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A mostrar mensagens com a etiqueta Robert Walser

Walser e o Cinema (uma aproximação breve e provisória)

Tenho de escrever um texto sobre as relações – ou possibilidades de relações – entre Robert Walser e o cinema. A minha primeira frase foi assertiva: (pela sua exuberância e quebra de regras) os textos de Walser não são propícios a adaptações; quanto às idas aos cinemas-cabaret na Berlim imoral, alinho. Branca de Neve abre e logo a seguir fecha o único caminho que consigo ver (em termos de estrelas curriculares, é um dos melhores filmes falhados que conheço).  Mas ontem de manhã, na praia, tive uma ideia para um filme (curto, curtíssimo) que envolve Walser.  Hoje voltei à mesma praia e fechei a planificação – até vi o genérico. Ficou tudo azul e verde diante dos meus olhos . Oh!

Eu sou uma colher no parapeito da janela

[Breve estudo de literatura comparada] John Fante acelera a capacidade de levar tudo pela frente em  Estrada para Los Angeles*:  agora são dois (e um deles, completamente destravado) a escrever dentro do livro — é o chamado efeito estéreo literário.  «Elas tinham-me deixado um bilhete em cima da mesa. Dizia que tinham ido a casa do tio Frank e que eu tinha comida na despensa para o pequeno-almoço. Decidi ir comer ao Sítio do Jim, pois ainda me sobrava algum dinheiro. Atravessei o recreio da escola que ficava do outro lado da rua e pus-me a caminho do Sítio do Jim. Pedi uns ovos com fiambre. Enquanto comia, o Jim ia falando.  – Tu fartas-te de ler – disse ele. – Já tentaste escrever um livro?  Foi o suficiente. Daí em diante, eu queria ser escritor.  – Estou a escrever um livro neste preciso momento – disse eu.  Ele quis saber que tipo de livro.  A minha prosa não é para vender – disse-lhe eu. – Eu escrevo para a posteridade.  – Não sabia – di...

Prestar um favor aos ricos

Sou um vendedor nato: galante, pressuroso, cortês, veloz, lacónico, lesto a decidir, exímio nos cálculos, atento e honesto, mas não honesto ao ponto da estupidez, como talvez possa parecer. Sei baixar os preços quando tenho à minha frente um estudante que não tem onde cair morto e sei subir os preços para assim prestar um favor aos ricos, de quem apenas posso supor que por vezes não sabem o que fazer ao dinheiro. Robert Walser, Os Irmãos Tanner . Tradução de Isabel Castro Silva

Galochas e buraquinhos nas luvas

[Breve estudo de literatura comparada] Por razões de trabalho, o Rui anda a ler Robert Walser de uma ponta à outra. No sentido inverso, isto é, para festejar o fim do trabalho assalariado, resolvi atirar-me de novo a John Fante.  Quando o li pela primeira vez, achei que tinha semelhanças com Walser (Fante ou Bandini?), mas nunca estudei o assunto – nem sempre se deve aprofundar as nossas intuições, pois claro! Agora as relações surgem por iniciativa própria: os objectos mais banais ganham vida própria, movimento, diminutivos; a alegria alastra como uma névoa. (Ah, deve ser o efeito da praia atlântica, da areia, do vento, da liberdade.) Provas materiais: «Rosa, a presidente da Sociedade do Santo Nome, a menina dos olhos de toda a gente, cada vez mais próxima, caminhando sobre as pequenas galochas que pareciam dançar de alegria, como se a amassem também.» «Num dos bolsos laterais encontrou um par de pequenas luvas. Estavam bastante gastas, com buracos na ponta do dedos. Oh, que lindo...

Deixa lá isso

A certa altura, a Branca de Neve exige ao Príncipe que pare com a sua empolada tagarelice e as suas intermináveis promessas de fidelidade: «Porque falas assim sem parar?» Se ele estivesse efectivamente rendido aos encantos da donzela, não precisava de taramelar «como uma cascata sobre o silêncio». Só a infidelidade, diz ela, «palra tão depressa». O Príncipe, lapidar, responde: «Deixa lá isso!» Na voz de um bom actor, é das frases mais desconcertantes e engraçadas do dramalhete de Robert Walser.

Playtime

Parece-me agora óbvio que Monsieur Hulot, de Playtime , é um descendente directo das personagens desarrumadas de Robert Walser. O mundo moderno, organizado como um frio relógio suíço, é para todas estas figuras um imenso parque de diversões. Motivo de prazer e angústia.

Glarner Birnbrot

Nos seus diários, Max Frisch escreve que Lenine e Robert Walser conversaram apenas uma vez. Foi em 1917, na Spiegelgasse, em Zurique, em frente a uma pastelaria. Dias antes da Revolução e do regresso de Lenine à Rússia. Walser fez-lhe uma única pergunta: «Também gostas de Glarner Birnbrot ?» Frisch garante que a história é verdadeira.

É para nós um enigma

O salteador afastou as abas da camisa e o referido membro da associação viu o que nunca esperaria ser obrigado a ver e empalideceu. (...) Mas que terá o salteador mostrado ao membro da associação? Não fazemos a menor ideia. Robert Walser, O salteador . Tradução de Leopoldina Almeida.

Igreja

Roberto Calasso cita em K. um comentário de Musil sobre O Desaparecido. Musil diz que o romance de Kafka é regido por «aquele sentimento das orações fervorosas das crianças e tem algo do escrúpulo irrequieto dos trabalhos para casa bem feitos.» O comentário também serve como uma luva às Redacções de Fritz Kocher , de Walser.  Karl Rossmann, Fritz Kocher, Franz Kafka.  Roberto Calasso, Robert Musil, Robert Walser.  E todos os santos e santas da nossa sagrada igreja.

Juste une image

Em 1976, as pessoas de Trás-os-Montes não gostaram da cena da neve. Acharam que os denegria, que não correspondia à realidade, que ninguém é tão pobre que coma neve.  A própria Margarida tinha algumas reservas: Essa ideia foi mesmo do António. Significava uma pobreza extrema. E claro que a neve não alimenta. Eu ai pus uma certa reserva. A neve é bonita mas não alimenta. E também não era neve... É qualquer coisa da produção, uma espécie de espuma... Eu aí reagi um bocado. Primeiro porque não alimenta. Segundo porque não era verdade... Pus uma certa reserva. Mas a única reserva que ponho actualmente é a lentidão. Dura muito. A duração dessa plano devia ter sido encurtado .  Mas a força da cena vem precisamente da sua profundidade e da sua  duração ; quando vemos a neve (apanhada, servida, comida) paramos e temos tempo para compreender o que é a pobreza e, se dermos um passo atrás, o que é uma imagem.  Há palavras de Kafka em Trás-os-Montes , mas esta imagem — destemid...

O resto é vício

No dia 1 de Outubro de 1936, Beckett escreveu no diário: «O essencial não é saber se estamos certos ou errados — isso não tem importância. O importante é desencorajar o mundo a preocupar-se connosco. Tudo o resto é vício.» Nesse momento, Robert Walser sentiu um sopro no pavilhão das orelhas e um repentino sobressalto no coração.

O Executor

Divirto-me muito a conversar com o chatGPT. Acho que o vou convidar para a consoada.

Pensamentos de dupla face

L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est un roseau pensant.  A frase de Pascal é tão boa que se pode ler nos dois sentidos; conforme o filósofo a escreveu, mas também na direção inversa, considerando a condição pensante do homem como axioma, e ser junco como vontade.  Podia ser um dos segredos da escrita — ou até mesmo da vida — de Walser.

Depois do fim dos contos de fadas

(...) Tendo em conta que vários escritores e personagens literárias tiveram profissões semelhantes, vamos chamar-lhe R. W.  (...) será que R. W. só conseguia escrever disfarçando que estava a escrever, enganando-se a si mesmo e à linguagem, a ponto de nem a linguagem nem ele já acreditarem que escrevia? (...) Com esta solução, talvez também R. W. estivesse a empurrar o sentido para longe, em vez de o tornar explícito. Talvez temesse ou desprezasse o sentido. Sentir-se-ia mais próximo das coisas sem sentido ou condenado a elas? Só sabemos que já não queria copiar nem passar coisas a limpo. R. W. não servia para o que os outros queriam — e «aquilo que os outros querem» é uma boa definição de «sentido».  (...) Walter Benjamin — chamemos-lhe W. B. — comparou as personagens de R. W. com as figuras dos contos de fadas, porém depois do fim dos contos de fadas: já passaram por todas as metamorfoses e todos os sofrimentos e percursos que tiveram de cumprir dentro da lógica dos contos d...

At fourteen I was a boarder in a school in the Appenzell.

This was the area where Robert Walser used to take his many walks when he was in the mental hospital in Herisau, not far from our college. He died in the snow. Photographs show his footprints and the position of his body in the snow. We didn’t know the writer. And nor did our literature teacher. Sometimes I think it might be nice to die like that, after a walk, to let yourself drop into a natural grave in the snows of the Appenzell, after almost thirty years of mental hospital, in Herisau. It really is a shame we didn’t know of Walser’s existence, we would have picked a flower for him. Even Kant, shortly before his death, was moved when a woman he didn’t know offered him a rose. You can’t help but take walks in the Appenzell. If you look at the small white-framed windows and the busy, fiery flowers on the sills, you get this sense of tropical stagnation, a thwarted luxuriance, you have the feeling that inside something serenely gloomy and a little sick is going on. It’s an Arcadia of s...

Observações avulsas sobre a boavista #37

Feita a peritagem, posso confirmar que as botas stiletto de cano alto em camurça rosa seco com quatro botões dourados de lado (Vendémiaire Nude) e o guarda-chuva com cabeça de cão (Legris) que estão na montra do Luís Onofre pertencem a uma personagem de Robert Walser. (Tem o rosto de Edith Clever.)

Gente palradora

Conta-se esta história a propósito de Arnold Böcklin, seu filho Carlo e Gottfried Keller: um dia estavam na taberna, como habitualmente. As suas libações eram conhecidas desde longa data pelo carácter fechado e taciturno dos convivas: uma vez mais encontravam-se calados. Após um longo momento, o jovem Böcklin observou: «Está calor», e um quarto de hora depois, o velho: «Há falta de ar.» Keller, pelo seu lado, esperou um momento; a seguir levantou-se, proferindo as seguintes palavras: «Não quero beber com gente tão palradora.» Walter Benjamin, a propósito de Robert Walser.