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Três filmes

Por razões práticas, fui rever Da Vida das Marionetas , de Bergman (1980). O que une este filme a Warum läuft Herr R. Amok? , de Fassbinder (1970), e Jeanne Dielman , de Akerman (1975), é muito mais do que um ténue fio agitado pelo ar daqueles tempos. (Escrevo «ar daqueles tempos» para facilitar.) O que os une é uma corda de aço.

Tu sabes, tu és uma mulher.

Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles é um objecto de muitas perplexidades: endógenas, históricas, cinematográficas, e outras ainda mais variáveis pois prendem-se com as características de quem assiste à projecção, como se o filme nos convocasse para qualquer coisa. Ainda antes da primeira imagem, o título identifica e regista Jeanne numa morada: cais do comércio, 23 . Mais do que nomear, é apresentada uma sinopse plena de significados. Mas as perplexidades continuam: como é que uma miúda de vinte e cinco anos consegue ter uma visão tão precisa e profunda do quotidiano de uma mulher de meia idade? Como é que ela sabe a este ponto? Como é que consegue detalhar cada movimento do corpo de Delphine Seyrig e ao mesmo tempo deixar na sombra tudo o que se passa na cabeça. Quando a actriz pede explicações 1 , Chantal diz que ignora o que essa mulher pensa, apenas conhece os seus gestos. Talvez seja este avançar teimoso no não saber, esta decisão de afrontar um enigma, que t

As sensações estão a voltar

Tens razão, Cristina . Depois de ver  Jeanne Dielman , não é possível ler, ir ao cinema ou olhar para o tecto, sem nos ocorrer uma cena, um gesto, um som do filme. Há mais uma passagem de Beckett, desta vez em Eu não , que me empurra para a obra de Chantal Akerman. Continuo a achar que o desvio na rotina de Jeanne e o início da derrocada começa fora de campo, no quarto com o cliente, a meio do segundo dia. Talvez ela tenha reconhecido em si qualquer coisa que ultrapassava a simples relação prática com o homem. A passagem de Beckett (tradução de Isabel Lopes): (...) reconhecê-la como sua… a voz como sua… mas também lhe vem ainda… ainda uma ideia… assustadora… oh muito depois… breve luz que se fez… ainda mais assustadora se possível… de que as sensações estão a voltar… imaginem!... as sensações estão a voltar!... a partir de cima… depois a apoderar-se para baixo… da máquina toda… mas não… ao menos isso… só a boca… a face… até ver… ah!... até ver… depois dizendo para si própria… oh muito

Incendiar o mundo

A ambiguidade é um grande trunfo de Jeanne Dielman . Podemos levar o filme para onde quisermos, ele segue-nos, obedientemente ou com relutância, mas depois volta à sua forma original — intacto, pronto para outro devaneio. Podemos andar nisto muito tempo.  Hoje de manhã, à revelia de Chantal, durante a viagem de metro ocorreu-me que os dois últimos planos podem ser uma imagem do que se passa na cabeça de Jeanne. Nesta versão, o crime e a pausa depois do crime não são executados, são apenas idealizados ou talvez seja melhor dizer: potencializados . Claro que isso mostra-nos uma personagem ainda mais perturbada porque acumula ideias revolucionárias num sítio obscuro da sua cabeça — uma mulher que não mata aquele homem mas é capaz de incendiar o mundo inteiro amanhã.

O casaco sem botão

Apesar de ser um filme terrível, Jeanne Dielman tem duas situações cómicas.  Numa das vezes em que vai deixar ou buscar a bebé, a vizinha conta que não sabe o que há-de fazer para o jantar (Jeanne não tem esse problema porque segue um menú semanal rígido). Estava no talho sem saber o que comprar, desorientada repetiu o pedido da cliente anterior e acabou por trazer um quilo de vitela, mas em casa ninguém gosta de vitela — por ela comia só uma sandes e pronto. A vizinha fica sempre atrás da porta, nunca a vermos, só ouvimos a voz e é a voz de Chantal.  A outra é quando Jeanne dobra e embrulha um casaco com muito cuidado numa folha de papel (é o que tem nas mãos na fotografia) e percorre várias lojas à procura de um botão, mas não o consegue encontrar. Uma das empregadas diz mesmo que nunca viu um botão igual. A determinada altura ela explica que é um casaco como novo do sobrinho que vive no Canadá que só agora serve ao filho, mas como ela sempre ouviu dizer que a Europa está muito atra

Movimento de um corpo que cai

A partir do segundo dia, Jeanne Dielman começa a desempenhar as suas tarefas de um modo mais distraído: esquece-se de as executar ou não as executa pela ordem adequada, nem no tempo certo, nem com a intensidade aconselhada. Lentamente começa a fazer tudo um pouco mais rápido. Podemos não saber o que aconteceu, mas apercebemo-nos que essa aceleração significa que estamos perante um corpo em queda livre.

Jeanne Dielman

Passou uma semana e continuo a pensar no filme de Chantal Akerman como se tivesse acabado de o ver. Já me afastei da tradução de Uma família de Bruxelas,  da mãe de Chantal e de tudo que vem por arrasto, mas continuo com muitas imagens demasiado presentes na cabeça. O cão de porcelana que está na cristaleira da sala de jantar, por exemplo, não me dá tréguas. Assim como o reflexo do néon azul. (Isso e o plano de entrada no prédio quando Jeanne passa pela porta quadriculada intermédia junto às caixas de correio que fica entreaberta e depois continua a afastar-se da câmara, entra no elevador e corre as duas portas de grades do elevador — todas essas linhas que mostram a enclausura em que ela se fecha — são o lado formal e hitchcokiano do filme?) E também os sons dos interruptores, dos tacões e dos cabides, que funcionam quase como um metrónomo.   Em certo sentido, Jeanne Dielman faz-me lembrar Der Lauf der Dinge , de Peter Fischli e Weiss — tem o mesmo carácter hipnótico. Prende-nos a qu

23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles.

Um filme terrível

Se não me engano, as coisas começam a correr mal no segundo dia quando Jeanne coze demasiado as batatas para o jantar, ela deixa-as a cozer ao fim da tarde quando vai atender os clientes, mas desta vez cozeram demasiado e ela não sabe o que fazer com essas batatas, podia fazer puré, mas quarta-feira não é dia de comer puré (carne estufada com batatas cozidas à terça; panados de vitela com ervilhas, cenouras e batatas cozidas à quarta, rolo de carne à quinta), então leva a panela com as batatas para o quarto de banho talvez para as despejar na sanita mas não despeja e volta para a cozinha, hesita e acaba por as deitar no balde do lixo. A verdade é que desde aí tudo corre não só mal, mas cada vez pior: esquece-se de tapar a terrina da sala onde guarda o dinheiro e às vezes esquece-se de desligar os interruptores e tem de voltar atrás para os desligar, e depois não tem batatas que cheguem para o jantar e tem de ir à loja comprar um saco de batatas tão tarde a uma hora não habitual e o jan