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Ultrapassou os influenciadores, a pandemia e a quarentena; ultrapassou até o venerável Ludwig Wittgenstein. Cioran ( ah, cet enfoiré ! ) alastra neste blogue como um vírus.

Demonstração de efeito estroboscópico

Imaginem o encontro de Ludwig Wittgenstein com Emily Dickinson. Na floresta. Ainda é madrugada. Emily está sentada num banquinho na direita alta. Junto aos pés, uma caixa com duas tesouras, post-it amarelos, canetas de várias cores, um rolo de papel celofane, uma carteira de fósforos. Ludwig entra pela esquerda baixa a assobiar uma canção de Betty Hutton. Nada de camisas brancas. Os dois vestem roupa de trabalho de tons neutros e calçam botas robustas ( para atravessar pontes com fissuras ). Ludwig traz uma garrafa termos no bolso do casaco. O centro está assinalado por um X riscado no chão. Começa a função:

"Todo signo sozinho parece morto"

No sábado fui à Biblioteca entregar os livros . Deixei o Wittgenstein — perigoso, intocável — em cima do monte das devoluções. Vai entrar em quarentena. Por coincidência, "Ludwig Wittgenstein" e "Quarentena" têm o mesmo número de entradas no blogue (30). Les jeux sont faits .

Coisas concretas

Mas o que me agrada mais em Wittgenstein é, nem sei bem definir isto — uma atração distraída pelas coisas concretas? Nos textos e (talvez) nas aulas, Wittgenstein recorre com frequência a objectos para expor exercícios de lógica. Folheando as notas de “Cultura e Valor” muito depressa, encontro: torre de igreja, árvore, cascalho, mochila, chapéu, palha, pedra, caneta, espelho, poste de sinalização, fechadura, chave, lentes, cavalo, carruagem, carris, argamassa, pedra, gaveta, sapatos, aviões, lantejoulas, porta, dedal, bolhas, montanha, celofane, casa, tesoura, bolo, moeda, estrela, erva. Os substantivos sobressaem pela sua natureza: são extremamente visuais; são cor, forma e função. Mas sobressaem também porque conseguem criar uma divergência qualquer dentro da frase — tocam. Tocam como uma campainha de recepção. Por exemplo, nesta nota (que é uma das minhas preferidas do livro): “Procurar o erro num argumento duvidoso e esconder o dedal.” Apesar de escondido, o dedal fica a ressoa

Coisas abstratas

O que Wittgenstein escreve sobre Pascal e os números é uma espécie de superfície espelhada; do outro lado vemos Wittgenstein e as palavras. O mesmo êxtase perante as “admiráveis propriedades” das coisas abstratas.

As admiráveis propriedades que os números têm

1942 O matemático (Pascal) que admira a beleza de um teorema na teoria dos números é como se admirasse um belo fenómeno natural. É maravilhoso, diz ele, as admiráveis propriedades que os números têm. É como se estivesse a admirar as regularidades numa espécie de cristal. * Poderia dizer-se: que leis maravilhosas imprimiu o Criador nos números! Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70, página 67.

Exercícios práticos de filosofia

Resolvi ensaiar em casa aquela cena de abrir um livro de Cioran à sorte , à procura de um lema para o dia que começa . Como não tenho nenhum livro de Cioran em papel, peguei em “Cultura e Valor” de Wittgenstein. Também é apropriado à função — as notas são breves e cheias de possibilidades. Abri e encontrei: “Onde os outros avançam, fico eu parado”. Levantei-me, tomei banho e fui comprar fruta ao Campo 24 de Agosto.

Puxar ou empurrar?

Pensamos que os filósofos são seres distantes que se dedicam a assuntos ainda mais longínquos, mas isso não é verdade. Muitas vezes debruçam-se sobre coisas triviais. Nesta nota, por exemplo, Wittgenstein utiliza o dilema entre puxar ou empurrar uma porta: “Um homem está prisioneiro num quarto se a porta não estiver trancada e abrir para dentro, enquanto não lhe ocorrer que é preferível puxá-la a empurrá-la.” Todos nós passamos por esta situação — apenas não a cristalizamos, não a transformamos num raciocínio livre e dinâmico. Faltam-nos as capacidades de Wittgenstein para enquadrar uma imagem com tanta profundidade e nitidez, para utilizar a linguagem como um canivete suíço, para criar um processo de cálculo em ambiente ambíguo.
Ludwig Wittgenstein morreu no dia 29 de abril de 1951, em Cambridge. No dia 16 de Junho foi lançado, nos Estados Unidos, Symphony in Slang . Nada liga estes dois acontecimentos, mas eu acho que o filme de Tex Avery é uma homenagem espontânea ao trabalho tardio do filósofo.

Grand jeté

Em Wittgenstein as metáforas funcionam de modo esquisito; transferem a significação entre dois objectos distantes como é da sua competência mas, ao mesmo tempo, só que agora de outro lado, continuam a sujeitar-se ao rigor das palavras. Quando ele escreve: “Mais tarde, quando estava a copiar uma frase que tinha escrito, cuja segunda metade era má, vi-a de repente como uma metade apodrecida de maçã.” Já nem penso na maçã, vejo o texto apodrecido como um texto apodrecido. A frase tem no seu interior uma energia literal extraordinária, inapropriada, estimulante. Reconheço este mecanismo dos desenhos animados de Tex Avery. Num desenho animado podemos fazer tudo? Sim, na verdade, talvez só aí e dentro da linguagem seja possível mostrar um bailarino que salta ( grand jeté ) sem se mover. Ah, já sei quem é o bailarino.

Maçãs

Acabei de tirar algumas maçãs de um saco de papel onde ficaram muito tempo. Tive de cortar metade de muitas delas e atirá-las fora. Mais tarde, quando estava a copiar uma frase que tinha escrito, cuja segunda metade era má, vi-a de repente como uma metade apodrecida de maçã. E é este o modo como as coisas se passam sempre comigo. Tudo o que comigo se cruza torna-se para mim uma imagem do que estou a pensar na altura. (Haverá algo de feminino nesta maneira de pensar?) Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70.

Chapéus e sapatos

Ninguém pode pensar por mim um pensamento, da mesma maneira que ninguém pode por mim pôr o chapéu.  --- Os filósofos usam uma linguagem que já se encontra deformada, como que por sapatos muito apertados. Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70.

A fim de Wittgenstein

Vinha a descer Antunes Guimarães e, sem dúvida por causa do sol quente (o letreiro da farmácia marcava 18°), lembrei-me de fazer uma lista de músicas para Ludwig Wittgenstein. Já existe esta. Mas não estava a pensar nas preferências do filósofo —  é ao contrário; as músicas é que estão a fim de Wittgenstein ou de qualquer coisa que Wittgenstein tem. False documents (Laurie Anderson), Vitamin (Kraftwerk), In a manner of speaking (Tuxedo Moon), Bach: The Goldberg Variations — todas as versões de uma ponta à outra (Glenn Gould), Language is a virus (Laurie Anderson), I'm the walrus (The Beatles), Ohm, sweet Ohm (Kraftwerk),  4’33’' (John Cage), Proverb (Steve Reich), If you can't talk about it, point to it (Laurie Anderson),
1930 Engelmann disse-me que em casa, ao remexer uma gaveta cheia de manuscritos seus, estes lhe parecem tão excelentes que pensa que valeria a pena dá-los a conhecer a outras pessoas. (Diz que o mesmo se passa ao ler cartas dos seus parentes já falecidos.) Mas quando pensa em publicar uma selecção desses manuscritos, as coisas perdem o seu encanto e valor, o projecto toma-se impos­sível. Eu disse que tal se assemelhava ao caso seguinte: nada há de mais extraordinário do que ver um homem, que pensa não estar a ser observado, a levar a cabo uma actividade vulgar e muito sim­ples. Imaginemos um teatro; o pano sobe e vemos um homem sozi­nho num quarto, a andar para a frente e para trás a acender um cigarro, a sentar-se, etc., de modo que, subitamente, estamos a observar um ser humano do exterior, de um modo como, normal­mente, nunca podemos observar-nos a nós mesmos; seria como observar com os nossos próprios olhos um capítulo de uma biografia — isto poderia, sem dúvida, ser ao mesmo temp
1930 Disse, em tempos, talvez acertadamente: a cultura antiga fragmentar-se-á e tornar-se-á finalmente um monte de cinza, mas sobre as cinzas pairarão espíritos. Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70.

A Árvore

Aconteceu há mais de dez anos. Estávamos em Castelo Branco à procura do caminho para Belgais. Perguntámos num café à beira da estrada. O dono disse que era fácil: — Seguem em frente, vão encontrar uma árvore , viram à direita. Metemo-nos no carro. Havia muitas árvores a rodear a estrada. Continuamos a andar. De repente, reconhecemos a árvore . Sempre pensei que isto era uma cena perdida de um filme de Kiarostami que me tinha calhado em sorte. Afinal, também pode ser uma parábola apócrifa de Wittgenstein (reconhecemos a árvore porque estava em itálico).

Uma outra miopia

Esta nota de 1929: É difícil indicar um caminho a um míope, visto que não se lhe pode dizer: «Olhe para aquela torre de igreja a 16 quilómetros daqui e siga nessa direcção.» Compreendo onde Ludwig Wittgenstein quer chegar ( uma boa parábola refresca o entendimento — e vão duas notas), mas esbarro na literalidade do agrimensor: dezasseis quilómetros de distância, uma torre de igreja com cinquenta e tal metros de altura?

A casa no meio da floresta

Ainda não comprei “As peças que faltam” de Henri Lefebvre. Por preguiça, mas também pela diversão de ir juntando itens à lista (no desconhecimento). Acabei de acrescentar as “Investigações Filosóficas”, de Ludwig Wittgenstein, em verso. A verdadeira casa no meio da floresta.