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A mostrar mensagens com a etiqueta Manchas

O casaco de Vitalina

Há uma parte de mim — talvez a mais interessante — que se prende nas coisas menores do cinema. Ora são calças largas, ora é uma nódoa numa blusa. Nada que dê prestígio a uma carreira, é certo, mas estes desvios fascinam-me e divertem-me. Por exemplo, e continuando nas roupas, li ou ouvi, já não me lembro onde, que foi muito complicado eliminar o som desagradável que o casaco de Vitalina provocava quando ela se mexia. Uma questão técnica, claro. Mas eu acho que esse casaco que Vitalina teimava em usar era uma forma de obrigar o cinema a a pôr-se no seu lugar (menos vaidade e mais trabalho) — um pouco como as provocações de Vanda. Coisas de mulheres.

Beber à morte

Estão sentados num café fechado ao público*. Sangok diz ao realizador que os seus filmes parecem contos. Está a falar com Jaewon e também com Hong Sang-Soo. Aceito e gosto desta interpretação: a mancha de molho na blusa, por exemplo, tem a economia, o peso e a ambiguidade que existem nos melhores contos e nos fazem tremer — aquilo a que podemos chamar augúrios narrativos. Mas a analogia que me parece mais justa é menos conceptual e mais orgânica; relaciona-se com a luz e as cores fortes do filme, com os movimentos livres das personagens (cenografia e coreografia) e apreendi-a há três anos num romance de Iris Murdoch (para continuar com os pés enterrados na literatura). Assim, roubando as palavras finais de uma das personagens d’ O Sino , posso dizer que em Perante o teu rosto vi Sangok virar-se toda para a vida e para a felicidade, como uma planta robusta se vira para o sol, e assimilar tudo o que encontrava pelo caminho . Que esta energia surja nos cinco ou seis meses (o tempo de r...

Cinéma vérité

Um filme com tantas coisas interessantes — o mar, livros, pernas, vasos de porcelana,... — e fui logo reparar nas manchas na camisa azul de Daniel. Depois da nódoa de gordura nas calças de Pierre Wesselrin  e dos salpicos de tinta nos jeans de Chloé , parece-me que há um padrão que merece ser investigado — para além da moral, ou imanente à moral?  Por outro lado, isto é, se invertermos a perspectiva, talvez as manchas digam mais sobre quem as descobre do que quem as exibe? Sim e também pode ser o princípio de um novo tipo de crítica cinematográfica. Allons-y!

Manchas de tinta

Dava para fazer um desfile com as roupas que aparecem em L’ amour l’après-midi : as camisolas de gola alta de Frédéric, a camisa axadrezada que a empregada o convence a comprar (fica-lhe bem), os jeans e os variados casacos de Chloé, o vestidinho burguês de Hélène, o casaco verde de Martine, o fato azul claro que Chloé veste para impressionar Frédéric ou os vestidos camiseiros que experimenta na loja onde trabalha, os conjuntos das mulheres que se cruzam com Frédéric na rua ou no sonho, etc., etc..  Eric Rohmer preocupa-se tanto com o guarda-roupa (percebe-se bem o título do texto que ele escreveu sobre O Rio , de Jean Renoir) que acrescenta pequenos defeitos na roupa de Chloé: o casaco vermelho forrado a pelo descosido no ombro direito e umas manchas de tinta na perna esquerda dos jeans desbotados. Quase não se vêem, mas parece que é aí, mesmo à superfície, que se esconde o segredo inefável de Chloé (ou de Zouzou, vá-se lá saber).

Metamorfose

Já passa das duas da manhã. Ainda estou a remoer O Signo do Leão , a primeira longa-metragem de Éric Rohmer, que fomos ver ao Campo Alegre. Claro que não é a nódoa de gordura nas calças de Pierre Wesselrin que determina a sua «queda». Mas essa espécie de mancha original, impossível de limpar ou disfarçar, incrusta-se de tal maneira no personagem que, a certa altura, confunde-se com ele. Pierre Wesselrin transforma-se numa mancha indesejável, um ponto sujo na paisagem burguesa de Paris.    

Isto dito, continuar

Quando nos damos conta, é sempre demasiado tarde. Adiamos a carta, a mensagem, o telefonema, o encontro, hoje, amanhã, depois de amanhã, uma e outra vez. Por pudor, por incúria, por preguiça, por pura cobardia. Há mil razões para adiar um encontro e todas estão erradas. Não há desculpa. E, no entanto, deixamos o tempo construir a sua diabólica obra. A negra e lenta teia. E assobiamos para o lado, ou melhor, para dentro. Eu devia ter ligado ao Luís Mourão. Devia ter escrito. Devia ter ido ao seu encontro. Agora é demasiado tarde. Restam as palavras e os livros, e é tão pouco. Resta-me a memória de alguns encontros, tão poucos, mas sempre inesquecíveis, a pretexto dos livros. Era um prazer ouvir o Luís Mourão falar dos livros e dos autores que lhe interessavam. Como os grandes mestres, tinha desenvolvido uma espécie de exercício de encantamento para seduzir o auditório. Do fundo de um bolso, retirava a chave e apresentava-a com prazer ao público. Depois, com um gesto largo e lento abri...