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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2019

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.

A arquitectura de “Vitalina Varela” é sem arquitectos; oscila entra Jorge Luis Borges e brutalismo orgânico (ver edifício da igreja).

Tudo se esclarecia — vale e serra

Chove muito, a água corre nas ruas como um riacho. Mas não está frio. Nem há vento. As pessoas estão mais caladas e mais bonitas — têm sono. As mulheres trazem molhos de crisântemos nos braços para o dia dos mortos. Sem saber, a cidade prepara-se para receber Vitalina Varela.

uma arte de vagabundos superiores

Que respeito pelos objectos. Cada um tem beleza própria porque é «único», possui o insubstituível. Mas não se trata de arte social, a arte de Giacometti, só por ele estabelecer laços sociais entre objectos – o homem e as suas secreções –, será antes uma arte de vagabundos superiores, a tal ponto puros que apenas o reconhecimento da solidão de cada ser e de cada objecto os uniria. «Estou só, parece dizer-nos o objecto, cativo de uma necessidade contra a qual nada podeis. Se não fosse o que sou, seria indestrutível. Sendo o que sou, e sem reservas, a minha solidão reconhece a vossa.» Jean Genet, "O Estúdio de Alberto Giacometti", tradução de Paulo Costa Domingos, Assírio & Alvim, março de 1988.

não fluida, antes pelo contrário, muito dura

Se pronunciei atrás «… aos mortos» foi afinal para que essa multidão anónima veja agora tudo quanto não pôde ver em vida, agarrada que estava aos ossos. Pois é preciso uma arte – não fluida, antes pelo contrário, muito dura – dotada do estranho poder de penetrar os domínios da morte, capaz de se infiltrar pelas paredes porosas do reino das sombras. A injustiça – e a nossa dor – seriam demasiado grandes se um único nessa multidão fosse impedido do contacto com alguém entre nós, e bem pobre será nosso triunfo se apenas nos conduz a uma glória futura. A obra de Giacometti transmite ao povo dos mortos o conhecimento da solidão de todos os seres e de todas as coisas, solidão, nossa mais certa glória. (…) Solidão, como eu a entendo, não designa estatuto de miséria mas secreta soberania, nem profunda incomunicabilidade mas conhecimento mais ou menos obscuro de uma singularidade intocável. Jean Genet, "O Estúdio de Alberto Giacometti", tradução de Paulo Costa Domingos, Assírio

Bairro

Ontem, na antestreia de «Vitalina Varela» , no Trindade, não havia uma pessoa negra na plateia. Era uma sala branca, burguesa, vagamente caviar. Depois do filme e das fotos para o instagram, toda a gente saiu para beber um copo, reservar mesa no restaurante, e trocar umas ideias sobre a Vitalina e o Ventura. Eu incluído.

Porto

Recomeçou a chover. As ruas esvaziaram-se de turistas. Desço a Lapa até à Baixa sem me cruzar com praticamente ninguém. De repente, a cidade retoma o tom cinzento, triste, belo. A cidade que, em dias de sol e de turismo, já só existe nas traseiras ou na nossa memória.

Nem te espera no negro crepúsculo uma fera

Antestreia de "Vitalina Varela" de Pedro Costa, com a presença do realizador e seguida de debate com o público, moderado por Daniel Ribas. Hoje, às 19:00, no cinema Trindade.

É veneno!

Os filmes do Pedro Costa dão luta, podemos andar dias, meses, anos, a remoer em certos planos ou até mesmo em pormenores; uma palavra gritada, uma cruz que se apanha do chão. É tudo muito lúgubre, muito rico, muito condensado, muito misterioso. Trabalhamos sobre possibilidades ambíguas. Tentamos construir hipóteses de caminho. Com sorte, descobrimos que o céu é debaixo da terra. Quando Vitalina sobe ao telhado, lembra as mulheres dos filmes Ford — Maureen O’Hara com os cabelos e têmpera do fogo. Essa é a primeira impressão. O reconhecimento de uma ligação dá algum consolo, mas depressa se esvai a segurança. O que o plano tem de vigoroso não é cinéfilo nem alivia. É no sentido contrário, por isso é preciso continuar a procurar mais fundo a origem da inquietação. Talvez a tensão extraordinária dessa imagem venha do método de trabalho, do modo como a câmara responde a Vitalina. Como se todas as questões técnicas — ângulo, enquadramento, luz, sombra, vento — representassem o mesmo des

O que é que isto quer dizer?

Não é fácil escrever sobre “Vitalina Varela”. Mas em vez de debitarem frases imbecis (“Visão arrebatadora e magistral entre o horror e o melodrama, a espiritualidade e o desespero.” / “Um retrato da natureza consumidora do amor e da beleza da solidariedade feminina.”) , talvez fosse preferível os júris dos festivais atribuírem os prémios com um simples agradecimento.

Golpe de raio

Quando escrevi sobre “Vitalina Varela” não consegui dizer nada sobre o plano em que ela sobe ao telhado. Há imagens assim; mais do que significados, têm uma energia que nos deixa a ferver por dentro e sem coragem para dar um passo. Ainda não desisti.
Com a pompa habitual das empresas tecnológicas, a Google anunciou que atingiu a  supremacia quântica . Não é necessário tanto alvoroço por causa de bits que são zeros e uns ao mesmo tempo. Avisem quando o Sycamore conseguir escrever um limerick que nos faça rir.
Na wikipédia há uma série de possibilidades de desambiguação para quântico . Esqueceram-se da poesia: De novo amo e não amo, / Estou doido e não estou doido. Anacreonte , tradução de Frederico Lourenço, "Poesia Grega de Álcman a Teócrito, Cotovia.

A chave do texto

Pensar com as mãos (take 2)

Jerónimo de Sousa é o político que melhor se relaciona com as palavras. Usa-as para exprimir pensamentos e não para exercícios de comunicação. Quando diz:  não sabia fazer uma lei, mas sabia o que era fazer uma greve, ser despedido sem justa causa por motivos político-ideológicos, vir do Sindicato dos Metalúrgicos e da Comissão de Trabalhadores da empresa e falar de liberdade sindical e dos direitos, do valor da Contratação Colectiva e do combate à discriminação salarial das mulheres. Percebemos que os seus pensamentos correspondem a uma prática. Se nos concentramos bastante, conseguimos ver o passo da história. E aquilo a que Godard chama pensar com as mãos?

Observações avulsas sobre a boavista #14

O google maps guarda um mundo ainda recente mas que já não existe. Passo aqui todos os dias. O Hiva Oa (polinesian bar) fechou e foi substituído pelo D’Avenida (Fine Dining & Clubbing). Quando fizeram as obras, cortaram o salgueiro. Fotografia: google maps, abril de 2018.

Observações avulsas sobre a boavista #13

Quase em frente ao baldio, na rua Azevedo Coutinho, há uma empena com três janelas e persianas ao nível do rés-do-chão. Uma empena é uma parede lateral sem aberturas, preparada para receber outro edifício encostado. Também é costume dizer que é uma parede cega, mas esta não, esta é claustrofóbica. Fotografia do google maps, julho de 2014.

Observações avulsas sobre a boavista #12

O caminho de terra batida junto ao muro do edifício Burgo (às vezes pára lá ao fundo uma carrinha para vender qualquer coisa, talvez fruta e legumes). O bairro Bessa Leite com roupa a secar à janela. E o baldio onde agora cresce milho e se estende até ao acesso à VCI. Todo esse espaço corresponde ao território dos cães e coscorões de Tati. Fotografia da google maps, abril de 2018.

Mummlius Spicer

Encostado à janela, examinou as nossas cartas de recomendação com um cuidado extremo. Adivinhava-se-lhe a profissão pela maneira como manuseava os papéis. Os financeiros lêem com mais atenção do que os bibliófilos; conhecem melhor do que estes os inconvenientes que podem resultar de uma leitura demasiado apressada. Bertold Brecht, “ Os negócios do Senhor Júlio César”, tradução de A. Ramos Rosa e Ana Maria Marques de Almeida, Portugália Editora.

Apenas um homem

O título da peça de Shakespeare é «A Tragédia de Júlio César». A companhia , porém, optou por rasurar « A Tragédia de ». O que permanece visível no título é o nome de César: « A Tragédia de Júlio César.» Um nome isolado, solitário, terrivelmente exposto. Um peso descomunal abate-se pois sobre ele, quando na verdade César é apenas mais um homem, um caso, um nome riscado da superfície da história. O que permanece é «A Tragédia», mil vezes repetida, tantas quantas as mulheres e homens que alguma vez puseram os pés neste mundo. Tragédia é sinónimo de César, Cássio, Bruto e de todos os nomes conhecidos e desconhecidos, de «países por nascer e línguas ainda ignoradas». E é exactamente por isso que esta opção é tão notável. As palavras que se tenta esconder sob um risco ou o corte de uma lâmina gritam mais do que quaisquer outras. Esconder é tentar mostrar melhor. César é apenas um homem, a tragédia é de todos.
Cuidado. Piso escorregadio . Podia ser o título de um manual de filosofia. Se os filósofos frequentassem superfícies comerciais .

Influenciadores do século XX

Economia circular

Em  Oráculo Manual y Arte de Prudencia,  o escritor jesuíta Baltasar Gracián aperfeiçoou o que chamou de agudeza : um tipo de dito de espírito em que o máximo de significado é compactado no mínimo de forma ou estilo.  Brian Dillon, Essayism: On Form, Feeling, and Nonfiction   The Art of Wordly Wisdom: A Pocket Oracle chegou a vender mais de cento e cinquenta mil exemplares ao ser apresentado como um manual de auto-ajuda para executivos. Em 1992, permaneceu dezoito semanas (duas nas primeiras posições) na lista dos mais vendidos, segundo o jornal  The Washington Post .  Wikipédia

Fuga

O vento frio lança os ramos do plátano contra o vidro. A velha árvore parece querer abrigar-se, folha a folha, dentro do escritório. Mas talvez não seja isso. Talvez seja o contrário: um convite desesperado para sairmos e escaparmos de vez ao triste clima temperado dos gabinetes.

Humano, demasiado humano.

Cioran já andava pelos setenta anos quando se apaixonou por uma jovem professora de filosofia. Friedgard Thoma escreveu-lhe uma carta elogiosa comparando-o a Büchner e Walser. Depois enviou-lhe uma fotografia. Começaram a trocar correspondência. Encontrei  aqui  parte da história e este excerto:  “Consigo gostaria de falar sobre Lenz na cama. Lástima que não viva sozinha e aqui perto. A alegria de a ter conhecido é uma prova e também um golpe. Gostaria de terminar com um aforismo irónico, mas não posso." Não me interessa saber mais sobre o devaneio amoroso. Cioran entrou na filosofia pelo curral. Um afilhado de Dionísio que praticou a sátira e a ironia como poucos. Usou-as para defesa e ataque; em relação às coisas grandes, às coisas pequenas e a si mesmo. Custa-me vê-lo velho, incapaz de escrever um aforismo irónico quando mais precisava. Demasiado preso a si, sem qualquer ponto de fuga, sem riso, sem alívio. Como todos nós. Como Minetti com os atilhos das ceroulas desapertados

Fora de água

Todos os dias, atravesso o rio para trabalhar. Que peixes, que fantasmas, que monstros se escondem sob as águas? Toda a escrita é uma tentativa de decifração. Mil vezes empreendida, mil vezes falhada. Mas é a única maneira de não nos afundarmos no vazio. De continuarmos a respirar fora de água.

Encontros com Paul Celan

Précis de décomposition (Breviário de Decomposição), o meu primeiro livro escrito em francês, foi publicado pela Gallimard em 1949. Já tinha publicado cinco obras em romeno. Cheguei a Paris em 1937 com uma bolsa do Instituto Francês de Bucareste e nunca mais daqui saí. Mas só em 1947 é que pensei desistir da minha língua nativa. Foi uma decisão repentina. Mudar de idioma aos 37 anos não é tarefa fácil. Na verdade, é um martírio, mas um martírio frutífero, uma aventura que dá sentido ao ser (e como ele precisa disso!). Recomendo a qualquer pessoa que esteja a passar por uma grande depressão lançar-se à conquista de um idioma estrangeiro, para ganhar energias, para se renovar completamente através da Palavra. Sem o meu impulso para conquistar o Francês, podia ter-me suicidado. Uma língua é um continente, um universo, e quem dele se apropria é um conquistador. Mas vamos ao que interessa ...  A tradução alemã do Précis revelou-se difícil. Rowohlt, o editor, contratou uma mulher não q

24-6-947

Dedicatória numa edição de «Conversações com Goethe» , de Eckermann (Livraria Tavares Martins, 1947), que comprei esta manhã na Vandoma: Longe do bulício mundano/ Na paz tranquila do lar/ Será um bom companheiro/ Para ler e meditar.// Oferece a tua mulherzinha,/ Guimarães, 24-6-947. Além da dedicatória, o livro não tem outras marcas de uso. Parece nunca ter sido lido.

Os peixes sonhadores

As postas de salmão já acabaram; a bancada está agora preenchida com as cabeças dos peixes: gordas, em linha, viradas para cima. Reconheço na imagem qualquer coisa de religioso e infantil. Mas é defeito do meu olhar, se fosse verdade ouvir-se-ia música.

Influenciadores do século XX

I don’t quite agree with Marina Harss . Actually it’s the other way around: if you’ve never heard of the Swiss turn-of-the-twentieth-century novelist and short-story writer Robert Walser, you’re utterly  alone.

Dezoito

O meu filho faz hoje dezoito anos. Quando eu tinha dezoito, o meu pai, que teria mais ou menos a idade que tenho agora, repetia vezes sem conta, como uma litania, que «tudo passa num ápice». Lembro-me de Myrtle, a actriz de «Noite de Estreia», de John Cassavetes, e da luta sem tréguas que ela trava com o papel que todos insistem em lhe atribuir: o de uma mulher que perdeu irremediavelmente a juventude. Uma luta cujo resultado será sempre a loucura ou a solidão. Em todo o caso, uma derrota. Ela sabe isso, todos sabemos isso, mas o instinto de sobrevivência força-nos a resistir. O meu filho faz hoje 18 anos. Sim, tudo passou num ápice. É como se recebêssemos uma carta que achamos que não nos pertence, apesar de apresentar no sobrescrito, em letras garrafais, o nosso nome e a nossa morada. É isso, não é, pai?

Influenciadores do século XX

A stark beauty all it’s own

Ando a escrever um texto sobre “Vitalina Varela”. É um trabalho lento, feito à custa da memória e da intuição. Tem tudo para dar torto, o que até nem é mau — pelo menos assemelha-se à arquitectura do bairro. Seguindo os meus próprios conselhos: uso adjectivos com moderação, evito a palavra chiaroscuro,  tento não cair nas comparações com pintores renascentistas. Não consigo, porém, escapar a ligações mais insólitas.

Jogo

De quatro em quatro anos, a um domingo à noite, os comentadores de futebol, num gesto de humildade democrática, cedem o estúdio e a antena aos “politólogos”, para que estes possam analisar as incidências da jornada eleitoral: os vencedores e os vencidos, as tácticas, as jogadas estudadas, as faltas, o desempenho dos presidentes e das oposições internas, mas também o ambiente de balneário nas equipas e, sobretudo, o problema crónico da ausência de adeptos nos locais de jogo.

Depois verá-se

Estas eleições legislativas têm uma particularidade interessante: aos indecisos habituais que nem sabem se vão votar nem em quem, juntam-se agora os indecisos calculistas que seguem as sondagens diárias. São parecidos com os tipos que jogam no placard mas têm mais instrução.

Algoritmo

Não precisamos mais escolher, porque o “algoritmo” escolhe por nós. Nas redes sociais, bots fazem todo um trabalho relacionado ao ódio. No limite, não precisaríamos sequer odiar alguém (para falar de um afeto da moda), porque um “robô” odeia por nós.  Marcia Tiburi.

Influenciadores do século XX

Revolução

— A frase que Alberte diz em  Le Diable probablement : "Não haverá revolução. É demasiado tarde." ( Il n'y aura pas de révolution. C'est trop tard .) pode ser substituída por: "Não houve revolução. É demasiado cedo." ( Il n'y a pas eu de révolution. C'est trop tôt .) Basta rodar um bocadinho o eixo do tempo. — Não num filme de Bresson. — Não. Apenas fora do cinema.

Iguana

Nos últimos dias, a cidade foi tomada por uma vaga de cartazes publicitários a anunciar “seguros de vida em caso de doença oncológica”. Parece ser o novo produto estrela das seguradoras. O seguro não é para quem tem cancro, como é óbvio, mas para quem receia a doença. Penso naquela iguana que aparece e desaparece em  “Isto não é um filme” , de Jafar Panahi. Aquele bicho lento, viscoso, grotesco, ancestral, que observa tudo o que se passa à sua volta. Não é apenas uma metáfora do regime policial do Irão, que vigia e restringe a liberdade do realizador, mas é a imagem de todas as ameaças, reais ou imaginárias, que nos perseguem a todo o momento e de todos os lados. Dentro e fora de nós.

Je rentre à la maison

Na montra da loja de molduras da Rua Antero de Quental, descubro uma pequena reprodução de “The Singing Butler”. Detenho-me a olhar e sinto-me um Michel Piccoli de imitação, longe dos boulevards de Paris e com umas sapatilhas baratas.