Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Robert Walser

Fracasso

Leio Nelson Rodrigues e tropeço numa passagem tipicamente  walseriana : «Estava diante do espelho, fazendo a barba, e pensava: “Dane-se a posteridade. Não faz mal que eu seja esquecido.” Mais um pouco e digo para mim mesmo: “Quero ser esquecido.” Naquele momento, eu percebia, com implacável lucidez, que essa disposição era vital. Tinha que receber o fracasso com desesperada alegria suicida. Um dia, o Paulo Francis veio me entrevistar. Dei as minhas respostas por escrito; e terminava assim: “Quero ser esquecido para sempre.”»  ( Memórias: A Menina Sem Estrela , p. 276.) A ideia de fracasso, de auto-apagamento, não é um simples capricho literário, mas um projecto de resistência «vital». Para alguns, é a única maneira de conservar a fúria de viver e escrever.

Adiado

A conversa sobre Robert Walser que estava prevista para este sábado, às 16h00, no Salão Nobre do Teatro São João, foi adiada para o sábado seguinte, dia 6 de Dezembro . Mesma hora e mesmo local. Existiria contratempo mais puro, exacto e inapelavelmente walseriano ? Robert Walser é o génio sempre adiado. Desta vez, porém, apenas por uma semana. A entrada é livre.
A única fotografia em que estamos juntos (o Rui Manuel Amaral e eu).  

«Há aqui uma festa organizada para nós p’la magia»

Na Gata Borralheira e na Branca de Neve tudo acontece no «doce sonho». O sonho que «vai e vem como as ondas do lago». Quando o Forasteiro da Bela Adormecida , vindo de um outro reino – que reino? –, arranca as personagens do seu «sono secular», elas queixam-se porque não queriam ser acordadas. Diz o Almoxarife: «Durante o sono, não fluía tudo, e excelentemente não nos sentíamos todos?» Mas em que mundo despertam elas? O Forasteiro: «Não será o real também um sonho, não seremos todos, apesar de igualmente agirmos acordados, algo sonhadores, sonâmbulos em pleno dia, que brincam com ideias e agem como se estivessem acordados?» Nas histórias de Robert Walser, realidade e sonho confundem-se, são sinónimos. É impossível perceber onde acaba uma e começa o outro. Onde termina o conto de fadas e começa o seu avesso.

Robert Walser vai ao cinema e diverte-se à grande

Finalmente acabei o artigo sobre Robert Walser para o Manual de Leitura do TNSJ . Demorei mais tempo a corrigir do que a escrever. Talvez por isso consegui que a forma se fosse ajustando às ideias (lição de Huillet e Straub), dando origem a um texto saltitão, cheio de acrobacias superficiais. Para comemorar o feito, vou fazer um rösti de batata .

As boas percepções

Para que exista uma verdadeira segurança no nosso comportamento e na forma como sentimos o mundo, é preciso que exista sempre um tudo-nada de oscilação, de flexibilidade. O chão debaixo dos nossos pés pode e deve oscilar e, para podermos manter o nosso rumo em direcção à perfeição, precisamos de ter continuamente a percepção de que não nos dominamos ainda perfeitamente e de que, porventura, a nossa evolução não está ainda completa.  O Salteador, de Robert Walser. Trad. de Leopoldina Almeida. Relógio d’Água. Janeiro de 2003.

Frases finais de alguns contos de Walser

«Com uma risada, bebi a minha cerveja e parti.» «Quem tem vontade de amar levanta-se dos mortos, e só quem ama está vivo.» «Sebastian, por sua vez, fez-se ao mundo e com o tempo tornou-se célebre.» «E assim a nossa história chegava a um fim feliz: e é isso o mais importante, quer dizer que amanhã o tempo vai estar bonito.» «E com isto tomo a liberdade de declarar que esta história chegou ao fim.» «Foi com o coração pesado que me decidi a contar esta história.» «Este burlesco texto em prosa deixou-me sério.»

Talvez sim, talvez não

«E assim teríamos um final/ agradável com um casório/ feliz», dizem todas as personagens a uma só voz, na última cena da Bela Adormecida . Parece o final feliz de um conto de fadas, mas não. O verbo no condicional – «teríamos» – abre uma ferida na história. Walser escreve a última frase com uma navalhinha.

Como pode ser verdade se tu dizes que é mentira?

O que é «verdade» e o que é «mentira» nos dramalhetes de Walser? Quando é que as personagens estão a ser «verdadeiras» e quando estão a «mentir»? Alguém na mesa diz: talvez a verdade esteja na mentira. Quer dizer, quando estão ostensivamente a «mentir» é quando as personagens são mais «verdadeiras».

Experiência

No monólogo do Príncipe da Gata Borralheira , de Walser, substituir o sapato de prata, que parece «ter boca e o dom da fala», pela caveira de Yorick. E na cena do cemitério, em  Hamlet , substituir a caveira do bobo do Rei pelo sapato da Gata Borralheira .

Eu e o Príncipe ficamos a assistir

A certa altura, a Rainha chama o caçador e manda-lhe que represente a cena do assassínio fingido de Branca de Neve: Como se fosse verdade, representa-nos aqui a cena da Branca de Neve em perigo na floresta. Faz como se a quisesses matar. E tu, menina, foge como se fosse a sério. Eu e o Príncipe ficamos a assistir, censurando-vos se fordes demasiado mansos no desempenho dos papéis. Ora bem, começai. De repente, Hamlet irrompe no conto de Walser . A peça dentro da peça, outra vez. Fantasmas por todo o lado.

Trabalho de mesa

A actriz lê uma fala da Gata Borralheira para a Primeira Irmã: Estou aqui sempre a teus pés. Deixa que beije a tua mão, doce mão que nunca me bate salvo por justo castigo. Teus olhos miram-me como um sol. Sou a terra que vive do bondoso beijo e que outra coisa nunca poderá fazer senão, deleitada, florescer ao teu encontro. A actriz interrompe, de súbito, a leitura e comenta: «Isto é tão perverso!»

e ainda hoje vou

«Ao sair, depus na mão do criado uma nota de cem. Ele devolveu-ma dizendo que estava habituado a valores mais elevados. Pedi-lhe que se contentasse com menos, só desta vez. Lá fora, esperava-me um carro que me levou dali, e assim fui e ainda hoje vou.»  O jantar de Robert Walser. Trad. de José Maria Vieira Mendes. Revista Ficções, Tinta Permanente, 2002.

Literatura desviante

Da página 10 à 18 de O Salteador , de Robert Walser, encontramos as seguintes referências gastronómicas: umas costeletas das mais suculentas; ao almoço, costumava haver esparguete; uma sanduíche de presunto; uma fatia de tarde de queijo acompanhada de um café; frango e salada; um belo assado; pequenas tabletes de chocolate; pauzinhos de chocolate. É uma por página. Dá para perceber logo que se trata de um romance desviante.