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A mostrar mensagens de setembro, 2016

Gustav

Aparentemente, Gustav era um anjo igual aos outros. Uma criatura de grande virtude, bondade, graça e encantadora frescura, com longos caracóis louros presos por uma fitinha azul, e níveas asas, amplas e saudáveis. No entanto, havia algo que o distinguia dos outros anjos: tinha medo das alturas. Quer dizer, sofria horrivelmente de vertigens. Ora aqui está como o destino, com o seu braço um tanto comprido, está sempre pronto a fazer das suas. Quantos mistérios há nos céus e na terra! Ora, esta espécie de maldição era a causa de incontáveis dissabores. As vertigens impediam-no de permanecer muito tempo acima das nuvens. Começava a sentir tonturas, calafrios, náuseas, toldava-se-lhe a visão e era atacado de gaguez. Por isso, sempre que podia, e a coberto de uma desculpa qualquer, vinha deitar-se na terra, debaixo do sol. E embora Deus, por delicadeza, por decência, por cordialidade, por pudor, enfim, por misericórdia, não mostrasse abertamente a sua insatisfação, Gustav achava-se imped

Próximo sábado, 1 de Outubro, pelas 17h00

No próximo sábado, 1 de Outubro, às 17h00, damos início a mais uma temporada de Leituras do Gato Vadio. Para começar, mergulhamos de cabeça nos textos do genial Kurt Tucholsky. A convidada é a Clara Riso. A imagem da leitura é do Luís Nobre, da dupla Lina&Nando .

Os pés de Elena Ferrante

Quebro muitas vezes a regra de só falar daquilo que sei pelo menos alguma coisa. Seguir uma intuição é menos do que seguir o rasto de um avião, mas não me sai da cabeça uma ideia sobre a escrita de Elena Ferrante. Nem sequer é bem uma ideia, não passa de uma hipótese ou até um desejo pateta. Acabei "A amiga genial" e estou à espera que me emprestem os outros livros. Entretanto comprei "Crónicas do mal de amor" e foi quando comecei a ler o primeiro romance que isto começou a insinuar-se. Entre esses romances (1992) e a tetralogia (2011) há uma mudança — não diria de estilo mas de mão. É como se Elena Ferrante tivesse começado a escrever com a mão de Lilla (prodigiosa) e depois mudasse para a mão de Lenu (geométrica). Para criar um pouco de inquietação, agora gostava que Ferrante começasse a escrever com os pés. Isto continua a ser um elogio, claro. Cristina Fernandes

A ideia ocorreu-me uma vez:

se se queria aniquilar, esmagar, castigar um homem de modo bastante implacável, para que o pior bandido tremesse de medo antecipadamente, bastaria dar à sua tarefa um carácter perfeitamente absurdo, de absoluta inutilidade. Os trabalhos forçados actuais, apesar de não apresentarem qualquer interesse para o preso, nem por isso são desprovidos de sentido. O forçado-trabalhador faz tijolos, cava o solo, tritura o gesso, reboca construções, e nesses trabalhos aplica a inteligência e tem um fim. Às vezes chega a interessar-se pela sua obra e a procurar fazê-la melhor e mais habilmente. Mas se o empregarem, por exemplo, a transvasar água de uma vasilha para outra e desta para a primeira, a britar pedra ou a transportar montes de terra de um lugar para outro, para os voltar a pôr, em seguida, no seu lugar inicial, julgo que ao fim de alguns dias se estrangulará ou cometerá mil delitos, a fim de merecer a morte ou escapar a semelhante rebaixamento, a semelhante vergonha, a semelhante tormento.

Advertência ao meu editor

De todas as cartas que tenho recebido de leitores, meu caro Mestre [editor] Rowohlt, é esta a que me parece melhor. Vem de um aluno dos últimos anos duma escola técnica de Nuremberga. «Caro senhor Tucholsky: Permita-me que lhe expresse o meu total apreço pelas suas obras. Já sei que isso a si tanto se lhe dá, mas eu gostava de fazer ainda outra observação. Oxalá morra nos tempos mais próximos para os seus livros ficarem mais baratos (como Goethe, por exemplo). O seu último livro é mais uma vez tão caro que ninguém lhe consegue chegar. Cumprimentos.» Ora toma! Caro Mestre Rowohlt, caros senhores editores! Façam-nos os livros mais baratos! Façam-nos os livros mais baratos! Façam-nos os livros mais baratos! Kurt Tucholsky, Hoje entre ontem e amanhã . Tradução de Renato Correia. Sábado, 1 de Outubro, 17h00, no Gato Vadio.

A nossa literatura é cheia de possibilidades

Deitei as mãos ao meu primeiro livro de Elena Ferrante na semana em que o Presidente da República recomendou ao primeiro-ministro e ao líder da oposição a leitura da tetralogia napolitana. Desviá-los de caminhos e palavreado gastos, encontrar a política em sítios inesperados. Ah, conseguissem eles ganhar a tarefa! Levada pelo acaso e pela ironia, apropriei-me do conselho. Avancei com cautela; não valeu de nada, rapidamente caí no turbilhão. Não nos aproximamos de Ferrante de mansinho. Acho que toda a gente já o disse: a escrita de Ferrante é clara, pungente, voraz. As frases sucedem-se de forma muito exacta; cada palavra é necessária e até as repetições são construídas sem rodeios. Ferrante gosta de ângulos muito fechados; imagino-a com um lápis aguçado, uma régua e um esquadro (agora que penso nisso, parece-me que o conceito de desmarginação — ausência total de ângulos — de Lila pode ser uma manobra para domar o espaço). Talvez estes livros nos ensinem a desenhar cidades mais justa
Kurt Tucholsky.