Saio cedo, antes do trabalho, para ir à frutaria. Na rua, uma fila interminável de carros estende-se a perder de vista, ao longo de Antero de Quental. Dezenas de latas paradas, guinchando, roncando, zunindo, tossindo, bramindo, ensurdecendo, como uma fábrica infernal de nada. Aqui e ali, ergue-se um autocarro vazio, como um elefante morto e empalhado. E é tudo. Ah, o perfume primaveril da cidade pós-desconfinamento!
Pausa de almoço. Desligo o candeeiro da secretária e saio para comprar pão. Lá fora, o ar está espantosamente quente. Cheira a sol, pólen e Primavera. Avanço pelo passeio até à padaria. Os meus movimentos devem lembrar os de um macaco acorrentado que acabaram de libertar.
A progressão de um vírus implacável sobre fundo primaveril (folhas, flores, pássaros) Ah, isto é o que Jean Renoir dizia: "Por que raio é que, numa cena de amor em que o actor diz à actriz je t'aime a música também há-de dizer je t'aime ? Porque é que a música não diz estou-me nas tintas para ti?" O vírus é a música.