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Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta fantasma de Godard
— Vá avozinho, despacha-te! Tens de ir para a cama. Vá lá, come a sopa. Vá, diz a tua frase: «Em princípio, os pobres têm razão.»

O demiurgo gentil

— O que é uma catástrofe?  Quando Paul Grivas aproxima as filmagens de Filme Socialismo ao naufrágio do Costa Concordia, ficamos desnorteados: a ficção é palpável e, em contrapartida, a realidade transforma-se numa coisa tremendamente instável. Abriu-se uma brecha entre as duas que provoca o pensamento e, quem sabe, outras coisas.  Mas para mim o ponto alto de Filme Catástrofe é o retrato gentil de Godard a trabalhar (cachecol vermelho, dois charutos no bolso do casaco). Fala lentamente e em voz baixa, diz uma piada, ajeita o livro, faz uma festa, corrige o ritmo, repete a claquete com as mãos. São os mesmos gestos do amor, não necessariamente a mesma velocidade . Imagens que podemos guardar para não nos sentirmos sozinhos na noite da noite . Procuro uma frase definitiva, mas não a encontro. Então, continuo.

— Qu’est-ce que c’est que cette histoire ?

Fui acompanhar um amigo à inauguração da exposição dedicada à Jean-Luc Godard. Conhecendo Serralves, as minhas expectativas já eram altas, mas a experiência superou tudo. Parecia uma cena saída dos livros de Thomas Bernhard: perfumes, penachos e vaidade generalizada. Mas nem me vou deter nisso, basta reler o Bernhard para compreender a coreografia cultural — é igual em todo o lado. Por isso, em vez de crónica social, resolvi dedicar-me à gastronómica: o jantar em si mesmo. Foi no andar superior: uma sala ao fundo para as pessoas mais distintas e a da entrada para as restantes e serviço de copa. As mesas estavam atulhadas de velas como se fosse um velório (do cinema?) Os empregados moviam-se concentrados e nervosos (creio que havia alguém a supervisioná-los) para nos servirem sem serem notados — trabalhadores invisíveis é o objectivo das instituições culturais. Os nomes dos convidados estavam escritos num papelinho para não haver dúvidas do nosso lugar nem tentativas de subverter a...

Comme un dialogue d’amoureux

Quero fazer (!) um livro composto unicamente de fragmentos, notas, aforismos. Pode ser um erro, mas essa fórmula está mais próxima da minha natureza, do meu gosto pelo inacabado, diga-se, do que os ensaios elaborados onde é preciso manter uma aparência de rigor às custas da verdade interna.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.
Destruir, diz ele .

Rue du Temple

Nunca enterro completamente os mortos. De vez em quando ainda vou a Rolle visitar Godard.

Selfie XIV

Os protocolos oficiais aborrecem-me, mas gosto de criar pequenos protocolos pessoais que passam despercebidos. Por isso e apesar de não estar frio, vou levar o meu cachecol vermelho para a sessão de Kommunisten . É um gesto mais ou menos entre o cepticismo de Godard e John Wayne num filme do Ford. Cada um segue os modelos que pode.

Epitáfio

Perdi-me em Lisboa à procura do Palácio Sinel de Cordes. Fartei-me de andar e quando subi as escadas e entrei na sala 1. Remakes estava exausta. Talvez o cansaço tenha influenciado o que me aconteceu: mal me sentei e olhei para as telas e ouvi a voz de Godard parecia que o coração ia saltar e não consegui segurar as lágrimas. — Caramba, isto é um Epitáfio! O ritmo das imagens e sobreposições, as telas ondulantes, os sons, os pequenos candeeiros de luz ténue, os livros, o sofá, o tapete, os pedaços de textos, as reproduções dos quadros, os cordéis vermelhos e a escuridão. A escuridão.  La guerre est là .   Fabrice Aragno transformou   Le livre d’image num lago profundo onde não paramos de cair. Estava sozinha, chorei de sala em sala. Passei mais de duas horas no velho Palácio arruinado e no jardim, mas foi pouco. Precisava de lá voltar. De noite, como me disse o Andy.  Exposição: “Éloge de l’image – Le Livre d’image”, Jean-Luc Godard  (1. Remakes, 2. Les Soirées...
«Maria levantou-se e partiu apressadamente» é um bom princípio para uma história, de preferência de protesto. Pode ser assim:

Il s’agit bien de cela

Nunca deixo de me espantar com a capacidade de Jean-Luc Godard pensar o cinema por dentro. Em 1981, aproveitou uma passagem pelos estúdios Zoetrope para filmar Une bonne à tout faire . À primeira vista parece uma espécie de ensaio de Passion .  Mas com Godard as coisas nunca são o que parecem, e passado algum tempo ocorreu-me que também podia ser um aforismo cinematográfico , o cinema a dizer mais uma vez a frase do carteirista: Pour aller jusqu'à toi, quel drôle de chemin il m'a fallu prendre . Mas, a quem?

Fin de partie

Uma das coisas que mais me impressiona em Godard é a forma como ele se dedica às pessoas e às ideias, como decifra palavras, imagens, gestos, sons, a própria alma; como baralha tudo e depois afasta-se a alta velocidade, ultrapassando os objectos amados. Parece um cometa ou uma máquina inteligentíssima e selvagem feita de luz, sombra, mãos. Também foi assim na morte: antecipou-se a Federer, deixou para trás o estuporado do Cioran. Ficamos tão desamparados.
 
Quando estamos a ver o filme já nos apercebemos disso, não passa ainda de uma coisa fraca, como se os nossos olhos fossem os de Agnès Varda captando imagens desfocadas e com significados indefinidos. Na verdade, a alegria que Varda e JR levam aos "lugares" por onde passam e aos rostos das pessoas está ligado a uma tristeza que é própria da fotografia e da morte (a palavra mais adequada é "nostalgia" trazendo consigo o rasto de viagem e dor, a falta de algo), uma tristeza que se vai prolongar mais no tempo, fora da sala de cinema. "Olhares lugares" é ao mesmo tempo essa viagem literalmente a bordo de uma carrinha mascarada de máquina fotográfica e a tentativa de encontrar qualquer coisa que falta num lugar e vencer essa falha: os mineiros que já morreram, as mulheres dos estivadores de corpo inteiro nos contendores empilhados, uma cabra com cornos porque é da natureza das cabras terem cornos, a rapariga com a sombrinha, os peixes numa cisterna, os pés de...