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A mostrar mensagens com a etiqueta sonho
Tenho óptimas discussões no fim dos almoços de fim-de-semana, quer dizer parecem óptimas como os sonhos coxos parecem óptimos enquanto estamos a dormir. Ontem, talvez por causa do arroz de cogumelos e do alvarinho (do Pingo Doce, pois sou mais operária do que presidente da câmara), acabei por confessar que me entristece ver um dos meus filmes preferidos de Huillet e Straub apresentado às três pancadas e que mais valia não convidar ninguém, dizer apenas: «Este filme é belíssimo e palpitante, vejam-no com atenção, mas sem preocupações analíticas, como se não soubessem o que é o cinema. E depois, se precisarem (vão precisar, claro, todos nós precisamos), vejam-no outra vez e leiam o Pavese e olhem à vossa volta e procurem os deuses as vinhas as fontes e os homens. O nosso agradecimento a Huillet e Straub não tem fim. Boa sessão.» Em italiano, soava melhor.

Sonho corsário

Levaram-me à sede do Partido Comunista. Era uma sala ampla cheia de estantes com livros e algumas cadeiras espalhadas — parecia uma biblioteca. Fiquei tão contente que, vez de me sentar para discutir como os outros, fui investigar as lombadas. (Infelizmente já não me lembro dos títulos.)  No fim, disse a um dos camaradas:  — Não têm nenhum livro de Pasolini! — Pasolini não era do Partido*. — Era mais comunista do que vocês todos! * Foi expulso em 1949 por «indignidade moral» — no sonho não sabia disso, mas a resposta é maliciosa porque os autores dos outros livros também não eram do Partido

Os caminhos de Trenque Lauquen

Depois de ver a primeira parte de Trenque Lauquen , nessa mesma noite, sonhei com o filme e resolvi o mistério: não se tratava de fuga ou desaparecimento, aqueles dois homens não conseguiam encontrar Laura porque ela tinha-se transformado num pronome. A dormir, isso era uma coisa aceitável. Ao ver a segunda parte percebi que, para além da estupidez intrínseca do sonho, sou irritantemente europeia, quer dizer, só gostei da última sequência em que a personagem Laura e a actriz Laura piram-se aos devaneios fantásticos da realizadora Laura. Essa fuga está ao nível do recado impecável que ela deixa no pára-brisas e, quem sabe, ao nível de Alexandra Kollontai.

Faina e folgança

Sonhei com a Chantal. Estávamos sentadas a comer, a beber, a fumar e a dizer piadas. Eu sou como a mãe da Chantal, não tenho jeito nenhum para piadas, mas no sonho safava-me porque estávamos as duas perdidas de riso. Se calhar já lhe tinha contado a cena da Jeanne Dielman destronar o Hitchcock.

No buraco do coelho

Hoje sonhei que um realizador de quem gosto muito andava a pintar as paredes lá de casa. Não estava a fazer um bom trabalho, desenhava uns arabescos pastosos com a tinta que nem sequer era muito branca, mas amarelada e brilhante e as paredes pareciam um bolo decorado com demasiado chantilly e já com alguns dias — quer dizer, as paredes metiam nojo. Mas como era quem era, em vez de dizer que aquilo estava mal feito eu estava a tentar compreender.

Au bistrot

Esta noite sonhei com Cioran; foi a primeira vez que aconteceu. Procurava lugar na esplanada de um café ou restaurante ( bistrot ). A esplanada estava vazia, assim como as ruas. Só Cioran, ou Cioran só — talvez seja melhor assim. A esplanada tinha a forma de um triângulo escaleno, escolheu uma mesa no ângulo mais apertado, mas continuava de pé — à espera de quê? Ia falar com ele quando acordei. Poupei-me à banalidade de uma conversa espectacular dentro do sonho mas que se revela parva mal acordamos.

Sonho

Instalaram uma prótese na perna esquerda do meu pai. O médico disse que era a única solução para ele conseguir recuperar alguma da mobilidade que perdeu nos últimos anos. Fui visitá-lo ao hospital. Contou-me que de noite tinha tido um sonho muito bonito. No sonho, corria e saltava como se fosse um miúdo outra vez.

Ângulo apertado

Sonhei que alguém me pedia um conselho, já não me lembro bem do que se tratava, respondi que devia procurar as cores mais deslumbrantes para além da escuridão — qualquer coisa desse género. Só de manhã é que percebi que a minha resposta era igual às mãos vazias do pároco de Ambricourt.

Ferro-velho

Esta noite sonhei que fui ao cinema ver um filme de Pedro Costa. Como é habitual nos sonhos, era tudo pouco credível e montado às três pancadas: cheguei atrasada à sessão, sentei-me na última fila, a sala parecia um armazém abandonado (influência de Desnos?) com sofás desconchavados em vez de cadeiras, discuti com um tipo qualquer já não sei porquê.  Só me lembro vagamente de um ou dois planos do filme (por precaução, o sonho eclipsou o resto), mas pela quantidade de luz aquilo não parecia nada um trabalho de Pedro Costa. A única coisa real — quer dizer: que transmite alguma linha de pensamento material — aconteceu no fim. Quando dei por mim estava a conversar com Pedro Costa; não dissemos nada sobre o filme nem sobre cinema, falámos sobre ferro-velho.

Ninguém responde

Na frutaria, dois ou três clientes escolhem, em silêncio, laranjas, maçãs ou dióspiros. De repente, uma mulher entra e pergunta em voz alta: «Ontem à noite, dormiram bem?» É uma mulher pequena, de uns setenta anos. Repete a pergunta, muito séria, plantada no meio da loja. Ninguém responde. Gostava de conseguir responder, mas não sei o que dizer. Talvez esteja simplesmente a sonhar que estou acordado.