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Ultrapassou os influenciadores, a pandemia e a quarentena; ultrapassou até o venerável Ludwig Wittgenstein. Cioran ( ah, cet enfoiré ! ) alastra neste blogue como um vírus.

"Todo signo sozinho parece morto"

No sábado fui à Biblioteca entregar os livros . Deixei o Wittgenstein — perigoso, intocável — em cima do monte das devoluções. Vai entrar em quarentena. Por coincidência, "Ludwig Wittgenstein" e "Quarentena" têm o mesmo número de entradas no blogue (30). Les jeux sont faits .

Corredor

O minúsculo corredor de casa. Dois ou três passos são suficientes para o percorrer de um extremo ao outro. Até há pouco tempo um simples espaço de passagem, meio despido e cinzento. Agora, o coração da casa. A grande artéria urbana que liga a cozinha e a sala, com os seus néons, montras e bugigangas.

Vista de mar

Ontem, parou de chover. O céu adquiriu uma pureza extraordinária, de um azul ofuscante, varrido pela espuma de uma ou outra nuvem. Bandos de gaivotas pairam no ar, como pequenas ideias, distantes e vagas. É a nossa «vista de mar» sem praia.

Fantasia submarina

Leio em Truffaut que os primeiros filmes de Rossellini foram documentários sobre peixes. Mordo o isco e encontro Fantasia submarina , uma curta-metragem, de 1940, que não é bem um documentário, mas uma fábula com animais marinhos. Rossellini construiu um aquário em casa para filmar o oceano. Segundo parece, o realizador e o director de fotografia, Rodolfo Lombardi, usaram vários peixes mortos, que animaram com truques engenhosos para dar vida à narrativa. Uma mentira para dizer a verdade. Hoje, encerrados nos nossos aquários de peixes mortos, falta-nos o sabor benévolo da mentira. Só há verdade.

Fronteira

O CoVid-19 deslocou as políticas da fronteira que tinham lugar no território nacional ou no superterritório europeu em direcção ao nível do corpo individual. O corpo, o teu corpo individual, como espaço vivo e como trama de poder, como centro de produção e consumo de energia, converteu-se no novo território sobre o qual as agressivas políticas de fronteira que temos vindo a desenhar e a testar há vários anos se expressam agora sob a forma de barreira e de guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica passou das costas marítimas da Grécia para a porta do domicílio privado. Lesbos começa agora na porta de tua casa. E a fronteira não pára de te cercar, de se aproximar cada vez mais do teu corpo. Calais explode agora na tua cara. A nova fronteira é a máscara facial. O ar que respiras deve ser só teu. A nova fronteira é a tua epiderme. A nova Lampedusa é a tua pele. Paul B. Preciado, no jornal Punkto.

Nota prévia

Todos os livros que um dia se escreverem sobre este período de confinamento poderão usar, como nota prévia, este parágrafo de Fran Ross : «Neste livro não existe estado do tempo propriamente dito. Numa ou noutra ocasião, fazem-se vagas alusões às condições meteorológicas. O leitor deverá, ao longo da narrativa, imaginar o estado do tempo que mais lhe agradar. O Verão é o que faz mais sentido num livro desta extensão. Assim, não é preciso gastar páginas e páginas a descrever pessoas a despir e a vestir sobretudos.»

A ilha

Há mais de um mês que, após um estranho naufrágio, uma onda vigorosa nos lançou para esta ilha. A ilha é pequena, plana e praticamente não tem segredos. Já percorremos mil vezes as costas e o interior. Nada de novo. Neste momento, já não sei qual dos dois é Crusoe ou Sexta-feira. Talvez sejamos ambos ao mesmo tempo. Às vezes penso que não existe uma maneira de sair daqui e que vamos ter de viver para sempre com os nossos machados, os nossos papagaios e as nossas pequenas provisões de latas de conserva. E o pior é que sinto um vago e secretíssimo prazer nisso.

The weather in Wrocław is almost summery

From my window, I can see a white mulberry, a tree I’m fascinated by—one of the reasons I decided to live where I live. The mulberry is a generous plant—all spring and all summer it offers dozens of avian families its sweet and healthful fruits. Right now, the mulberry hasn’t got back its leaves, and so I see a stretch of quiet street, rarely traversed by people on their way to the park. The weather in Wrocław is almost summery: a blinding sun, blue sky, clean air. Today, as I was walking my dog, I saw two magpies chasing an owl from their nest. At a remove of just a couple of feet, the owl and I gazed into each other’s eyes. Animals, too, seem to be waiting expectantly, wondering what’s going to happen next. (...) By Olga Tokarczuk, The New Yorker, April 8, 2020

Ficção

O vírus tirou o tapete aos artistas, os grandes criadores de fantasmas. O que escrever, o que filmar, o que pintar, quando a ficção se transformou literalmente na realidade? Há um mês, a ideia de um mundo suspenso, com as ruas desertas, as escolas vazias, lojas e cafés fechados, milhões de pessoas em prisão domiciliária, funerais sem familiares, há um mês, dizia, todas estas ideias podiam ser pistas para uma ficção meio distópica. Hoje, no momento em que escrevo, a distopia é pensar no mundo em que vivemos até aqui. A realidade dita «normal» é agora uma ameaça à nossa condição. Uma esplanada na Baixa, alguns amigos, algumas cervejas, sem luvas e sem máscaras, eis a distopia dos nossos dias.

Litania

Escrevo porque não quero morrer. A escrita é uma maneira duvidosa de enganar a morte, mas é a única que conheço. Quando não escrevo, leio. O sentido é o mesmo: distrair a morte com palavras, jogos, histórias. Ler e escrever são sinónimos. Em ambos os casos, actua a imaginação com todo o seu poder de fogo. Claro que isto não passa de uma bagatela, mil vezes repetida por toda a espécie de aprendizes de feiticeiro. Mas talvez essa ideia vulgar de que a escrita ajuda a adiar a morte nunca tenha estado tão próxima da verdade mais íntima do tempo e das coisas. Ao escrever isto, uma e outra vez, como uma litania, estou a viver mais umas linhas, um parágrafo.

Relógios

Dir-se-ia que o domingo não passou de um sonho. Sem horas, sem minutos. Um sonho de paredes brancas e relógios sem ponteiros, como no pesadelo que anuncia ao Prof. Isak Borg a sua própria morte.

Diário da guerra aos porcos

O livro de Bioy Casares pode resumir-se mais ou menos da seguinte maneira: uma manhã, os velhos e reformados de Buenos Aires descobrem que se transformaram num alvo a abater. Grupos de jovens percorrem as ruas e os lugares da cidade à caça de idosos, considerados inúteis e um peso para a sociedade. Começa então uma cega e bárbara «guerra aos porcos». A primeira vítima é o velho vendedor de jornais, Don Manuel, brutalmente assassinado ainda no capítulo inaugural do livro. Eliminar os velhos e os jornais. Eis o programa perfeito para começar um suicídio colectivo. Bioy Casares morreu vinte e um anos antes da grande pandemia. Mas não dá ponto sem nó.

Aviso

O espectáculo desenrola-se no interior de uma estrutura fechada. Não é aconselhável a pessoas que sofrem de claustrofobia ou transtorno de ansiedade. Ao aceder à estrutura, os espectadores terão obrigatoriamente que desinfectar as mãos e depositar todos os seus pertences (sapatos, casacos, sacos, carteiras, mochilas, etc.) no bengaleiro. O espectáculo é falado numa língua misteriosa e sem legendas em português.

Endgame

Ao redor do bunker alternam-se dia e noite, sol e chuva, vivos e mortos, infectados e recuperados. Do lado de dentro, somos dois: Hamm e Clov. Tu és Hamm e eu sou Clov. Ou tu és Clov e eu sou Hamm. É a minha vez de jogar. Ou é a tua. Já não sei. Não interessa. Cada vez conto pior esta história.

Há pouco, ouvi na rádio um «elemento das autoridades» dizer que a resignação e o sacrifício são coisas a que «muitos portugueses» já estão habituados durante o período pascal. A «esses portugueses» não faltará a fé para suportarem melhor o confinamento. Senti-me agoniado.

Estado do tempo dentro de casa

Céu limpo, passando a nublado a partir do início da tarde, com possibilidade de ocorrência de aguaceiros e, quem sabe, trovoadas. Ondas de noroeste com um metro, talvez mais. Temperatura da água do mar: 16ºC, mais coisa, menos coisa. O vento, para já, sopra fraco de um dos pontos cardeais, mas talvez mude. Acentuado arrefecimento nocturno.