítica literária, os “Cadernos de Bernfried Järvi” pedem um bom detective, alguém que saiba controlar os adjectivos, um mapa de três dimensões, cervejas ou café, uma lupa, algumas nuvens e menos

Dois Dovlatov

É de mim ou no livro editado pela Antígona há dois Dovlatov? Há o Dovlatov de Leninegrado, de «O livro invisível», fresco, ágil, armado de uma ironia tenaz e de um humor formidável, na melhor tradição da literatura russa do século XX, de Daniil Harms a Zamiatine ou Zoshchenko, embora irremediavelmente preso no interior do cerco montado pela absurda e tirânica burocracia soviética. E há um segundo Dovlatov, o de Nova Iorque, de «O jornal invisível», livre para pensar e escrever, e que, no entanto, é um autor cansado, sem ideias vivas, sem mão, que se arrasta pelas páginas como um velho mestre cego. Até as anedotas do Dovlatov nova-iorquino não têm a mesma graça do de Leninegrado. Que conclusão tiramos disto? Só o diabo sabe, como disse Erik Bastin.

Odeio o ano novo

Por Antonio Gramsci Todas as manhãs, quando acordo mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim são dia de ano novo. É por isso que odeio isto do ano novo a prazo fixado que transforma a vida e o espírito humano numa empresa com a sua estável prestação de contas, o seu balanço final e a sua avaliação para a nova gerência. Faz-se com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Acaba-se por acreditar seriamente que entre um ano e outro haja uma quebra de continuidade e se inicie uma nova história, fazem-se promessas e arrependem-se das que ficaram por cumprir, etc., etc.. É o que geralmente acontece com as datas. Diz-se que a cronologia é o esqueleto da história. Mas também temos de admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais que todas as pessoas guardam no seu cérebro, datas essas que têm o efeito manipulador na história. Também elas são dia de ano novo. O ano novo da história romana, ou o da Idade Média, ou da época moderna.
Fechar os olhos e tentar ver os atributos abstractos das coisas no escuro, como um pintor a procurar as estruturas geométricas de uma montanha. Talvez assim seja possível ver, sentir que vemos, compreender que vemos.

Observações avulsas sobre a boavista #15

Aconteceu há algum tempo, na rua Tenente Valadim, em frente ao Sheraton, de manhã cedo. Uma mulher jovem, elegante, extremamente bem vestida, perguntou-me se lhe podia trocar uma moeda de cinquenta cêntimos — ela só precisava de vinte para o parquímetro. Abri o porta-moedas, não tinha moedas que chegassem, mas reconheci a saia da mulher, já a tinha visto na montra da Gant, custava umas centenas de euros — decidi oferecer-lhe vinte cêntimos. A mulher aceitou, sorriu e agradeceu-me muito. Desconfio que não percebeu que isto era uma parábola e cada uma de nós estava apenas a desempenhar um papel.

1000 francos de lucro

Como primeira manifestação pública de sua cinefilia, François Truffaut decide em Outubro de 1948 fundar um cineclube, o Círculo Cinémano. (...) Para a primeira sessão, marcada para domingo, 31 de Outubro, às 10h15, Henri Langlois (diretor da Cinemateca Francesa) empresta-lhe dois filmes curtos, "Entr'Acte", de René Clair, e "Um Cão Andaluz", de Luis Buñuel. O rapaz tenta conseguir também um longa-metragem, "O Sangue de um Poeta", de Jean Cocteau, mas se depara com um não da Federação Francesa dos Cineclubes, à qual não quisera aderir nem pagar pela locação dos filmes.  (...) Truffaut obstina-se e escreve a Jean Cocteau em pessoa, convidando-o a apresentar seu filme levando uma cópia. Cartazes são colados nas imediações do Cluny-Palace e distribuídos nos cineclubes da região de Saint-Michel, anunciando para essa primeira sessão uma projeção de "Le Sang d'un Poète" "na presença do realizador". Desnecessário dizer que o anúncio c

Pó de estrelas

O título de jornal diz: «O mais antigo material na Terra é feito de pó de estrelas.» E prossegue: «São chamados “grãos pré-solares”. Como o nome denuncia, são grãos formados antes de o nosso Sol ter nascido e são feitos de pó de estrelas.» Um destes grãos é uma minúscula migalha que não mede mais do que 0,008 milímetros. Uma estrela mais pequena do que este ponto final. Talvez neste exacto momento, enquanto inspiro e expiro, esteja a inalar um pedacinho de estrela. Ou uma estrela se tenha alojado entre os dedos dos meus pés. Os recursos poéticos da ciência são ilimitados.
Juiz: De modo geral, qual é a sua especialidade? Brodsky: Eu sou poeta. Poeta-tradutor. Juiz: Quem decidiu que o senhor era poeta? Quem o classificou entre os poetas? Brodsky: Ninguém. ( Sem qualquer desafio ) E quem me classificou no gênero humano? Juiz:  E o senhor estudou com tal objetivo? Brodsky: Qual objetivo? Juiz: De se tornar poeta. Não tentou fazer os estudos superiores para se preparar… para aprender… Brodsky: Eu não pensava que seria possível aprender isso. Juiz: Como se tornar poeta, então? Brodsky: Penso que… ( Desconcertado ) … é um dom de Deus… Juiz: O senhor deseja apresentar alguma demanda ao tribunal? Brodsky: Adoraria saber por que fui preso. ... Parte do processo de Joseph Brodsky, traduzido por Guilherme Gontijo Flores, para ler aqui .

Influenciadores do século XX

Estação de Francos, 8h10.

Geralmente são duas mulheres, cada uma com o seu mostruário cheio de folhetos e revistas ilustrando a felicidade. Os desenhos e fotografias pretendem transmitir bons sentimentos, mas sempre me pareceram um bocado sórdidos — por causa do seu artificialismo, talvez. Agora já não presto atenção às imagens; desde que li “A viagem de Felicia” só me interessam as Testemunhas, ou melhor, o lado obscuro dessas mulheres. Demasiado vestidas, com saias abaixo do joelho, com ar de quem sabe um segredo porco sobre toda a gente mas dispostas a esconder o assunto. É isso que a literatura tem de bom, transforma o mundo monótono à nossa volta numa trama intrigante, dá profundidade de campo.

As águas do Neva

Dovlatov prova (como se fossem precisas provas; mas eu tinha de começar o texto por algum lado...) que o absurdo não é uma distorção caprichosa da realidade, mas a própria realidade. Os episódios biográficos que descreve em «O livro invisível» mostram que as histórias de Daniil Harms , por exemplo, são tão plausíveis como uma mosca no tecto ou um pedacinho de madeira a flutuar nas águas do Neva.

Vou-lhes contar como isto se passou

Certa vez, Bitov deu uma bofetada a Andrei Voznesenski. Bitov foi sujeito a um juízo dos companheiros. Estava numa situação mesmo má. «Ouçam-me», disse Bitov, «e hão-de compreender! Vou-lhes contar como isto se passou! Quando o fizer, vão convencer-se de que agi correctamente. E então vão-me desculpar logo. Deixem-me desabafar. Foi assim. Entro no restaurante. Vejo o Andrei Voznesenski parado. E agora digam-me: podia evitar dar-lhe uma bofetada?» Serguei Dovlatov, O ofício . Tradução de Galina Mitrohovitch.

Ou amendoins

Cioran rende muito, para além das traduções ainda dá para notas de tradução: Ao traduzir os textos de Cioran sinto-me como quando era miúda e calçava os sapatos prateados da minha mãe. Agora os sapatos servem-me, mas continuam a não ser meus. Não basta a actividade intelectual — para entender melhor as palavras de Cioran é preciso ter um historial clínico dinâmico. As traduções de Cioran beneficiam: de uma falta de trabalho crónica, da luz que entra pelas janelas, do efeito do café forte, do som arrastado dos barcos no rio e, acima de tudo, da presença de uma ratazana gorda no jardim. Sempre que Cioran escreve sobre Deus e o princípio do mundo, é como se estivesse a falar de um caso policial. Para me livrar do tédio, entretenho-me a traduzir silogismos ao acaso. Nesta frase, Cioran apenas aprovaria “ao acaso”. — O tédio, quando surge, deve ser aproveitado devagar, até ao fim, para além do fim.

Um pratinho de tremoços

Os espíritos lúcidos, para dar um carácter oficial à sua lassidão e impô-la aos outros, deviam constituir uma Liga da Decepção . Talvez assim conseguissem atenuar a pressão da história, tornar o futuro facultativo... Que pena que, para chegar a Deus, seja necessário passar pela fé! Se acreditasse em Deus, a minha presunção não teria limites: passearia nu pelas ruas... Fora da matéria, tudo é música: o próprio Deus não passa de uma alucinação sonora. Não é Deus, é a Dor que desfruta das vantagens da ubiquidade. Quis fixar-me no Tempo; era inabitável. Quando me virei para a Eternidade, perdi o pé. Mais ainda que a religião, o cinismo comete o erro de prestar demasiada atenção ao homem. O cepticismo que não contribui para a ruína de nossa saúde não é senão um exercício intelectual. O que irrita no desespero é o seu fundamento, a sua evidência, a sua «documentação»: é uma reportagem. Examinem, pelo contrário, a esperança, a sua generosidade no erro , o seu modo de e

Influenciadores do século XX

Fotografia

Nos serviços do cartão de cidadão, o funcionário mandou-me tirar os óculos para a fotografia. Depois, perguntou-me se estava satisfeito com a imagem que aparecia no ecrã da máquina. Respondi que sim, embora a fotografia mostrasse um tipo sem óculos e bastante desfocado, que eu jamais conseguiria reconhecer.

Joker

Museu Internacional Escultura Contemporânea de Santo Tirso  |  Folha de Sala  |  Catálogo

Um dia, não tinha ninguém

Não é por acaso que Casanova inclui digressões sobre a dança e a pintura. Existe, por exemplo, numa igreja de Madrid, um belíssimo quadro da Virgem e do menino. O colo elegante da Virgem excita a sensualidade. Os devotos afluem a esta igreja e nela deixam muito dinheiro. Um dia, não tinha ninguém. Intrigado, Casanova entra e constata que o novo capelão pintara um lenço no seio da Virgem. (...) Em Veneza, diz-lhe Casanova, ter-vos-iam imediatamente condenado aos Piombos por este crime. «Não conseguia dizer a missa, responde-lhe o jovem padre, porque aquele belo seio me perturbava.» Philippe Sollers, Casanova, o Admirável . Tradução de Maria Irene Bigotte de Carvalho.
Tipo, estás a ver? Podia ser o nome de uma peça de teatro em que todas as personagens são bolas de espelhos. Era apenas um rapaz e uma rapariga em conversa mole no autocarro.

Como um cão a olhar para o dedo

É um livro pequeno — lê-se numa tarde —, mas deixa um rasto impressionante. Começa logo pelo título: “Raparigas de Escassos Recursos”. Ora, as raparigas nunca são de escassos recursos , menos ainda no fim da Segunda Guerra Mundial em Londres. A ironia atravessa também a história e o modo de a escrever. Muriel Spark recorre a tempos e registos diferentes para criar uma novela que tem mais ou menos o ritmo de  Ein musikalischer Spaß : passagens cómicas misturam-se com versos de poemas clássicos, costumes velhos, ousadias, papel de parede, um vestido  Schiaparelli  partilhado e mais ainda. Toda esta trama culmina na explosão de uma bomba perdida e na morte de um poeta convertido. O divertimento, como aliás tantas vezes em Mozart, dá lugar a uma tristeza miudinha e é disso que é difícil livrarmo-nos. Outra curiosidade de “Raparigas de escassos recursos” é que Muriel Spark aponta para coisas diversas (raparigas, um edifício, a cidade, os restos da guerra, etc.), mas reagi sempre como um

Propriedades incandescentes

O trabalho intelectual de Jane era de três tipos. Em primeiro lugar, e em segredo, escrevia poesia de uma natureza absolutamente não racional, em que ocorriam, mais ou menos na mesma proporção das cerejas num bolo de cereja, certas palavras que ela descrevia como tendo “propriedades incandescentes”, tais como flancos e amantes, a raiz, a rosa, a alga e a mortalha. “Raparigas de Escassos Recursos”, de Muriel Spark, tradução de Margarida Vale de Gato, edição da Relógio d’ Água, página 39.

Porta

Na sala onde velávamos o corpo da nossa velha amiga, no Crematório da Lapa, alguém tinha pousado, atrás da porta, um saco do hospital, meio transparente. No interior, as últimas roupas e objectos que ela tinha usado.

Influenciadores do século XX

Navio fantasma

«É o nevoeiro no Tejo que tem feito um navio buzinar toda a noite.» Leio este título no jornal. Fecho os olhos, ei-lo: o vago vulto de um navio, preso no nevoeiro, a trezentos quilómetros de distância, lamentando a sua fraca sorte de fantasma, uivando no fundo do meu ouvido.

Doppelgänger de Emil Cioran

Vi-o à porta da confeitaria Favo de Mel na rotunda da Boavista. Calças pretas, justas, um pouco curtas. Camisa vermelha aos quadrados. Sapatos pretos. O cabelo atirado para trás. Podia ser músico punk ou estafeta da Uber Eats. Era um Doppelgänger jovem de Emil Cioran.

1 de Janeiro