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Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Robert Walser

Igreja

Roberto Calasso cita em K. um comentário de Musil sobre O Desaparecido. Musil diz que o romance de Kafka é regido por «aquele sentimento das orações fervorosas das crianças e tem algo do escrúpulo irrequieto dos trabalhos para casa bem feitos.» O comentário também serve como uma luva às Redacções de Fritz Kocher , de Walser.  Karl Rossmann, Fritz Kocher, Franz Kafka.  Roberto Calasso, Robert Musil, Robert Walser.  E todos os santos e santas da nossa sagrada igreja.

Juste une image

Em 1976, as pessoas de Trás-os-Montes não gostaram da cena da neve. Acharam que os denegria, que não correspondia à realidade, que ninguém é tão pobre que coma neve.  A própria Margarida tinha algumas reservas: Essa ideia foi mesmo do António. Significava uma pobreza extrema. E claro que a neve não alimenta. Eu ai pus uma certa reserva. A neve é bonita mas não alimenta. E também não era neve... É qualquer coisa da produção, uma espécie de espuma... Eu aí reagi um bocado. Primeiro porque não alimenta. Segundo porque não era verdade... Pus uma certa reserva. Mas a única reserva que ponho actualmente é a lentidão. Dura muito. A duração dessa plano devia ter sido encurtado .  Mas a força da cena vem precisamente da sua profundidade e da sua  duração ; quando vemos a neve (apanhada, servida, comida) paramos e temos tempo para compreender o que é a pobreza e, se dermos um passo atrás, o que é uma imagem.  Há palavras de Kafka em Trás-os-Montes , mas esta imagem — destemid...

O resto é vício

No dia 1 de Outubro de 1936, Beckett escreveu no diário: «O essencial não é saber se estamos certos ou errados — isso não tem importância. O importante é desencorajar o mundo a preocupar-se connosco. Tudo o resto é vício.» Nesse momento, Robert Walser sentiu um sopro no pavilhão das orelhas e um repentino sobressalto no coração.

O Executor

Divirto-me muito a conversar com o chatGPT. Acho que o vou convidar para a consoada.

Pensamentos de dupla face

L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est un roseau pensant.  A frase de Pascal é tão boa que se pode ler nos dois sentidos; conforme o filósofo a escreveu, mas também na direção inversa, considerando a condição pensante do homem como axioma, e ser junco como vontade.  Podia ser um dos segredos da escrita — ou até mesmo da vida — de Walser.

Depois do fim dos contos de fadas

(...) Tendo em conta que vários escritores e personagens literárias tiveram profissões semelhantes, vamos chamar-lhe R. W.  (...) será que R. W. só conseguia escrever disfarçando que estava a escrever, enganando-se a si mesmo e à linguagem, a ponto de nem a linguagem nem ele já acreditarem que escrevia? (...) Com esta solução, talvez também R. W. estivesse a empurrar o sentido para longe, em vez de o tornar explícito. Talvez temesse ou desprezasse o sentido. Sentir-se-ia mais próximo das coisas sem sentido ou condenado a elas? Só sabemos que já não queria copiar nem passar coisas a limpo. R. W. não servia para o que os outros queriam — e «aquilo que os outros querem» é uma boa definição de «sentido».  (...) Walter Benjamin — chamemos-lhe W. B. — comparou as personagens de R. W. com as figuras dos contos de fadas, porém depois do fim dos contos de fadas: já passaram por todas as metamorfoses e todos os sofrimentos e percursos que tiveram de cumprir dentro da lógica dos contos d...

At fourteen I was a boarder in a school in the Appenzell.

This was the area where Robert Walser used to take his many walks when he was in the mental hospital in Herisau, not far from our college. He died in the snow. Photographs show his footprints and the position of his body in the snow. We didn’t know the writer. And nor did our literature teacher. Sometimes I think it might be nice to die like that, after a walk, to let yourself drop into a natural grave in the snows of the Appenzell, after almost thirty years of mental hospital, in Herisau. It really is a shame we didn’t know of Walser’s existence, we would have picked a flower for him. Even Kant, shortly before his death, was moved when a woman he didn’t know offered him a rose. You can’t help but take walks in the Appenzell. If you look at the small white-framed windows and the busy, fiery flowers on the sills, you get this sense of tropical stagnation, a thwarted luxuriance, you have the feeling that inside something serenely gloomy and a little sick is going on. It’s an Arcadia of s...

Observações avulsas sobre a boavista #37

Feita a peritagem, posso confirmar que as botas stiletto de cano alto em camurça rosa seco com quatro botões dourados de lado (Vendémiaire Nude) e o guarda-chuva com cabeça de cão (Legris) que estão na montra do Luís Onofre pertencem a uma personagem de Robert Walser. (Tem o rosto de Edith Clever.)

Gente palradora

Conta-se esta história a propósito de Arnold Böcklin, seu filho Carlo e Gottfried Keller: um dia estavam na taberna, como habitualmente. As suas libações eram conhecidas desde longa data pelo carácter fechado e taciturno dos convivas: uma vez mais encontravam-se calados. Após um longo momento, o jovem Böcklin observou: «Está calor», e um quarto de hora depois, o velho: «Há falta de ar.» Keller, pelo seu lado, esperou um momento; a seguir levantou-se, proferindo as seguintes palavras: «Não quero beber com gente tão palradora.» Walter Benjamin, a propósito de Robert Walser.

Um pauzinho na engrenagem

À semelhança de Bartleby, também as personagens de Walser preferem não fazer, querem ser um zero à esquerda, um zero muito redondo e encantador. E não só as personagens; no manicómio, Walser decide não escrever (pelo menos de forma oficial, apenas gatafunhos na clandestinidade). Todos querem pôr um pauzinho na engrenagem, mas o método de Walser é mais amável, gentil, doce, solar (esses adjectivos que descrevem gulosamente a sua escrita). Talvez porque é um homem e não uma personagem, Walser sabe melhor do que Bartleby não passar da cepa torta.  Alguns exemplos: em vez de comer como um pisco, Walser e a sua comitiva regalam-se com pratos bem servidos e uma caneca de cerveja ( ver as caminhadas com Carl Seelig ); em vez de ficarem parados, preferem passear ou, como explicou Agamben, “passear diz-se, no espanhol que falam os Sefardins pasearse — passear-se, portanto entender o passeio como um levar-se a passear, um deixar-se andar”; e em vez de se calarem, gostam de tagarelar sobre ...

Insubmissão

Estou há mais de um ano fechado em casa, em teletrabalho. Tenho pensado muito em Robert Walser. Talvez a insistência dele em caminhar, sempre que possível, quilómetros a fio, debaixo de sol ou chuva, contra o vento ou sobre a neve, fosse o seu grande acto de rebeldia. Quer dizer, a expressão da sua dignidade, liberdade, insubmissão. Mais até do que a escrita, que é outra maneira de caminhar, mas sentado. No meu caso, nem isso. O trabalho consome o melhor do meu tempo. O tempo que qualquer ser humano deveria usar para caminhar com os pés e a imaginação.

Auto-retrato mais ou menos ficcional de Robert Walser

O alcoolismo é uma coisa exemplarmente feia: porque se entrega o homem a esse vício? Manifestamente porque por vezes sente a necessidade premente de afogar o seu discernimento nos sonhos que nadam nos diferentes tipos de álcool. Uma cobardia assim assenta bem numa coisa tão imperfeita como é o ser humano. Somos imperfeitos em tudo. Robert Walser, As redacções de Fritz Kocher . Tradução de Isabel Castro Silva.

Obras-primas

Félix Pérez escreve sobre os filmes de Hong Sang-soo: Filme após filme, Hong Sang-soo oferece-nos um assombro após outro. É difícil chamar-lhes obras-primas, não porque não o sejam ou porque sejam menores do que outras consideradas como tal, mas porque essa terminologia, de certa maneira, adultera-as, ofende-as: não pretendem ser obras-primas, não gritam por atenção, não exigem que se reconheça a sua importância. Podíamos usar as mesmas palavras para descrever os livros de Robert Walser.

Caminhadas

Apenas uma pequena parte das caminhadas de Carl Seelig com Robert Walser é sobre literatura. Walser nem sempre está para aí virado e Seelig não o quer melindrar. Ainda bem. Assim, os temas dominantes deste livrinho são: geografia, meteorologia, comida.  Eles andavam de comboio mas principalmente a pé, para cima e para baixo, com sol e com chuva ( debaixo do guarda-chuva, Walser sente-se como em casa — um discípulo de Satie devia compor uma canção para esta frase) e ficavam esfomeados. Apesar da guerra, quase sempre conseguiam comer e beber bem: escalopes de vitela, rostï, merengues, queijos, vinhos. Walser fumava muito.  O livro é um documentário. Belo.

Apoio à Retoma Progressiva

Podia ir à falência no stand da Snob . Em vez disso: Fiz uma aposta com Henri Lefebvre. Abri o livro à sorte. O olhar (tão contrário às técnicas publicitárias) fugiu para o canto superior esquerdo: “Em Setembro de 1967, Jacques Tati oferece o guião de Playtime aos bulldozers que deitam abaixo os cenários do filme.” Juntei as peças que faltam a Walser (os livros da BCF tem um formato porreiro para ler no metro, mais ou menos dez páginas por viagem) e a Denis Johnson. O problema é que os Bazarov (e logo esses, caramba) ficaram a zurzir-me na cabeça.

Apenas as borboletas morrem assim?

Um gostava de passear de bicicleta, o outro a pé. Fora as deambulações, acho que nada liga Cioran a Walser: nem língua, nem cultura, nem itinerários. Nunca me passou pela cabeça aproximá-los. Foi por isso com verdadeiro espanto que descobri um texto de Cioran —  rapaz, romeno, arrebatado,  especialista no problema da morte   — intrinsecamente walseriano. Pelo menos foi assim que o traduzi: A BELEZA DAS CHAMAS — O fascínio das chamas subjuga de um jeito estranho, para além da harmonia, proporções e medidas. O seu ímpeto impalpável não simboliza a tragédia e a graça, o desespero e a ingenuidade, a tristeza e a volúpia? Não encontramos, na sua transparência devoradora e na sua imaterialidade ardente, a projecção e a leveza das grandes purificações e dos incêndios interiores? Gostaria de ser levado pela transcendência das chamas, sacudido pela sua respiração delicada e insinuante, flutuar sobre um mar de fogo, consumir-me numa morte de sonho. A beleza das chamas dá a ...

Oh, o amor intergeracional.

O pajem do pajem

(...) Já o trilho começava a subir e já a noite começava a cair. Simão pegou de novo no bandolim, que manejava como um feiticeiro. A história senta-se de novo numa pedra atrás dele e escuta com grande assombro. É uma tarefa cansativa, esta de contar histórias. Sempre a correr atrás de um rapazote romântico, pernalta e bandolineiro, e sempre à escuta de tudo o que ele canta, pensa, sente e diz. E o diabo do pajem não pára quieto, e nós temos de ir sempre atrás dele como se fôssemos na verdade o pajem do pajem. Ouve um pouco mais, paciente leitor, se tens ainda ouvidos, pois dentro em breve diferentes personagens prestarão as suas mais submissas reverências. As coisas animam-se. Surge um palácio; achado para um pajem à procura de castelos em ruínas. Mostra agora a tua arte, filho, senão estás perdido. E ele mostra. Canta para a donzela que se dá a ver na varanda do primeiro andar com voz tão doce, tão mentirosa, que o coração dela necessariamente se comove. Temos penedos, pinheiros e paj...